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A Cabine

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Crónica

Menos um visionário

18 Fevereiro, 2020 - 14:52

Crónica de João Silva Pires (também conhecido por Ka§par).

Há dias, quando ele passou música no Lux pela última vez, escrevi assim na minha wall: “Andrew Weatherall – ou como eu costumo dizer, o Alan Moore da música electrónica”.

(Alan Moore, além de um aspecto parecido, partilhava com Weatherall uma visão dissonante da realidade e era especialista em arte disruptiva, no domínio da literatura e banda desenhada tal como Weatherall era na sua música). Digo isto só para se perceber com que regularidade eu pensava em Andrew Weatherall de forma recorrente e inspiradora.

A sua foi uma obra ampla, difícil de definir. E esta é quase plural demais para um adjectivo apenas. A escolhermos um, tem de ser daqueles que se refira a volume e alcance. A sua obra foi, à falta de melhor termo, colossal… o que fará de Andrew Weatherall um colosso.

Eu não posso falar dele com a maior propriedade do mundo porque só o cumprimentei duas vezes (certa noite no Lux, no início da década passada, ainda quando a cabine estava montada num corredor em cima do bar contíguo aos lavabos – ele estava a passar discos vestido com lingerie e sapatos altos vermelhos, penteado e bigode à Peaky Blinders) e outra numa all nighter que ele fez no Pitch – quando o quase homólogo lusitano Pedro Tenreiro conceptualizava o conteúdo artístico do espaço (coisa que se se tivesse mantido faria daquele um club com alcance mundial, mas adiante). Além disso, não tenho idade para ter vivido com contexto os seus discos mais relevantes segundo a especialidade (produção para Primal Scream, Sabres of Paradise, etc), por isso não me posso desfazer em referências eternas às remisturas e originais que fez quando eu era miúdo… Apenas posso falar do que o vi fazer depois de “Stockolm Steppers”, um dos meus álbuns preferidos da época, ou do seu mix para a compilação Heavenly Social.

No club estava ali para nos fazer dançar. E nós, os que sabíamos o que fazíamos a ouvi-lo e conhecíamos o seu passado artístico controverso e interessante, até estávamos preparados para todo o tipo de avarias (como as que ele produzia no estúdio). Era um homem que tinha estado no centro de tudo, quando rebentou o acid house era uma figura central, mas foi o primeiro a trazer a música de dança e electrónica a um público amplo e surpreendente (com a coerência e impacto epistemológicos que só os grandes conceptualizadores conseguem).

Ele fez tracks que podiam ter um rap do Kendrick Lamar por cima só que saíram na WARP nos anos 90, tem outros que fazem corar os maiores nomes do techno de Detroit, outros há que ecoavam Chicago como se fosse o Larry Heard a dizer-lhe o que fazer, mais meia dúzia que podiam ser comparados a Squarepusher, inúmeros foram tracks de downtempo, outros tantos de dub, uma boa parte eram de um electro distópico com uma atitude e desfaçatez que hoje ainda se tenta timidamente replicar e finalmente havia um lado dele que gostava de loopar um disco de soul e colocar um beat de house por trás para usar um filtro e curtir.

Cada caso era diferente para si, mas o génio do autor era sempre o mesmo. Isso sempre me caiu mesmo bem… Como me bate bem o trabalho de I:Cube, Russ Gabriel, Carl Craig, François K, Peter Kruder e outras personalidades que dominam o club mas sabem fazer música de todo o tipo.

Podia continuar, mas já se percebeu. Era um homem holístico da música. Um criador, atento e curioso, sem medo de experimentar.

Sabem que mais? Se acho que por vezes consigo ser assim, é porque ele o foi antes de mim: desavergonhado, confiante, capaz, divertido, misterioso. Sem se preocupar com a carreira ou os gigs que tinha para opulentar, sem querer saber do que diriam dele. Quando deixou de conseguir transportar discos, continuou a comprá-los e começou a digitalizar o que comprava… Foi com este seu exemplo que me senti capaz de fazer o mesmo e investir menos em vinil que não precisava mas a perder mais tempo com playlists e com a qualidade das músicas e ficheiros que dava a ouvir.

Se sinto que estou à vontade para fazer um track novo que seja completamente diferente do anterior, devo-o muito a Weatherall. Se não sinto qualquer preocupação com a coerência ou a previsibilidade estética da minha obra, isso acontece porque tenho os seus gigantescos ombros a segurarem-me, pequenino. Quando me lembro que não estou em todos os festivais nem no top 50 dos DJs mundiais, lembro-me que os melhores como Weatherall não estão nessas listas de puxar lustro ao ego. Estão a inovar e a elevar, empurrar para a frente uma forma de arte. A estudar, a aprender, a experimentar. A lutar por uma direcção e não por um quinhão. Podia ter sido milionário se jogasse pelo seguro, mas quis ser uma lenda ao viver no fio da navalha.

Alguém como ele (que até inventou géneros inteiros) conseguiu fazer tudo o que quis, sendo, no fim, respeitado e amado por todos os que o seguiam. E que mais se pode pedir, se no fim da vida qualquer um pode falecer inesperadamente sem se levar orgulho ou fortuna para o outro lado? Mas a obra fica… E a dele será eterna.

Deixei estas palavras na minha wall, para os nossos amigos em comum lerem, e aqui partilho convosco:

“What did Andrew Weatherall teach through his sets? One loves music! One plays music that is danceable because of the shamanic, cathartic and ritualistic dimensions brought by dancing in communion…

But, through his own music? He taught one is free to make things as one wishes: whatever form, whatever shape and tonality, unbounded by the constraints of practicality and usefulness… but often times influenced by the idea of a community dancing to your music.

That’s why I love records that Andrew did that are “house”, “techno”, “electro”, “hip hop”, “drum’n’bass”, “rock”, “blues”, “synthpop”, “dub”, “disco”, “soul”, “experimental”… and he was a surprising and ever changing DJ. Fine by me… always on the fold, never pigeonholed.

My radio show Desvio Padrão owes much to the likes of Weatherall and his coherent yet unpredictable take on DJing! My production drank from his work, his impeccable use of sound fx and processing, his visionary use of micro sampling and in many other aspects… There are too many reasons to affirm why he’s changed the way a studio is used.”

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico

Fotografia por Alex Zalewska

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