“Transmutation” é o novo álbum de ZZY, com quem estivemos à conversa sobre esta música alienígena, transmutação e outros conceitos.
José Veiga é um daqueles nomes de mão-cheia. Sentimo-lo no som, sim, mas também na poesia ou até na retórica. Vive no Barreiro, mas foi na área 313 dos Estados Unidos da América que encontrou casa para o novo álbum. “Transmutation”, que chega com a assinatura de ZZY, saiu este mês pela Detroit Underground.
ZZY é um dos projetos pelo qual José Veiga é mais conhecido. A solo, com este nome, tem vindo a explorar universos mais experimentais, como glitch e IDM, mas não foge do jazz ou de outros caminhos. Juntou-se recentemente a Rafael Duarte na dupla techno ERR0 e também já o vimos ao lado de George Silver, nas incursões de Lunnar Lhamas, ou de Duarte Reis e Gonçalo Morais em Yawn Society.
“Fazer música para mim é tentar quebrar a catalogação, a redução, é expressar-me livremente sem nenhuma ideia pré-concebida, por isso é que eu tento evitar categorias e rótulos nas minhas músicas”, conta-nos a certa altura nesta entrevista.
Tudo está em constante mutação – seja o mundo ou a experimentação de ZZY. E mesmo que, digamos, uma palavra se mantenha a mesma, o significado dessa pode mudar para cada um de nós individualmente. As nossas vivências têm peso na interpretação daquilo que nos rodeia – e por que razão não podemos dizer o mesmo sobre o ser humano e o corpo?
Em parte, o conceito deste trabalho “incide sobre [essa] materialidade do corpo e as suas infinitas possibilidades de reconfiguração.” Neste disco, explica-nos Veiga, há “relação entre a máquina (físico) e o digital (abstracto)” – desde o uso de sintetizadores ao de computador – mas há também uma relação homem-máquina clara, qual ciborgue de Donna J. Haraway, para descobrir ao longo da escuta.
Via email, ZZY falou-nos sobre estes e outros pormenores, como podes ler na entrevista abaixo. Mas atenção: há muita vida alienígena neste “Transmutation”.
Que transmutação é esta que se lê no título do teu novo disco?
Transmutação é um conceito amplo, que para mim significa expansão quer a um nível material, quer a um nível metafísico. Penso que neste trabalho em concreto, o conceito em questão incide sobre a materialidade do corpo e as suas infinitas possibilidades de reconfiguração. O corpo pode ser encarado como um objeto em constante transformação e modificação, num permanente processo de identificação com o mundo material e imaterial. Transmutação é abraçar o indefinido, a volatilidade do espaço e do tempo, enquanto seres humanos estamos em constante transformação, o nosso entendimento sobre as ideias e as coisas muda com as experiências vividas e as circunstâncias com que nos deparamos.
Por exemplo, conceito de género (e a realidade social que este comporta) imbrica-se, indubitavelmente, com os múltiplos significados transmutativos, o género é uma construção, é uma criação de significado, é criar sentido e propósito num mundo que se define, promovendo uma relação multívoca entre o corpo, a mente e o mundo metafísico. Eu decidi simplificar todos estes conceitos com a produção deste álbum, criando um novo planeta em que vivem criaturas alienígenas, em que o conceito de género não existe. Os corpos andróginos que vivem neste mundo ficcional transmutam-se com as máquinas e a tecnologia, transformando-se num só, num permanente processo expansivo.
O teu processo de criação também sofreu ou tem sofrido essa transmutação? Como é que se desenvolveu a composição deste álbum?
A meu ver, o processo de criação, apesar de não ter sido de forma intencionada, comunica com o conceito central do álbum. Desta vez, decidi explorar, de uma forma mais aprimorada, a relação entre as máquinas e a tecnologia, o que me levou a utilizar sintetizadores analógicos, caixas de ritmos e outros sistemas concretos, mas nunca deixei de utilizar o computador e as suas infinitas possibilidades de criação (sintetizadores virtuais e processamento de efeitos, por exemplo).
Acho que a relação entre a máquina (físico) e o digital (abstracto) está bastante evidente neste projecto, o que de alguma forma pode contribuir para fortalecer a ideia de ‘transmutação’. Acho que numa era tão indefinida como a que estamos a viver, repleta de problemas sociais, crises económicas, tensões políticas, conflitos tensos imprevisíveis; é difícil esculpir um futuro. É extremamente árduo conseguir imaginar um cenário futurista pelo menos de uma forma palpável, com contornos mais ou menos definidos, o que me leva a aventurar pela síntese sonora, pelo experimentalismo, aplicando diferentes técnicas e processos criativos, numa tentativa de encontrar uma espécie de “revelação”. A transmutação, afinal, pode levar-nos a abraçar o caos, o inesperado, ditando a urgência de desenhar e conceber um novo mundo, um novo corpo, uma nova realidade que dê de alguma forma um propósito à nossa existência.
