Mais do que um novo disco, “The Inflationary Epoch” é um novo convite para o mundo de Rita Silva.
Em 2021 estava a lançar o primeiro trabalho a solo e rapidamente se tornou num daqueles nomes para manter debaixo dos ouvidos. E se há mais de um ano estava a apresentar esse lado académico em “Studies Vol. I”, hoje Rita Silva mostra uma história ainda mais coesa e viciante em “The Inflationary Epoch”.
O novo álbum chega com selo do Colectivo Casa Amarela, ligação que surgiu de um “processo natural e espontâneo”, e tem como “analogia principal” o “processo constante de evolução e transformação.” E não falamos apenas de sintetizadores ou de módulos, essas “entidades vivas” que não são “100% domáveis”, mas também da visão da própria Rita Silva, que nunca esconde o gosto que tem pelo campo académico da música, tanto que ingressou recentemente no Instituto de Sonologia, na Holanda.
Outrora conhecida por ser parte da dupla The Last Departure, Rita Silva bebe das mulheres pioneiras da eletrónica, como Laurie Spiegel ou Delia Derbyshire, mas também de Caterina Barbieri ou Jessica Ekomane. À Threshold, não escondeu o gosto pela portuguesa Clothilde. À A Cabine, revelou o apreço por discos como o seminal “Plux Quba”, de Nuno Canavarro.
Mas independentemente daquilo que Silva procura, ouve ou estuda, há um lado próprio na sua música, um carisma que se vai imprimindo em cada detalhe. Pede-se tempo e espaço e é isso que se tem em trabalhos como este. Expansivo, rico, convidativo.
Este sábado, dia 15, Rita Silva é o grande destaque da noite na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Antes ou depois disso, podes saber mais sobre Rita Silva e sobre este disco nesta entrevista, realizada via email.
O teu trabalho de estreia a solo, “Studies Vol. I”, chegou como uma espécie de compilação de estudos, mas é muito rico e chamou a atenção de muita gente no país. Como foi receber tanto apreço?
Foi particularmente inesperado, para ser sincera. Eu sabia que aquilo no fundo eram maioritariamente trabalhos académicos e um pouco o reflexo do que eram os meus interesses na altura em que estava a começar a estudar música electrónica. Lembro-me que o documentário “Sisters With Transistors”, que saiu na altura, foi particularmente importante para eu querer dar continuidade a todas as mulheres pioneiras da electrónica. Nunca pensei que a adesão fosse tão boa, nem que houvesse tanto interesse por este nicho.
Talvez esteja enganado, mas sinto que este “The Inflationary Epoch” quase soa a álbum de estreia. Como é que foi todo o processo de compor este disco?
Um bocado, já não são trabalhos académicos, muito longe disso. Foi um processo que começou quando comprei os meus primeiros módulos e fui experimentando com eles. A partir daí, foram surgindo datas para me apresentar ao vivo e acho que isso me foi ajudando a perceber o que me dava mesmo gozo tocar. Eu encaro o sintetizador como uma entidade viva, nunca é 100% domável e adoro isso. Dificilmente dá para replicar a mesma coisa duas vezes, então fui explorando padrões melódicos que se transformavam e todo o disco gira à volta disso.
Nas tuas palavras, como descreves este disco? E o que é que significa para ti?
Acho que é o meu disco mais pessoal até ao momento. Todas as músicas presentes no disco estão em constante mutação e é isso que sinto que me tem acontecido nos últimos anos, desde que comecei a estudar música electrónica. O título “The Inflationary Epoch” refere-se a uma teoria que descreve um período de evolução exponencial do Universo e todas as músicas têm um título relacionado com isso. A Laurie Spiegel tem um disco com um título semelhante, “The Expanding Universe”, e é até hoje o meu disco preferido. Diria que ela é a minha maior heroína e influência da música electrónica. Mas a analogia principal deste disco é o processo constante de evolução e transformação. Tenho a agradecer a todos os meus professores, colegas, amigos e família que, no fundo, foram e continuam a ser a maior força para essa evolução.
Pela altura do “Studies Vol. I”, citavas Laurie Spiegel e Delia Derbyshire. Hoje tocas também em nomes mais recentes, como Caterina Barbieri e Jessica Ekomane. Em que medida é que estas mulheres fortes da eletrónica te inspiram? Sentes que tiveram peso na conceção do teu novo trabalho ou são, digamos, uma fonte de inspiração mais espiritual?
Num mundo predominantemente dominado por homens, acho que é bom relembrar que existem mulheres de peso na área e que são muito responsáveis pela herança histórica da música experimental. Hoje em dia penso que a Barbieri é talvez um dos nomes mais fortes, e tem motivos para o ser. Ela também estava a navegar pelo mundo académico da música electrónica quando começou a editar os seus primeiros trabalhos, que eram maioritariamente estudos. Penso que seja um processo natural. Ir à procura dos primeiros registos, estudar a fundo os compositores pioneiros e ir evoluindo a partir daí. Vai haver sempre inspiração daquilo que estudamos e nos vamos identificando mais.
