Estivemos em Mondim de Basto para mais uma edição de Vinculum.
Melhor do que nunca. O Vinculum, em Mondim de Basto, em edição alguma dececionou, mas a deste ano foi uma prova clara do que este festival representa e pode vir representar no circuito nacional de verão.
No habitual Parque das Merendas do Monte da Senhora da Graça, a edição de 2024 de Vinculum aconteceu nos dias 19, 20 e 21 de julho. Logo na sexta-feira, um apagão informático à escala mundial obrigou ao cancelamento de GiGi FM e MARRØN e faria também com que Talismann não conseguisse viajar até Portugal para fechar a noite de sábado. Ainda assim, nada disso tirou magia ao festival.
O Vinculum decorre num recinto circundado por árvores e espaços verdes, com vários espaços para sentar e estar, inclusive a chamada healing area. Não é muito grande, o que também promove intimidade e sentido de comunidade. Este ano, o bar passou para o piso de baixo, chamemos-lhe assim, dando ideia de que a zona para convívio e descanso foi aumentada. Apesar de tudo se manter praticamente igual, a pista foi melhorada e contou com relva sintética, de forma a evitar muito do pó que se sentira no passado.
Quando chegámos ao parque de estacionamento, estava Sepypes a assinar um set de abertura de quatro horas, já conseguíamos ver que o público havia crescido. Na verdade, contou-nos a organização, quadruplicou face ao ano passado – e isto, recorde-se, sem esquecer que o Vinculum quer “crescer devagar”. Nada disto prejudicou o desenrolar do festival, que nunca teve filas exageradas ou problemas de logística que pudessem tornar a experiência menos rica.
Para colmatar os cancelamentos de GiGi FM e MARRØN, a organização chamou Kichi Kazuko, pediu a Nørbak para estender o set e ela própria, na forma de Backbone, Ferro e James Grouper, ficou responsável por encerrar a sexta-feira. Antes disso, o bracarense VHS, num exigente e envolvente live act de duas horas, munido com maquinaria como um modular, um controlador para o Ableton e possivelmente uma TR-8S.
Apesar de o relógio estar a dar as doze badaladas quando Kichi Kazuko subiu à cabine, a ucraniana não poupou corpos e andou para lá dos 140 BPM – logo a abrir, tocou A, de Talismann, e sucedeu-a com Rivers, de Altinbas, passando por faixas como Navigation, de Ned Bennett, pelo caminho. A DJ baseada no Porto passaria a tocha às 2h, já com a energia da pista lá no alto.
Noite quente em Mondim de Basto e um público formado por pessoas que vão pela música – pelo menos foi essa a ideia com que ficamos – Nørbak entrou às 2h e tocou até às 5h. Tão corporal quanto mental, o amarantino foi exemplar, sempre a criar tensão e densidade. Pelo meio, tocou uns quantos temas conhecidos – Crush the Mushrooms, de Karenn, ou a inigualável Bring, de Randomer – descansou corpos com faixas como flight fm, de Joy Orbison, e não deixou de lado trabalhos seus (como Clima) ou de pessoas próximas (Dothejazz, de Vil). Certeiro até mais não.
Encarregues por fechar sexta-feira, Backbone, Ferro e James Grouper deliciaram o público ao amanhecer – com a música, sim, mas também com mais meia hora do que esperado. Apesar de este set ter tido momentos densos, como o remix 2 de Luke Slater à sua Rip The Cut, de certa forma foi mais alegre do que até então. Ouça-se as notas de Steep, de Holden Federico, ou recorde-se o facto de terem tocado o edit de Phil Berg à Street Player ou Drop of You, de Alarico, além de fecharem com nada mais nada menos do que Blackwater, dos Octave One, para porem toda a gente a cantar. Arrepiante.
Por muito bom que o festival tenha sido, é claro que não é só pontos positivos. Na sexta-feira, por exemplo, sentimos que a casa de banho poderia ter sido mais cuidada, mas a verdade é que não sentiríamos isso nos dias seguintes. Acreditamos também que será importante haver mais sinalética à noite, particularmente nas escadas que há por lá. Embora outro pormenor menos satisfatório passe pelo facto de o campismo ser muito perto da pista, a organização disse-nos que pretende encontrar solução para isso. Mas nem isso nem tampouco a ligeira inclinação que se sente no dancefloor tornou a experiência desconfortável ou menos especial.
