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Entrevista

DJ Ki: “Nenhum movimento pode ser saudável sem um movimento local”

26 Agosto, 2020 - 11:53

À conversa com João Freitas, DJ Ki falou sobre a vida noturna na Polónia, scratch, bass music, movimentos locais e cultura underground.

Não fossem os tempos de pandemia e podíamos encontrá-lo na Pensão Amor, no Rio Maravilha, com seleções cuidadas de funk, disco, soul, hip-hop, numa festa de drum’n’bass a riscar discos seguidos com uma playlist de ouro, viajando entre os primeiros anos de vida do movimento e as faixas mais frescas, numa battle de scratch ou então em workshops de turntablism.

As skills do Rui Sawicki, também conhecido como Ki, são de mestre. Foi vice-campeão DMC 2008 em Team Category, ao lado de Sleepz e Nery como Mad Triggerz, campeão na S.A Scratch League em 2013/2014, e vice-campeão IDA Portugal em scratch, na edição de 2012, contra DJ Núcleo após dois empates – este é o melhor DJ de scratch em Portugal, segundo Ki.

Rui viajou entre Polónia e Portugal, viveu em Bristol, e partilhou cabine com nomes como Rob Sparks, Spor, Balkansky, Counterstrike, Freestylers, Ed Rush, Makoto, Spectrasoul, LTJ Bukem, Drumbassador e Steem, sendo estes dois últimos os fundadores da polaca Bethon Crew, da qual fez parte entre 2010 e 2013. Enquanto lá esteve riscou residências importantes e passou também por outros clubes europeus. Mas DJ Ki não anda só a tempos rápidos e tecnológicos: também já passou pelo Boom, Festival Musa e Outjazz, por exemplo.

Estamos a falar do fundador dos Scratchers Anónimos, o principal e único coletivo em Portugal dedicado à arte do gira-disquismo. Foi também co-fundador da Syndicate Productions, uma produtora dedicada às tendências mais futuristas e techy do drum’n’bass entre 2008 e 2012, que trouxe nomes como Break, Dbridge e Survival. Anos antes pertencera à Breakfast, um grupo de DJs focados em bass music e scratch, fundada por Mee.K, um dos pioneiros do dnb em Portugal.

Lê abaixo esta nossa conversa com DJ Ki, com quem falámos sobre uma série de tópicos, desde passado até planos para o futuro:

De onde nasceu o interesse pela música eletrónica na tua vida, e como isso te levou a ser DJ e a tomar este rumo musical?
Eu sempre gostei de música de dança e comecei a comprar CDs da Tecnolandia, Alcântara-Mar, Underground Sound Of Lisbon, foi aí que me inspirei para a Underground Bass of Lisbon. Comecei no house, techno, gabber holandês, muito por influência de malta holandesa, alemã, belga. O pessoal mostrava cassetes de música rave e foi com isso que me deu o primeiro clique… Mais tarde, com 15 anos, fui a uma discoteca e fiquei a olhar para o DJ a noite toda a vê-lo a trabalhar com os discos e com os pratos e fiquei apaixonado por isso. Nesta altura eu não fazia a mínima o que era drum’n’bass, e hip-hop também não andava muito por aí.

Na Polónia, com 16, fui a uma festa de hip-hop ilegal e isso deu-me a volta a cabeça, foi ali que percebi o que era o scratch, na altura não havia YouTube, não tínhamos noções… E foi aí que fiquei: “ok gosto de techno, gosto disto, mas também gosto de hip-hop”. E comecei por aí. Mais tarde, em Portugal, descobri o drum’n’bass, em 1999/2000, e naquela que foi a primeira festa que fui, no Instituto Superior Técnico, conheci o Alif, Sleepz e o Mee.K. E vejo o Mee.K a tocar um grande drum e a fazer scratch por cima, e fiquei impressionado. Foi aí que eu decidi: já desde pequeno que queria fazer isto só que não sabia nem percebia nada de material.

Fui para a ETIC em 2003, foi lá que conheci o DJ Nokin, em Lisboa. Já tinha os pratos, já conseguia entender mais ou menos a mecânica do scratch, mas o beatmatching era uma cena que não entendia. E foi aí o Nokin me ensinou como se acertavam beats. E durante uma semana treinei até conseguir fazer beatmatch. Gravei um mix em cassete, ele ouviu e convidou-me para ir tocar ao House Of Vodka, que era a residência que ele tinha na altura e a partir daí nunca mais parei. O Mee.K viu-me a tocar nessa primeira noite e curtiu da minha cena e convidou-me para me juntar à Breakfast. E foi a partir daqui que comecei a conhecer o pessoal todo, Cooltrain crew, o Sly, o Simão e Woodcut e, passo a passo, fui-me inserindo na cena.

