AUTOR

João Viegas

CATEGORIA
Entrevista

Van Ayres: entre a ficção e a realidade

17 Março, 2020 - 16:46

Conversámos com o artista sobre o seu “open world” e escutámos em conjunto o seu último registo “Final Spirit”, lançado no início de fevereiro.

Combinei encontrar-me com Rafael “Van Ayres” na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa ao início da tarde enquanto ele esperava por uma aula da pós-graduação em Arte Sonora. “Final Spirit” tinha sido lançado duas semanas antes, numa sessão de escuta coletiva no Barreiro (cidade que recentemente o acolheu) organizada pela Out.ra, associação cultural prolífica que se cimentou como um dos pólos essenciais de expressões sonoras dissidentes fora da capital. Com o objetivo de estimular a criação artística nos subúrbios, esta associação promove desde 2016 uma bolsa de criação sonora, tendo Van Ayres sido o artista escolhido no ano passado.

Este lançamento sucede “Sorry Stars”, o seu último longa-duração, onde o artista começou a arquitetar um universo muito singular e a explorar esta sua identidade artística. Assumidamente inspirado por ficções e videojogos, pedi-lhe para descrever que tipo de jogo seria Van Ayres: “Man… seria sem dúvida um open world.” Esta resposta serve de mote para as duas horas que se seguem.

Liberdade e possibilidade são dois conceitos-chave para compreender o seu trabalho, posicionando-o no limite entre a ficção e a realidade: Van de vampiro, Ayres de apelido. O interesse nos videojogos resulta de, como nos diz, “existirem determinadas regras predefinidas e depois teres de fazer a tua cena com elas, e eu às vezes também preciso de regras.” Podemos com facilidade transpor esta visão para a música, que se organiza também segundo um conjunto de regras, e a partir do momento em que as temos presentes conseguimos criar universos infinitos.

Na sua música encontramos vestígios da configuração atual do mundo: uma pluralidade de informação e frequências sonoras que, por vezes, se atropelam para chamar a nossa atenção, em contraste com momentos mais meditativos e contidos onde é possível encontrar conforto no meio da desordem. Quando lhe pergunto que tipo de música tem ouvido, responde-me: “Existem bué estímulos, então tenho ouvido mais ambient e cenas com piano, curto bué de piano. Ultimamente preciso de cenas calmas, e ambient tem aquele efeito de terapia, sabes…?”.

A iminente crise de habitação que se vive em Lisboa fez com que Rafael se tenha mudado para os subúrbios. Por oposição a este clima hostil, onde o sistema económico se encarrega de asfixiar maneiras de existir mais comunitárias e DIY, a cena eletrónica continua a florescer e a multiplicar-se. Quando lhe pergunto como ele vê o estado da cena lisboeta, apesar do respeito e conhecimento que demonstra por tudo o que está a acontecer, prefere chamar a minha atenção para a falta de articulação entre grupos: “Mas também percebo, é bué complexo. Às vezes, certas colaborações nem sequer fazem sentido… mas não sei. Há dias em que acordo com um pensamento mais político de chamar todos os coletivos e pensar numa solução, tipo um sindicato, uma cena do género, entendes? É que é bué difícil fazer música, e vejo o pessoal a passar muito mal. E se não fosse a Out.ra, e o apoio da GDA, este disco também não tinha acontecido.” Estas questões de habitação e precariedade acabam inevitavelmente por ser o background do álbum, lugar de onde o artista consegue escapar através desta fantasia sónica onde lhe é permitido sonhar com outros lugares mais soalheiros.

Apesar de conseguirmos encontrar uma grande coerência estética e sonora em tudo o que apresenta, o que faz com que facilmente lhe reconheçamos a autoria da faixa que estamos a ouvir, diz-nos sobre a sua maneira de criar: “A conceptualização não é um ponto de partida. Às vezes segue esse caminho quando faz sentido, mas funciona mais por fluxos.” O material, por isso, é visto também como apenas uma ferramenta para desbloquear o acesso a estas vontades e saberes, mais ou menos conscientes. Este álbum foi gravado apenas com um gravador de cassetes, microfone e PC. “Não acho que o equipamento interesse muito. No outro dia estava a ler comments de hate no Boiler Room da Odete e a pensar como é possível se aquilo está bué potente.” Esta atitude, herda-a do seu passado em bandas onde o espírito era “reunir um grupo de amigos, tocar música, gravar no Audacity e logo a seguir as músicas estavam prontas para ser lançadas.”

Para tentar compreender melhor as suas referências, perguntei-lhe, se pudesse, a quem gostaria de mostrar este álbum. “Vivo ou morto? Pode ser qualquer um? Então, morto, gostava de mostrar este álbum ao Hiroshi Yoshimura; ao Stravinski, que ando a ouvir bué. Vivo, Sakamoto, mas Sakamoto quando era mais jovem; ao Foodman, também. Acho que ele ia curtir.”

“Final Spirit” é feito por faixas compostas pelo artista durante o período de cinco anos, entre 2014 e 2019, numa procura constante pela satisfação com o material. Acabámos por sentar-nos no chão do estúdio polivalente na Rua da Gaivotas 6, para onde nos deslocámos, a trocar impressões enquanto o disco tocava.

