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Daft Punk e o revivalismo que trouxe o futuro até ao presente

25 Fevereiro, 2021 - 10:10

Depois do adeus, Vasco Completo revisita a história e o espólio da famosa dupla parisiense Daft Punk.

Há determinados artistas, momentos da história ou correntes sobre as quais é muito difícil continuar a escrever. Já muitos ângulos terão sido explorados, muita tinta, real ou digital, se ocupou em desvendar, analisar, interpretar e revisitar o tema em questão. Falta tempo para ler e ouvir tudo o que terá sido dito. No entanto, temos de nos arriscar na possibilidade de repetir algumas análises quando o assunto é de grande importância. Teremos sempre mais vontade de nos debruçarmos sobre Daft Punk do que teremos medo de ser câmaras de eco.

Cedo reconhecidos pela indústria, tanto a nível de crítica especializada como de audiência, os Daft Punk tornaram-se numa das maiores forças de toda a música popular, hasteando a bandeira da música house e techno que os influenciou e que impulsionou o primeiro trabalho. Tudo depois de Darlin’, claro, o projecto mais rockeiro que partilhavam com Laurent Brancowitz (que viria a formar os Phoenix) e que originaria o nome do duo a partir de uma crítica inglesa, na qual essa banda era descrita como “daft punky thrash”.

“Homework”, com um título alusivo ao trabalho de estúdio caseiro, é ainda hoje um dos mais marcantes discos da música electrónica. Em 1997, um álbum feito por dois rapazes de 22 anos num quarto tornado estúdio recebe nomeações para Da Funk e Around The World para Grammys – credibilizando-os cedo com um destaque de grande visibilidade – e isso só pode ter influência para uma geração que vê a democratização da produção musical crescer a passos largos. Essa ideia de democratização não se perde quando analisamos o material usado na produção deste monstruoso disco, sonicamente impecável, mas é possível reconhecer nessa lista que as possibilidades de Guy-Manuel de Homem-Christo e (especialmente) de Thomas Bangalter estavam bem acima de muitos músicos que começaram também no quarto. Além disso, à data o grupo detinha já um know-how da indústria que os permitiu manobrar algumas maleitas das grandes editoras, muito provavelmente graças à ajuda do pai de Thomas, um artista e produtor de disco dos anos 70, que assinava como Daniel Vangarde.

Esse primeiro álbum, “Homework”, ainda pelos mais puristas visto como o trabalho mais forte do duo, assenta sobre uma electrónica dura e ruidosa, que coloca acid house, disco e hip-hop na mesma sala. No documentário “Daft Punk: Unchained”, Todd Edwards conta como Bangalter era já um criador muito técnico, que chegava a usar o ruído de um cabo ligado à mesa de mistura como se de um sintetizador se tratasse, e isso é sentido no período de “Homework” (Rollin’ & Scratchin’, alguém?). O lusodescendente Guy-Manuel, um produtor acima de tudo intuitivo, dispõe de uma facilidade ímpar em criar melodias incríveis, e esse talento evidenciar-se-ia no trabalho seguinte.

Com “Discovery”, também um dos álbuns mais celebrados do duo, os franceses surpreendem com referências nostálgicas numa odisseia pop, com toques de disco e até influências glam rock e house mais melodioso, e criam finalmente padrões que viriam a ser reconhecidos como marcas incontornáveis da sua sonoridade, jogando com todas as expectativas construídas à volta dos dois músicos. Olhar para o passado, apontando para o futuro, sempre foi o lema dos Daft Punk, e nesse percurso tornam-se na grande referência da french touch, com a típica técnica de side-chain compression (oiçam bem quando kick entra em four-to-the-floor na One More Time para perceberem) além de popularizarem o vocoder à grande escala. É preciso não esquecer que durante um determinado período, entre Daft Punk e T-Pain, ou ainda mais “808s & Heartbreak”, usar vocoder ou auto-tune descarado era difícil sem que alguém pensasse: “isto é Daft Punk, certo?”.