A pergunta que tenho muito de te fazer: como surgiu a Syndicate?
A Syndicate surgiu em 2008. O Sleepz ligou-me, éramos vizinhos, ele combinou um copo, fomos até ao Adamastor e disse-me o projecto todo da cabeça aos pés… nome, ideias, filosofia, imagem, artistas e perguntou-me se eu queria fazer parte. E eu, obviamente, aceitei. Tudo aquilo que podia fazer fazia, colar cartazes, promoção, tentar mudar o paradigma das coisas… Mais tarde o Sly, conhecido com Y.L.S, que faz parte da Mais Baixo, junta-se porque precisávamos de mais uma pessoa, principalmente de uma pessoa que tivesse carta e carro para trazer os artistas ao hotel ir buscá-los [risos]. E para além disso, um grande DJ, um gosto musical brutal, e com a linha exactamente igual a nossa, a cena deep tech… Sabre, Dbridge, Icicle… e fez-se aí uma simbiose entre três pessoas. E o resto é história.

E com isso foram os primeiros a trazer nomes como Break, Dbridge, Survival, Icicle, SKC e Sabre a Portugal…
Sim… A nossa primeira festa foi Break em Setúbal no Clubíssimo, para um club completamente cheio. Na altura Setúbal estava a ter um movimento de drum muito interessante. Na altura eu vivia em Azeitão e conheci muita gente de Setúbal, tive muitos contactos de lá, e surgiu ser ali… O Sleepz e o Sly não estavam com vontade de fazer em Setúbal, não é Lisboa nem Porto. Eu pensei: “calma, é a primeira vez que Break vem cá”, na altura já tinha bastantes seguidores e nunca ninguém o tinha de trazido cá… Sabia que ia correr bem, mas obviamente tivemos de fazer uma promoção massiva. Colei cartazes durante um mês em Lisboa e Setúbal. E o meu trabalho era esse. Na altura não havia redes sociais, havia a Cows On Patrol, era aí que se partilhavam eventos, quanto muito havia o Myspace, hoje em dia tens imensos canais para divulgar a tua cena, mostrares-te sem sair de casa, na altura para te mostrares tinhas de sair de casa. Todas as festas foram boas, mas essa foi a melhor em tudo, sistema de sons, artistas, casa cheia, teve público e boa música.

Quando apareceram e por que nasceram os Scratchers Anónimos?
Eu fui para a Polónia em 2010, comecei a tocar em open decks, e num ápice já estava a tocar em prime-time, festivais e a fechar. Fui convidado para me juntar a Bethon Crew, uma das crews mais antigas da Cracóvia, foi uma honra para mim. Entretanto tive de voltar para Portugal por razões familiares… E voltar para Portugal era começar do zero… Quando voltei, em 2013, vi tudo parado, não haviam campeonatos desde 2012, não havia comunidade, não havia jams… E nasceu assim o coletivo. Os Scratchers Anónimos criei sozinho… O nome surge do conceito do pessoal se juntar em jams para matar um vício, o vício do scratch. “Anónimos” porque os nomes não interessam, tanto pode ser o DJ Ride, como alguém que tenha começado a fazer isto há dois dias, é igual, essa é a filosofia, são todos iguais, não há melhores nem piores. Começámos com as jams e, entretanto, o Subvision juntou-se a mim, mais tarde o Camboja, ele identificou-se de tal forma com o projecto que é o número dois, eu sozinho não conseguia fazer tudo… Mais tarde o X-ato, depois o Apu, o Ketzal, o Rodric… tudo pessoal proveniente da cultura de scratch. E a partir das jams passámos para os campeonatos, workshops, festas, battles… fomos os primeiros a fazer um campeonato 100% português, os júris eram sorteados para não haver conflitos de interesses, foi uma liga de 2013 a 2014, que eu acabei por ganhar, mas quem ganhou foram os Scratchers Anónimos.

