AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

No Semibreve, Braga respirou eletrónica do passado e do futuro

30 Outubro, 2019 - 17:45

Foi no último fim de semana de outubro que a nona edição de Semibreve tomou conta da cidade de Braga.

Pelo nono ano consecutivo, Braga viu os seus espaços – incluindo bares e restaurantes – serem ocupados por um público que vai à procura de música eletrónica desafiadora, vanguardista e, por vezes, com estatuto de pioneira. De instalações a atuações, a passar por conversas e workshops, o Semibreve, festival organizado pela bracarense AUAUFEIOMAU com direção artística de Luís Fernandes, voltou ao Theatro Circo e gnration sem se esquecer de criar outras paragens obrigatórias, em locais como a Capela Imaculada do Seminário Menor e o Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho.

Não é novidade que o Semibreve dá muita atenção aos detalhes, com especial foco na programação musical de cada edição – afinal, já passaram por lá nomes como Alva Noto, Dopplereffekt, Fennesz, Rafael Toral, Plaid, Telectu, Vessel e William Basinski. Um exemplo disso é a forma como, este ano, a organização convidou dois autênticos pioneiros do mundo modular (e dos Buchla) para abrir e fechar o festival, Morton Subotnick e Suzanne Ciani, respetivamente.

É sabido que é preciso silêncio para ouvir cada detalhe, cada vibração e cada emoção. Por isso, quando se apagam as luzes e fecham as portas do Theatro Circo, todos os espetadores sabem qual é a palavra de ordem – silêncio. Excepto quando um artista entra ou sai do palco.

Vai ser difícil esquecer a atuação de Morton Subotnick (fotografia por Adriano Ferreira Borges)

E assim foi com a subida de Morton Subotnick a palco. Acompanhado por Lillevan, que iria apresentar uma progressão e sequência de imagens muito mental, recorrendo muitas vezes a dupla exposição com filmagens mormente distorcidas, o americano de 86 anos – número mais evidente quando caminha – foi capitão de uma nave espacial que, no final, deixou o público boquiaberto e em estado de êxtase. Com recurso a sintetizador modular, portátil (possivelmente com Ableton Live), um microfone e mais maquinaria, o autor de Silver Apples of the Moon (1967), peça na qual centrou parte do espetáculo, aproveitou cada canto da sala para nos alienar do mundo secular, levando-nos por entre sonoridades alienígenas que, camada após camada, faziam imaginar paisagens psicadélicas. Através de momentos com mais ou menos intensidade, até mesmo com ritmos pulsantes a certa altura, Subotnick, com uma mestria típica de pioneiro, e o artista visual alemão assinaram uma atuação que não iremos esquecer tão cedo – se é que alguma vez a iremos esquecer.

Pelo meio do espetáculo, um espetador – que viria a pedir desculpa no final do ato seguinte, declarando que “esteve num hospício” – chegou mesmo a afirmar, quebrando o obrigatório silêncio, que o Homem sem comunicações é invisual. E ali, no Theatro Circo, isso é verdade, ou não estivessem as máquinas a comunicar com e para o homem. Em apresentação do seu mais recente álbum Volume Massimo, editado pela Mute em setembro, Alessandro Cortini, outrora membro dos Nine Inch Nails, comunicou através de música, claro, mas também de vídeo, cujos planos estáticos, nos quais o movimento era essencialmente feito por corpos a dançar, criaram uma relação semiótica muito forte, em grande parte devido ao exemplar uso de cores. Com texturas ambient e drone, por vezes com riffs de guitarra com sabor a metal ou até kicks pelo meio, entre outros detalhes, o italiano foi brilhante. Aliás, Cortini deslumbrou o público de tal forma que, surpreendentemente, foi mais aplaudido do que Morton Subotnick.

Depois, Ipek Gorgun atuou pelo Pequeno Auditório do teatro, mas decidimos ir até o gnration, onde, assim como no Theatro Circo, também havia instalações para permanecer sob uma aura digital e eletrónica. A primeira a subir à Blackbox do espaço bracarense foi Nik Void, que nos levou numa viagem experimental, industrial e, inicialmente, de broken techno, como muitos apelidam, algo que tornar-se-ia, pelo final, numa odisseia de techno mais concreto. Já Avalon Emerson, responsável por encerrar o primeiro dia de Semibreve, assinou um set que contrastou por completo o nível de introspeção que se vivera por Braga até então. Uma autêntica rave – e muito animada, como a DJ tanto gosta, em que a americana uniu ritmos electro ou breakbeat a, por exemplo, vocais mais pop.

No segundo dia de festival, sábado, a música começou mais cedo, pelas 18h, na Capela Imaculada do Seminário Menor. A dupla norueguesa Deaf Center, de regresso aos palcos e aos lançamentos, caminhou pelo mundo do ambient, experimental ou até de inspiração neoclássica. Com Otto Totland e a sua delicadeza no piano, Erik Skodvin acompanhou na guitarra elétrica, muitas vezes tocada com arco, e em máquinas como pedais de efeitos. O duo usou o espaço da melhor maneira e atraiu o lado mais sentimental do ouvinte, tudo isto numa belíssima hora que, nos últimos minutos, assombrou (de forma positiva) os presentes, tal era a intensidade. A julgar pelos aplausos, parece unânime que foi um dos grandes momentos desta edição.