No sábado, não apanhamos o muito elogiado set de Valody. Chegamos ao recinto na meia hora final de Backbone e ainda pudemos ouvir faixas como Preludio, de Ribé e Roll Dann – que já havíamos ouvido por lá no ano passado, nesse caso pelas mãos de Orbe – ou Honey Badger, de Rhyw, que fez com que duas pessoas à nossa frente saíssem da pista, tamanha é a claustrofobia que essa incrível música causa.
Com o cancelamento de Talismann, sábado contou com sets maiores de Akua, Philippa Pacho e D.Dan. Aqui, sejamos sinceros: o Vinculum está cheio de pessoas que partilham o gosto pela música, neste caso techno, e nesta noite fomo-nos perdendo por entre o convívio e a ebriedade. Por isso, poucas notas temos sobre Akua e Philippa Pacho. Sabemos, no entanto, que a primeira andou entre Detroit e hard groove, tocando faixas como VV2, de Mark Broom, e a segunda, também com a energia lá em cima, por pelo menos um tema português, You Got Me, de DJ Dextro.
Para rematar sábado, D.Dan até às 7h, mesmo com o fim agendado para as 6h. Um dos porta-estandartes das festas berlinenses Mala Junta, o americo-coreano foi irrepreensível. Sempre muito atento e com pelo menos três decks, assinou um momento variado mas altamente coeso por meio de faixas como a sua Pursuit ou Fibre, de TWR72. Repleto de groove, atmosfera e até um pontual lado trancey (como em Sense, de Kepler), foi, sem dúvida, um dos destaques do festival.
Apesar de ficar algum frio na noite anterior, o bom tempo foi um dos protagonistas e domingo foi dia de mais gente aproveitar os tanques para mergulhar. Do nosso lado, ficamos tristes por não apanhar o live de Maria Callapez, mas ouvimos e deliciamo-nos com Amulador – maioritariamente encostados a uma árvore na relva, diga-se. Entre o ambiente do primeiro tema e o techno deep e hipnótico, algo downtempo até, pegou na slot com todo saber. A dupla prata da casa Ruuar também não desiludiu, pois claro, e progrediu de forma construtiva e notável por faixas introspetivas e envolventes de Luigi Tozzi (Obsidian e Flesh Mechanics) ou Blazej Malinowski (Train of Thoughts) e outras de certa forma mais duras, como Matam, de Talismann.
Um dos poucos a tocar discos de vinil no festival, senão o único, Konduku foi um daqueles casos em que nos deixamos levar pelo ócio e não prestamos total atenção, embora tenhamos gostado do que ouvimos. Responsável pelo set de encerramento deste Vinculum, DJ SO entrou às 22h. O residente do festival The Labyrinth abriu com o electro de 214 no remix a Tragedy Turns To Comedy, de Steffi, e esse lado atmosférico manter-se-ia em grande parte do set, que ficou marcado pela fluidez sem defeitos de uma das referências do techno do Japão e por faixas como Gentian, da compatriota DJ MARIA, e até um ou outro tema de breaks ou de tons trancey. O relógio marcava a 0h15 quando vimos SO a escolher mais uma e, com a segunda-feira na cabeça, acabamos por ir embora. Azar o nosso, já que haveria uma surpresa: b2b com Konduku até às 2h45.
Mais do que música ou pormenores como luzes, o Vinculum oferece um espaço ideal para este tipo de festa, e, reiteramos, é marcado por um público melómano que torna tudo ainda melhor – há partilha constante, tanto que pelo menos duas faixas aqui referidas foram notadas por pessoas na pista. Limando algumas arestas, a tal ideia de que esta é uma paragem obrigatória no roteiro de festivais de techno ficará mais clara. Se é que já não o é.
Fotografias por Ivo Lima / Vinculum
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