Eu tive o prazer de ver a Barbieri ao vivo aqui na Holanda durante o Rewire este ano, e foi um daqueles concertos que sei que me vai ficar na memória muito tempo. Há um efeito cognitivo muito interessante que acontece quando somos expostos a padrões que se repetem ao longo do tempo. Isto já vem do tempo do minimalismo associado a Steve Reich, mas há muitos outros estilos de música que também provocam este efeito, como o trance ou o techno. É um dos focos do projeto de investigação que estou a trabalhar este ano e, por isso, sim, há uma fonte de inspiração bastante assente no meu trabalho, mas o meu fascínio prende-se mais a fatores do foro cognitivo do que a nomes neste momento. Se algum dia surgir a possibilidade de conhecer a Barbieri pessoalmente, é um dos tópicos que gostaria de conversar com ela.
“Há um efeito cognitivo muito interessante que acontece quando somos expostos a padrões que se repetem ao longo do tempo”
Para mim, há um lado melancólico nos três temas que ouvi em “The Inflationary Epoch”. É só a música que te inspira? Ou há momentos do teu dia-a-dia ou da tua vida que tenham influência num trabalho como este?
Penso que é um reflexo de mim própria. Não sou de todo uma pessoa extrovertida, muito pelo contrário. Adoro o conforto de casa. Este ano tem sido completamente louco, mudei de escola, de país, a minha rotina mudou a 100%. Há alguma bittersweetness cá dentro, por incrível que seja a experiência de estar no centro da Europa. Então, apesar de me sentir extremamente grata e realizada no momento, não deixo de sentir aquela saudade do meu país, dos amigos, da família. E da comida e do bom tempo, claro. Alguns temas foram escritos e gravados já depois de me mudar para a Holanda, então acho que ajudaram a definir o tom do disco.
Como é que chegaste ao Colectivo Casa Amarela e o que significa para ti editar neste selo?
Foi um processo tão natural e espontâneo que pareceu o “certo” em todos os sentidos. Conheci o Bruno e a Mafalda há cerca de um ano, quando estava a estrear-me ao vivo a solo na Cosmos, em Lisboa. A partir daí fomos falando, e o CCA convidou-me para tocar no Jejum, um programa da curadoria deles para a Rua Das Gaivotas 6, e mais tarde surgiu o convite para dar um workshop de síntese modular na Madeira, através do MadeiraDIG City Sessions. Ao longo do tempo eles acabaram por tornar-se bons amigos e eu tenho imenso respeito pelo excelente trabalho que eles têm feito, então pareceu-me mais do que certo editar este trabalho através deles.
Em 2020, aquando do lançamento de “re_encounters”, da tua dupla The Last Departure, falavas sobre o “abraçar de novas descobertas”. O que descobriste desde então? Continuas nesse processo?
Foi uma altura engraçada, ainda não sabia muito bem o que queria na altura, estava ali num limbo e ia explorando diversos géneros musicais. O “re_encounters” surgiu dessa experiência coletiva e foi um momento-chave para pouco tempo depois decidir o rumo que queria tomar e editar o “Studies Vol. I” em nome individual. Penso que ninguém sabe muito bem o que gosta e o que quer sem arriscar um bocadinho primeiro noutras “mares” e ver o que acha. Não tenho grande vontade de voltar a esse projeto, até porque me fui desligando muito dele à medida que ia abraçando cada vez mais a vertente académica da minha área. Acho que este processo ainda decorre, e possivelmente não vai acabar tão cedo. Desde que me mudei para a Holanda, todas as semanas há eventos, festivais, concertos, etc. Há sempre coisas novas para descobrir.
Um novo passo na tua vida é estudar no Institute of Sonology. Sei que em parte já conhecias o lado académico pelos teus estudos em Castelo Branco, mas que impacto tem tido essa escola na tua vida e na tua música?
O maior responsável por eu ter descoberto o Institute of Sonology foi o meu coordenador de curso em Castelo Branco, o Rui Dias. Ainda estava no primeiro ano da licenciatura na altura que ele me sugeriu vir cá fazer um ano. Esta escola está intrinsecamente ligada ao aparecimento da “Elektronische Musik” que se sucedeu na década de 50 na Europa Central. É um marco histórico, e passaram pelo Instituto vários compositores muito importantes. Tenho acesso a equipamentos que vieram da altura do estúdio da Philips, com filtros e osciladores incríveis, gravadores de fita, etc. Isto é o paraíso para uma pessoa como eu, sinceramente.
Diria que é possível que surja um “Studies Vol. II” nos próximos tempos. Há muitas técnicas que estou a descobrir por aqui, como wave field synthesis, acousmatic music, instalações sonoras, etc. Estou um tanto fascinada e cheia de ideias para trabalhos.
Obrigado por este momento, Rita. Para terminar, uma pergunta mais solta: que discos têm corrido pelos teus ouvidos e nos aconselhas a ouvir?
Obrigada eu. Assim por alto, estes são os discos que me vêm à cabeça e que tenho andado a ouvir mais:
Laurie Spiegel – The Expanding Universe
Sky H1 – Azure
Nuno Canavarro – Plux Quba
Tristan Arp – Sculpturegardening
Caterina Barbieri – Spirit Exit
Marina Herlop – Pripyat
Lorenzo Senni – Scacco Matto
Luis Fernandes – A Guide to Getting Lost
Amnesia Scanner – Another Life
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