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N’A CABINE #027: DJ Ze MigL

31 Julho, 2020 - 11:55

Temos o privilégio de receber no nosso podcast um dos nomes mais experientes da cena techno portuguesa: DJ Ze MigL.

Andava no quarto ano quando, “completamente por acidente”, ficou responsável por passar música numa festa da escola. Desde então, nunca mais parou e é, hoje, uma autêntica referência no panorama português. Mas o percurso de José Miguel Silva não se resume ao DJing: o seu primeiro disco saiu há mais de 20 anos e já lançou por inúmeras labels ao longo da carreira, da extinta Squeeze até à UKR.

Sabe mais sobre DJ Ze MigL na entrevista abaixo, enquanto ouves este set do veterano, que escolheu autênticas gems, faixas portuguesas e próprias, entre outras, para nos fazer vibrar durante mais de duas horas.

Consegues lembrar-te do teu primeiro contacto com o mundo da música eletrónica?
É muito difuso, quando comecei a ter alguma noção do que ouvia em miúdo percebi que sempre gostei de coisas mais acutilantes e electrónicas. Mesmo quando mais puto, a tendência era mais o hip hop, break dance, e inevitavelmente alguma cheesy synth pop. Coisas como Buffalo Gals, Pump Up The Volume, Woodpeckers From Space, “Beat Street”, algum punk, Kraftwerk, Baltimora, Paul Hardcastle, etc… O meu pai ouvia muita música, de tudo um pouco, e eu ia ouvindo e absorvendo sem nunca prestar muita atenção. Desde Zeca Afonso, Bonga, Bee Gees, Pink Floyd, Mike Oldfield, Simon & G., nada propriamente de nicho mas muito diverso e essencialmente alegre.

E a aventura no DJing, quando e como começou?
Perfeitamente cliché, o click foi por volta dos 9-10 anos numa festinha da escola no fim da quarta classe, completamente por acidente, mas ficou o bichinho. Na dita festa fiquei responsável pelo “tijolo” e levar a música. Daí para a frente quis sempre ser eu e passei activamente a procurar música, a estragar o velhinho gravador de bobines, os botões de pause dos gravadores, ligar duas aparelhagens uma à outra. Só lá para os 14 é que tive uma mesa de mistura Alecto (super básica), e finalmente aos 15 os meus primeiros MK2 com pitch. Custou a habituar-me, antes disso era o dedo no rótulo. Foram uns anos “no armário” sempre a aprender e treinar. As primeiras festas de bairro foram por essa altura (a maior foi no fim-de-ano 90-91), no ginásio do bairro, uma coisa grandinha, já foi só com acid house, e já comigo armado em primadona a recusar tocar Rock/Pop/El Chato e similares, teve de ser um amigo mais festeiro a fazer essa metade. Correu bem, como era fim-de-ano já estava tudo alegre e mais tolerante.

Mas a sério, mesmo, foi a partir de 92-93, embora nunca tivesse por ideia alguma vez fazer vida disto, tinha entrado no ISEG. Mas veio a aprendizagem e gosto pela produção também e a música acabou por engolir tudo. Não se ganhou grande artista mas perdeu-se ainda menor economista.

Quais foram as tuas maiores influências, se é que as tiveste?
Muitas embora eu seja “pouco” fiel a produtores, no sentido em que tento ouvir “cego” – ou seja, só me interessa saber quem produziu depois de ouvir e gostar ou não! – mas inevitavelmente há nomes dos quais gosto mais frequentemente das suas produções. A minhas influências misturam o lado mais chicago/hip house/ghetto de labels como a Dance Mania/Trax, com o lado Europeu R&S, XL Recordings. Produtores como Joey Beltram, Umek, Surgeon, Regis, DJ Rush, Deeon, Dj Funk, the Advent, Dave Clarke, Neil Landstrumm, Hard Floor.

Qual é a sensação de ver alguém como o Truncate a considerar-te uma influência?
É sempre uma surpresa e algo surreal. Apesar de não desconhecer que fiz alguma coisa marcante, e em labels com bastante destaque na altura, com um mundo ainda sem redes sociais, net em pré-natal e a informação escrita estrangeira de difícil acesso, a percepção das coisas, ou seu impacto, era sempre muito difusa.