Eu comecei a ver que isto era algo que tinha força e que era importante. Com o tempo as jams começaram a ter mais pessoas, os workshops começaram a ter mais alunos, apareceram os patrocínios, festas, a parceria com o Yom, o fundador da International Turntablism Federation, a ITF, surgiu o slot na Rewind It FM, o Fader Aberto. E depois de 8 anos, digo-te que, sem sombra de dúvida, os S.A são a principal referência na promoção e divulgação de informação do scratch português. Somos os únicos a fazer isto, e fomos os únicos a unir toda uma comunidade de turntablism. A partir do momento em que tens o Sam The Kid a dar props ao coletivo por terem repegado no movimento scratch nacional, isso quer dizer alguma coisa. Quando o teu trabalho é referenciado por alguém que tem muito poder a nível cultural é bom sinal.

Quando é que sentiste que os Scratchers Anónimos deram o salto?
Houve dois pontos importantes, foram os patrocínios e a colaboração com o YOM nas battles. A Zentral Media é distribuidora de material de DJ para a Península Ibérica, representam várias marcas, Rane, Numark, Pioneer, Ortofon, e são eles que nos fornecem materiais para os nossos meetings. Foi um grande salto. Depois de cinco anos de projecto eles viram o nosso trabalho, gostaram e entraram em contacto connosco. Torna-se algo mais sério quando passas a ser patrocinado, é sinal de reconhecimento, quer dizer que há coisas interessadas no que nós fazemos pela cultura. E depois também temos a Battle for Respect, que é um campeonato criado pelo YOM. A última jam e campeonato que fizemos, ele trouxe o Tigerstyle… Ele desenhou o campeonato e nós somos a estrutura para esse campeonato acontecer, ou seja, a ideia é dele, nome, regras, e nós fazemos o resto: contactamos participantes, falamos com júris, nomeadamente júris portugueses, Nel Assassin, Cruzfader, DJ Kwan… E lá está, há o patrocínio e há isto.

Como foi voltar à Polónia em 2010? Sentiste muita diferença na cultura musical e noturna?
Era tudo diferente. Desde os clubes, managers, promotoras, soundsystems, os DJs, até as escolhas e tendências musicais eram diferentes… Era completamente diferente, não tinha nada a ver com o que tinha experienciado. Na Polónia foi muito fácil de me inserir no movimento sem conhecer ninguém, e em Portugal não… E comecei a perceber que lá existe uma meritocracia que cá não existe. És bom, chamam-te. Eu não quero dizer com isto que a Polónia é melhor ou pior que Portugal. Simplesmente são mentalidades diferentes.

Como fizeste para te inserires no meio cultural? Uma vez que eras meio português, meio polaco, e estavas num país onde não conhecias ninguém… Foi fácil de te integrares na cultura eletrónica?
Na rua vi um cartaz open decks, que na altura era algo que nunca tinha visto em Portugal. A intenção que eles tinham era de preencherem as noites fracas com DJs novos que não se importavam de não receber nos eventos às terças-feiras, quartas-feiras… não fazia sentido pagarem um cachet de x ou y em noites com pouco público… E com isso aproveitavam e metiam os DJs fortes às quintas, sextas e fim de semanas. A primeira noite em que toquei o pessoal gostou, ganhei contactos e durante as noites de open decks semanais ajudava-os. Mais tarde, o dono do Tuba, o patrão do bar, percebeu que tinha jeito para tocar e para ensinar e começou-me a por em dias fortes, a primeira festa foi numa noite de Aphrodite, warm-up, estava lá há dois meses, não fazia sentido ser a fechar ou tocar antes dele… E ao contrário do que acontece em Portugal, as festas às 22 já estavam cheias, já tinha pista, dava para fazer a cama para os que vinham a seguir. Como tens o Nuno Forte no Porto, havia o Nuno Forte de lá, tinhas o Alif de lá, tinhas o Mee.K de lá… percebi que em todos os sítios onde vais, tens os heróis locais que são referências culturais importantíssimas. Fui residente às quintas-feiras num clube muito conhecido Krzysztofory Klub, onde levei o Nery e o Sly. Fui convidado para fazer sets em rádio, gostaram tanto que começaram a chamar-me uma vez por mês, tive um programa lá que era From Portugal With Bass, era o Nery que o geria. Também fiz programação para a Radiofonia. E toquei numa noite da Ninja Tune, aniversário da Radiofonia, onde abri para King Cannibal e Eskmo… coisa que cá em Portugal nunca imaginaria acontecer.