Já foi referido que o Semibreve se prima também pela programação musical, e é de salientar a “encomenda” de uma colaboração em palco entre Oren Ambarchi e Robert Aiki Aubrey Lowe (tcp Lichens), espetáculo em estreia mundial. Enquanto Ambarchi desconstruía uma guitarra elétrica, Lowe ficava encarregue de criar texturas através de um sintetizador modular e dos próprios cabos, um momento que, apesar de ser algo interessante, se esquece facilmente, especialmente quando Drew McDowall e Florence To foram os próximos a subir ao palco do Theatro Circo. Nesse ato, entrámos em completo estado de transe com o cortante quadro drone desenhado pelo antigo membro dos Coil, em parte promovido pelos alucinantes visuais de Florence To. A simbiose foi tal que, a certa altura, em jeito de alucinação, pareceu que a imagem é que compunha o som, tal era o modo como estávamos embrenhados.

Suzanne Ciani foi irrepreensível no Semibreve (fotografia por Adriano Ferreira Borges)

Apesar de a música no teatro continuar com a portuguesa Clothilde, fomos até o gnration para ouvir Rian Trenor pela primeira vez em Portugal. A apresentar Ataxia, álbum de estreia que foi lançado este ano, o britânico sabe a breakcore, garage, techno e muito mais, numa mescla que exige energia do espetador. Temos de admitir que já não tínhamos forças por essa altura, mas quando chegou a vez de Kode9, patrão da Hyperdub e um dos pais do dubstep, a energia foi logo reposta. Com três decks e um vasto conhecimento de música britânica – pois claro – Steve Goodman serviu principalmente faixas do mundo do Reino Unido, como drum’n’bass, garage e jungle, mas não se esqueceu de brincar com estilos tão distintos quanto trap. Deste lado foi, na realidade, um dos melhores e mais sérios sets que ouvimos deste tipo de sonoridades – e dizer isto não se deve à emoção que Claustro, de Burial, trouxe.

Chegados ao último dia de Semibreve, fomos a correr até o formidável Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho, onde Caterina Barbieri havia atuado em 2018. Este ano, pelas 15h, a multifacetada Félicia Atkinson presenteou-nos com um concerto para fechar os olhos e sonhar – à imagem de muitos outros deste festival, aliás. Muitas vezes a sussurrar ao microfone – ideal para fãs de conteúdo ASMR – a francesa apoiou-se nas teclas, e não só, para nos embalar por completo, numa viagem por vezes difícil de decifrar, mas sempre muito fácil de abraçar.

Novamente no Theatro Circo, domingo prosseguiu com Scanner, um dos dois convidados para conversar no Semibreve – Suzanne Ciani foi a outra convidada – em talks conduzidas pelo jornalista, radialista e diretor do Rimas e Batidas, Rui Miguel Abreu. Numa estreia absoluta, Robin Rimbaud assumiu, pela primeira vez, o controlo modular de um sistema português, o ADDAC System, com a companhia de Miguel C. Tavares no lado visual. Com muita calma e consequente progressão, os dois artistas souberam tomar o público de assalto, agarrando-o a uma história que, deste lado, não permitiu que se escrevessem notas no papel.

Mas independentemente de toda a excelência até então escutada, a estreia de Suzanne Ciani no país era, inevitavelmente, um dos atos mais aguardados de todo o festival. Com um Buchla 200e – é de referir que Ciani conviveu com Don Buchla – um controlador e três iPads, tudo isto projetado numa tela, a mulher de 73 anos, que respondeu aos primeiros aplausos com inúmeras vénias, provou por que razão é uma autêntica pioneira deste instrumento. A perícia da Diva do Diodo escutou-se por toda a sala – afinal, estávamos perante um sistema quadrifónico – através de bleeps e bloops, de atmosferas espaciais que relembravam vento ou ondas do mar e, além de todo um imaginário, da criação de ritmos altamente agitantes. No fundo, Ciani pôs o seu Buchla aos berros (no bom sentido) e, no final, quem quis berrar de deslumbramento foram os espetadores, tal foi o brilhantismo deste encerramento.

O Semibreve é um festival onde se vê um público atento, do qual muitos dos artistas presentes fazem parte, personalidades como Adolfo Luxúria Canibal, estrangeiros que viajam de propósito para o evento bracarense. Nota-se também uma atenção da organização em ter um alinhamento (e respetivos espaços) que, além de se distinguir pela positiva no panorama português, é equilibrado e segue uma linha lógica de raciocínio.

Na sua conversa, no primeiro dia desta edição de 2019, Scanner referiu a importância de conhecer aquilo que os outros fazem e a forma como o fazem. Mas, mais importante do que isso, o britânico afirmou que é preciso ser-se único. Não é essa unicidade a grande virtude do Semibreve?

As fotografias, captadas por Adriano Ferreira Borges, são cortesia da organização

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