Além do que se ouvia, para este grupo era também muito importante o que se via. No período de “Homework”, Bangalter e Homem-Christo já lidavam com a questão da identidade, demonstrando como o conceito de celebridade os fazia torcer o nariz, comprando máscaras à última da hora, a caminho das entrevistas, reservados e selectivos sobre como a sua imagem passava para lá da cabine – ou do quarto. O início do milénio vê a imagem de Daft Punk renovada: à luz de outras figuras (como se viu algumas décadas antes com os Kraftwerk ou os Kiss, que transformavam a imagem para enaltecer a força e a ideia por detrás de um grupo) os franceses criaram duas figuras robóticas que permanecem hoje no imaginário da música electrónica como uma das referências visuais mais icónicas. Na tentativa de deixar a música falar por Thomas e Guy Manuel, os robots apoderaram-se das suas palavras e intenções e elevaram os Daft Punk a figuras reconhecidas a nível global. Para lá de como os víamos, os formatos em que os víamos demonstravam também um perfeccionismo ímpar. Desde os filmes “Interstella 5555” a “Electroma”, até às colaborações com Michel Gondry ou Spike Jonze.

Normalmente apontado como o disco menos memorável do grupo, “Human After All” – uma fantasia electro-rock que faria os supramencionados Kraftwerk levantar as sobrancelhas – levou o uso do vocoder ao seu extremo, assim reforçando a importância que o instrumento tem para os Daft Punk e a importância que os Daft Punk têm para a popularização do instrumento. Não houve espaço para a banda abrandar, com “Electroma” a transportar ambição e intenção artística (voltando às salas de cinema para o fazer), e com a possibilidade de regresso a concertos como realidade.

Fazer sobreviver uma máquina artística desta dimensão (inevitavelmente comercial) com apenas duas grandes tours, separadas por quase 10 anos, é dos feitos mais fascinantes que podemos apontar a Daft Punk, que em 2006 arrebatam o festival norte-americano Coachella com um dispendioso concerto. Um dos grandes marcos na música electrónica ao vivo, com a sua vistosa pirâmide e imensa quantidade de LEDs, os músicos franceses influenciam toda uma geração na audiência para a vaga de EDM que estava a aparecer, que monopolizaria os alinhamentos de grandes festivais nos anos seguintes. E isto sem os Daft Punk mostrarem particular gosto pelo que estes “filhos” criaram, acusando-os de falta de profundidade e de agressividade em excesso. Para lá do que a componente visual diz respeito, “Alive 2007”, o trabalho discográfico que resulta desses concertos é – à luz de “Alive 1997” – uma fascinante aglutinação de “Homework”, “Discovery” e “Human After All”, que num formato de mistura de DJ set supersónico, faz qualquer um ceder ao universo Daft Punk, chegando mesmo a render-lhes o primeiro Grammy, e estabelecendo também as fundações dessa geração de EDM.

Um luxuoso processo criativo para um gigantesco esforço de último trabalho (sabendo o que sabemos hoje, depois de “Epilogue”) levou a dupla francesa a gravar em estúdios icónicos como o Electric Lady, em Manhattan, com figuras como Pharrell Williams, Todd Edwards, Nile Rodgers, Panda Bear ou Julian Casablancas, afirmando que tencionavam fazer com músicos aquilo que faziam no quarto, 10 anos antes, com sintetizadores, drum machines e sequenciadores – claro, depois da experiência a gravar “Tron: Legacy” com uma orquestra. Num retorno ao típico revivalismo vs futurismo que está na impressão digital da banda, olhando para os anos 70, para o funk, o disco e até o rock mais psicadélico, com temas opulentos como a faixa de 8 minutos Touch (música escolhida para esta despedida), os Daft Punk criam o seu trabalho mais bem-sucedido da sua história. Sem descurar a qualidade sónica da produção que sempre os acompanhou, foram aplaudidos pelo público, pela crítica e pela indústria que os premiou mais do que alguma vez o fez, com Get Lucky na linha da frente como uma das faixas mais ouvidas do seu ano.

Como todos os grandes artistas que chegam a grandes números com a conquista (ou injúria, para alguns) de crossover estilístico, os Daft Punk não têm como escapar a opinião crítica dispersa e extremada. Uma banda que se estabeleceu na electrónica e em todo o universo pop, que chegou a números impressionantes e revolucionou a french touch, que inevitavelmente criou seguidores da sua sonoridade. A sua produção sentiu-se em trabalhos como “Yeezus”, de Kanye West, ou “Starboy”, de The Weeknd, mas podemos ver marcas da sua influência através de vários géneros, em especial na música de dança e no universo mais electrónico.

A nostalgia inata ao término de um grupo à frente do seu tempo obriga-nos a revisitar o seu trabalho. Em casos singulares como o de Daft Punk, mesmo que já muito se tenha dito, é importante olharmos para este como o revivalismo que nos trouxe o futuro até ao presente.

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