Por outro lado eu sempre fui um bicho raro, fui notívago Q.B. mas o tempo livre era para produzir, explorar, praticar e aprender. Habituei-me a não ser consensual, a estar fora do trend, fazendo a minha coisa que tem um bocadinho de tudo mas não se insere 100% num único movimento ou sub-género. Nesse sentido nunca me deslumbrei, sempre fui muito egoísta, no sentido em que faço para mim, e como tal o mais normal era estar rodeado de pessoas com gostos diferentes, por isso para mim o default é não gostarem do que eu faço, ser demasiado forte, radical ou abrasivo, e sempre convivi bem com o facto. Mas as coisas vão acontecendo e de repente o teu primeiro disco já saiu há mais de 20 anos. É sempre uma honra e uma agradável surpresa quando muitos dos teus heróis conhecem o teu nome e te perguntam como fizeste esta ou aquela faixa. Na minha cabeça, apesar dos pêlos brancos na barba, continuo aquele puto que faz “cenas maradas e fortes” que ninguém curte, é sempre uma alegria quando encontro alguém tão xoné como eu e que partilha essa alegria quase infantil de gostar das mesmas coisas.

Numa atuação, o que procuras fazer enquanto DJ?
Procuro sempre fazer o meu melhor. Eu sou um completo e assumido egoísta: toco para mim, toco as faixas que acho melhores e tento que tudo encaixe. Gosto de pensar como um produtor e do prazer que dá transformar algo que é apenas uma boa secção rítmica, ao qual juntas outro tema que é fraquito, mas que tem uma sequência de sintetizador muito boa e, quem sabe, umas vozes muito funky que quebram a rispidez de um kick avassalador ou um sintetizador completamente alucinado… Aquele momento em que baixas um fader e parece que as coisas deixam de fazer sentido, mas assim que trazes de volta até um leigo sente aquele click, o momento em que tudo se conjuga. Esses momentos mágicos em que sentes que estás a criar e o público explode em reacção.

A minha “mala” é relativamente intransigente no que lá entra, por isso não tenho problemas em tentar conquistar quem tenho pela minha frente. Procuro que agrade, agarre e depois conduzo para onde quero que estejam comigo, não sou capaz de estar sempre no mesmo sub sub-género. Gosto de brincar com as expectativas e brincar, gosto de humor nos sets também.

Isto dito assim parece altamente cerebral e filosófico mas não é, quero sentir tudo a vibrar de início ao fim, uma experiência também intensamente física para, no fim, estarmos extenuados mas com um sorriso nos lábios. Não gosto muito de música “shoegazing” – quero que os meus sets sejam o absoluto oposto.

E para um podcast como este, como te preparas?
Oiço as promos que tenham chegado, organizo. Acabo alguma coisa que esteja já nos últimos detalhes (originais, remixes ou edits) de produção. Vou à lista das últimas 200 faixas e retiro o que toquei recente ou frequentemente. Vou à lista das faixas MUST absoluto e aproveito umas quantas que se encaixam, e que não uso há algum tempo, para ter sempre um ou outro clássico (que não seja óbvio, ou um edit, bootleg, etc..). Faço uma pasta com umas 200-300 músicas. Vou à casa de banho, bebo água, desligo o telefone e ponho a volume “alto” e ponho a gravar. Depois dou tudo!

Além de misturar discos, és também um prolífico produtor. Como anda a tua relação com a maquinaria hoje em dia? Podemos continuar a contar com lançamentos teus durante os próximos tempos?
Por via da minha profissão (distribuidor para muitas marcas de áudio – produção/DJing/PA/broadcast) estou sempre colado nas novidades, o meu “estúdio” é uma anedota pois nunca está igual mais que 2-3 semanas. Por um lado é bom, por outro estou sempre a ter de usar o que tenho naquele momento à mão, e com isso aceitar as restrições. Sou forçado a ser versátil e a depender das ideias mais que do equipamento.