Neste trabalho volta a haver muito glitch, mas recentemente também te vimos a explorar techno, entre tantos outros caminhos que percorres. O que é que te motiva na produção de música eletrónica? Como te desdobras em tantos trilhos?
Mais uma vez, vou tentar justificar-me com a ideia de ‘transmutação’ (risos). Acho que o que me define enquanto artista é não ter nenhuma definição. Num mundo altamente complexo, e imprevisível, tentamos sempre de alguma forma catalogar as coisas que nos rodeiam: masculino e feminino, sol e lua, dia e noite, limpo e sujo, duro e mole, quente e frio, e por aí fora. Há uma tentativa de simplificar o mundo, tentamos reduzi-lo porque não compreendemos a sua complexidade e, por vezes, abraçar o desconhecido pode ser um processo assustador. O ser humano procura, incessantemente, encontrar uma explicação para o que desconhece, seja através da ciência, da religião, da metafísica, da arte, ou de outra “ferramenta” qualquer e a tentativa de reduzir o mundo pode desencadear a erupção de problemas sociais, de crises com o “eu”. De certa forma, vivemos rodeados por uma dicotomia dominante que nos divide, que nos separa, que nos superioriza ou inferioriza, que nos reduz.
Fazer música para mim é tentar quebrar a catalogação, a redução, é expressar-me livremente sem nenhuma ideia pré-concebida, por isso é que eu tento evitar categorias e rótulos nas minhas músicas, não sei se faço glitch, IDM, techno, bass music, ou outra coisa qualquer, a catalogação pode ser variável e ficar ao critério do ouvinte. O meu objectivo é, simplesmente, explorar e descobrir novas possibilidades de se trabalhar o som, aumentar o campo do possível e maravilhar-me com essas descobertas. Recentemente, comecei a construir o meu sintetizador modular e acho que é uma ferramenta que me permite ampliar essas possibilidades, o imprevisível torna-se mais atingível (risos), permitindo-me abraçar o “caos”.
O amor pela música ainda tem o mesmo significado para ti? Isto tendo em conta o conceito de mutação, esse bicho que altera significados com o passar dos tempos.
É uma relação de amor/ódio. Às vezes, sinto-me como um prisioneiro numa cela porque tenho sempre novas ideias para fazer música, como se as ideias nunca parassem de emergir no meu inconsciente e eu tento a todo o custo preservar a minha humanidade, ou seja, preciso de tempo e espaço para me curar do processo extenuante de fazer música. Em certos momentos, o amor pela criação é profundo, e noutras posso de alguma forma estar num conflito com o processo de fazer música, o que me leva a desenvolver uma espécie de musicofobia, em que o amor se transforma em medo. Tanto posso ser, em certos momentos, um melómano, como alguém que vive assustado pela experiência de se confrontar com sons, não têm que existir no concreto, pois por vezes tenho experiências em que estou a ouvir sons – ou até mesmo músicas inteiras, estruturadas, que só existem na minha cabeça.
E o que é que te inspira no dia-a-dia? Na vida, na música, no que quiseres referir.
Tanta coisa. É difícil simplificar. Pode ser um filme que assisti, uma conversa que tive com um amigo, uma memória antiga fugidia que tento a todo o custo reconstruir, um livro que li, uma experiência que vivi ou até mesmo posso tentar recriar uma experiência que outra pessoa viveu (seja conhecida ou desconhecida). Nunca é a mesma coisa, pode ser tanta coisa a inspirar-me. Tendencialmente, eu não gosto de repetir as mesmas coisas e os mesmos processos, tenho a necessidade de experimentar novas histórias e novos sons, sou um eterno insatisfeito e vivo nesta eterna insatisfação à espera de encontrar um pequeno vestígio que me console (que nunca chega a aparecer). Acho que vivo numa espécie de paradoxo e nunca estou satisfeito com as músicas que faço, sabe-me sempre a pouco, procuro sempre fazer mais e viver uma nova experiência que me complete.
Fazes parte de projetos como ERR0 e há uma pergunta que gosto sempre de fazer: o que ganhas com o trabalho colaborativo?
Faço parte do projecto ERR0, de Yawn Society e de Lunnar Lhamas. Acho que é sempre gratificante quando se trabalha com outras pessoas, somos todos diferentes e cada pessoa tem a sua particularidade e uma maneira própria de fazer as coisas. Acho que a troca e a partilha de experiências são essenciais para um processo de aprendizagem. No meu caso, em específico, é muito importante colaborar com outros artistas, pois considero-me um indivíduo solitário e um pouco individualista. Colaborar com outros artistas obriga-me a sair da minha ‘zona de conforto’, é uma espécie de remédio para o meu individualismo exacerbado e é uma escola pois há sempre algo novo que aprendo, tornando-me mais rico e ampliando o meu conhecimento e entendimento sobre as coisas, tanto artisticamente como a nível humano.
Fotografia de capa por Federico Ienna
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