Sentes que na Polónia o movimento underground tinha mais força?
Sim, acho que o movimento de lá é muito mais forte, embora tenhas na mesma o panorama comercial. Podes ir a discotecas underground e os DJs estão a passar música completamente subversiva, seja que estilo for, e isto não é apenas no drum’n’bass. Por exemplo se fores a um club de hip-hop não vais ouvir as músicas comerciais tipo Dr. Dre, Snoop Dogg… Em vez disso estão a passar cenas tipo Deltron 3030 e a malta delira… E o UK Garage também era fortíssimo. Depois, como eram mentalidades diferentes, havia clubes sem limites de horas, normalmente, pagavam pouco, eventos sem line-up, era um bocado freak… mas mesmo as cenas freaks eram bastante puras. Vi de tudo, mas no geral reparei que havia mais reconhecimento, mais mérito e mais organização.

E foi na Polónia que comecei a olhar para o neurofunk de outra forma. E lá, de facto, vi malta a tocar neuro e entendi a cena… tive noutro tipo de festas, noutro tipo de contexto, noutro tipo de ambiente… é diferente. Reconheço e confesso que passei a ter mais respeito por esse subgénero desde que vim de lá. Foi lá que senti tudo isso, bunkers antigos, uma cultura underground completamente à parte. Tinhas a Cracóvia toda bonita, limpinha e comercial, com clubes comerciais, mas ao mesmo tempo tinhas este submundo de sarjeta a acontecer em todos os pontos da cidade.

E depois de toda esta viagem surge a Underground Bass Of Lisbon?
Sim, a UBL foi a vontade de criar uma comunidade, uma ideia de irmandade, porque no fundo estamos todos no mesmo. Tal como vi no scratch há uns anos atrás quando cheguei, vejo o mesmo com a cultura bass em Portugal, o 2-Step, footwork, dubstep, jungle… todos os espetros da bass music reparei há bastante tempo que os movimentos locais desapareceram, pelo menos em Lisboa. Já não tenho um club onde eu sei que todas as semanas vai haver drum’n’bass, e a mim não me interessa muito ver internacionais, sejam eles antigos ou não… Gostava de voltar a ver esse circuito local. E tal como aconteceu com o scratch, este movimento surge para dar vida ao movimento local. Prefiro voltar ao micro para que o movimento tenha uma vida saudável, porque nenhum movimento se pode considerar saudável se não tiver um movimento local. Tem de haver uma aposta dos clubes e residências em artistas nacionais, DJs residentes, planeamento semanal, e é essa mesma filosofia que vou apostar com uma comunidade. As Underground Bass Of Lisbon provêm de uma produtora que quero fazer, que é a BRK’ A’ LEG, algo que já tenho na cabeça há algum tempo e que agora tenho tempo para passar as ideias para o papel. A ideia é materializar esta ideia em festas, mas agora não dá para fazer nada [risos].

Para concluir, “a pergunta da praxe”, como a chamamos: o que podemos esperar de ti num futuro próximo?
As coisas não estão fáceis, o panorama não está favorável… Podem esperar playlists novas todos os meses no Spotify, sets novos todos os meses no Mixcloud, também sets no Fader Aberto na Rewind it FM, publicações na Underground Bass Of Lisbon… Tudo que for online podem contar comigo. Online é mesmo a única coisa que podemos fazer no momento… Em termos de gigs, em setembro muito provavelmente vou à Collect fazer um live, mas nada certo. Agora que os clubes vão ter de seguir as regras de restaurantes e bar [risos], talvez as minhas residências me voltem a chamar… Não sei, por enquanto é demasiado cedo para falar. É muito complicado, mas eu, felizmente, trabalho e desde muito cedo percebi que não ia viver disto, porque nunca se sabe o dia de amanhã… E acontece isto e eu fico: “se não tivesse trabalho, eu estava muito lixado”. Eu conheço muitas pessoas que não têm rendimentos desde março. Fico muito triste, como é possível um país não dar o mínimo de apoios à área de espectáculos? Foram os primeiros a fechar desde que a pandemia apareceu e até agora não houve nenhum apoio… DJs, técnicos de som, técnicos de luz, roadies, gerentes, barmans, managers… toda a gente ficou muito mal depois disto. Pode ser que isto dê uma volta à noite…

Fotografia por Lenon Reis

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