Estive muito parado entre 2008 – 2013, e antes disso, desde 2000, foi sempre a desacelerar. Tive lojas ligadas à cena electrónica (Dance Planet de Lisboa e depois MK2), formação, aluguer de equipamento, instalação etc… e inevitavelmente entre a família e um trabalho tão exigente acabas por ir deixando para trás aquilo, que, apesar de amar, não era o meu sustento. O techno também esteve mais estrangulado pelo house, tribal, depois minimal, electro clash, shranz, etc… e ir fazendo um remix de vez em quando, 2-3 discos por ano e 1 gig por mês ia matando o bichinho.

Quando passei só para a distribuição e os filhos foram crescendo um pouco mais, a alocação do tempo passou a ser diferente. Aceitei o digital como inevitabilidade, e voltei a produzir mais. Os últimos 2-3 anos foram anos em que produzi muito mais que qualquer outro da minha vida. A facilidade de enviar coisas para remixes, submeter a música às editoras e mesmo a rapidez com que as coisas estão cá fora permite tudo isso. Para não dizer que, desde que tenha comigo nem que seja apenas um computador, posso produzir quando me dá vontade, em qualquer hora e local. Traduzindo, pelo menos 1 EP, remix ou participação em V.A. é sempre garantido que todos os meses há notícias, mesmo algum vinil é agora mais frequente que nos últimos anos antes de ter “parado”. Force Inc., UKR, 898, Shmob, Sticky Ground, Naked Lunch, Mind Burn, Jack Trax on Wax, etc…

Acompanhas a cena portuguesa há muitos anos – como é que encaras o seu estado atual?
Sem falar no covid, que vejo com grande apreensão, vejo que finalmente temos muitos produtores e DJs com muita qualidade, cada um na sua vertente e com personalidade. Por outro lado continuamos a sofrer dos mesmos problemas, falta de unidade e colaboração, falta de respeito uns pelos outros, especialmente falta de respeito e confiança em nós mesmos. Quando deixarmos de nos surpreender que determinado produtor seja tuga ou que isso seja sequer uma questão estaremos no bom caminho. O pseudo elitismo sempre foi o nosso calcanhar de aquiles. Aguardo o dia em que a malta perceba que não tem de gostar da música um do outro para respeitar o trabalho, e que a colaboração resulta mais que a compartimentalização.

O trabalho fala por si, a dificuldade está cada vez mais em ter espaço para o mostrar e ter personalidade. Eu tento sempre ouvir e estar atento ao que vai aparecendo, sempre usando a máxima de que “o que conta é o que estou a ouvir” e não quem produziu ou tocou. Já ouvi trabalhos que me impressionaram e mandei uma mensagem ou email a dar os parabéns, com isso já fiz amigos, parcerias, troquei conhecimentos, informações (não se aplica apenas a Portugueses)… no fim ficas mais rico de todas as formas, mais música, mais amigos e até ficas saber onde estão alguns idiotas ahahaha.

Relativamente à situação presente, enquanto não percebermos que a música puxa ao convívio, ao toque e à proximidade não vamos conseguir andar para a frente. Temos de aceitar que qualquer responsável sanitário ou político terá dificuldade em aceitar um espaço onde não se garanta que não podes beber uns copos ou “meter umas cenas” que baixem a inibição social. Os artistas terão de receber muito pouco ou participar no “negócio” para conseguir pagar um evento com um terço da lotação e sem venda de bebidas alcoólicas. Garantir a ausência de quaisquer outros “excitantes” é necessidade absoluta mas de muito difícil controlo.

Só espaços ao ar livre, com áreas de alguns 2m2 por pessoa, ou então com fatos especiais quase do estilo Hazmat, e com uma espécie de festa da espuma à entrada e saída (com sabão à séria). Por outro lado se as coisas se prolongarem por mais um vez vejo um retorno às bases, ao underground, a pureza de fazer pelo prazer e não pelo sucesso. Além de que esse retorno com menos público desinteressado, mas que vai porque é cool, vai obrigar os artistas a dar o litro outra vez.

Ou se cobra muito mais em eventos mega VIP com cabinas quase individuais e mordomias, ou não vejo como os mega-DJs das buzinas e confettis, e mesmo muitos dos cabeças de cartaz papa-festivais, se vão safar. Terá de haver muitos países sem restrições para que não haja mudanças profundas a esse nível.

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