Crash é o tema de abertura, onde, entre massas de energia que colidem, se abre um portal cheio de luz com melodias que nos transportam para um épico jingle de abertura. As vozes indecifráveis dão as boas-vindas e convidam-nos a encontrar um lugar para nos instalarmos. Um kick frenético anuncia a entrada de Military Band Goes Wild, seguido de um sintetizador dissonante que nos deixa em suspensão num coro de instrumentos de sopro que culminam num sequenciador cristalino paliativo onde a faixa vai buscar o corpo para cumprir a sua função. My Footwork sucede-lhe, e, apesar do título bastante descritivo, rapidamente esta composição foge do anunciado e se (i)materializa num ambiente etéreo. “I love footwork. Foi uma cena que me tocou bué. Porque surgiu de uma comunidade grande de bailarinos que pediam aos produtores para fazerem tracks mais rápidas, e interessa-me esse espírito de simbiose e de troca em comunidade. Sinto que, cada vez mais, a única maneira de sobreviveres é estender o teu ‘eu’ a uma comunidade ou família. Na altura pensei em como é que eu faria uma track de footwork. E no início da track tentei replicar a vibe e depois seguiu outro caminho”, explica-nos Van Ayres.

Cupido é um dos momentos mais experimentais deste trabalho. São precisas várias audições para conseguirmos organizar este conjunto de sons que se interpelam. É interessante perceber como também a sua construção fugiu do registo habitual: “Estava a procurar na net ferramentas de fazer músicas e encontrei um sequenciador que funcionava com uma grid onde metias um quadrado, e cada vez que esse quadrado tocava numa parede fazia um som. A base da faixa foi toda feita nesse software.” Pulse Dip começa com um sample que se vai tornando cada vez mais percetível, e onde conseguimos distinguir relatos de sobreviventes do massacre de Orlando. “Esta foi a primeira vez que trabalhei um sample. Acho que sempre que usas um sample estás a entrar noutro universo, por isso, eu não queria escolher algo random. O voguing sempre foi uma cena que achei linda, e depois comecei a pensar sobre esta relação entre um beat mais festivo e a entrevista, um relato mais desesperante, que acabou por se tornar neste tema, a falar de resiliência e resistência.”

Sobre Ballet, a faixa que se segue, diz-nos: “Um amigo meu no outro dia disse que eu usava bué estes tambores, e é verdade, curto bué destes tambores. Têm um som bué bright. Pensei numa conversa que tive, com a Inês Carvalho (com quem conversei/debati muitas vezes a escolha dos nomes), que um ballet com este estilo de música podia ser fixe. Tem aquela vibe dos instrumentos meio acústicos, podia ser uma orquestra num universo paralelo qualquer a tocar.” Em Luto, umas das faixas mais recentes do conjunto, Van volta a pegar em material que não é seu para construir algo novo. “Esta foi para um exercício da pós-graduação, é muito recente. É só feita com loops de cassetes. No exercício, só podias usar um conjunto de regras da música concreta, e em teoria podias ter feito esta peça nos anos 50; é fixe pensar nisso.” Já Exit Future remete-nos em momentos para R&B do início do milénio, reinterpretado para caber neste conjunto. “Esta chamava-se Enter the future you already know, mas mudei para Exit Future mais por causa desta onda desesperante que se anda a sentir.”

New Drum Is Keyboard anuncia a sua entrada num tom mais soturno, até que o cântico de uma gaivota ilumina a composição e lhe dá um novo rumo. “Esta gaivota entrou aqui porque queria mesmo trabalhar com samples e sempre achei muito semelhante o canto dos pássaros à música eletrónica. Faz-me bué lembrar arpeggiators e linhas de sintetizador.” Quando questionado sobre o título enigmático, confessa: “Eu nem tenho um keyboard [risos]. Mas é verdade. Eu uso as letras do computador! E com os títulos, embora muitos deles venham do projeto, não sou totalmente descuidado, porque sei que isso afeta a perceção do som. Vou mais pela energia de cada track, mas gosto também desta maneira desprendida. Pode surgir só uma imagem que me passa pela cabeça.”

Em Saúde, uma linha de piano serve de suporte para um conjunto de melodias e texturas que se confrontam. “Gosto dessa sensação de sentir que as cenas estão a descambar. O crumbling do excesso… imagina que o sintetizador já não aguenta mais, está cheio de fumo, quase a explodir. Ou, neste caso, o computador [risos].” Piano Melodies conduz-nos por entre arranjos de instrumentos mais clássicos cruzados com elementos eletrónicos que nos convencem do virtuosismo do produtor e onde o keyboard se transforma (quase) numa orquestra inteira. “Ya… tudo com o rato, tentativa e erro. Ouvi tudo muitas vezes até perceber o que achava mais interessante. Nesta faixa quis tentar uma abordagem mais crua aos instrumentos, principalmente ao piano, sem sugarcoating.”

“Esta também é das mais antigas”, diz sobre Ringing, e acrescenta: “Engraçado, que no último álbum também acabo com a minha voz. É uma cena que gostava de explorar mais. Chamava-se Ringtone, mas mudei para Ringing”, fechando o álbum com a mesma intensidade com que o abriu, mas abrandando o ritmo, porque por vezes, depois de longas viagens, o cansaço e a nostalgia caminham de mãos dadas até que os olhos decidam ceder.

“Acho que o futuro é muito mais distante deste tipo de cenas”, reflete Van Ayres. “Quero uma cena que seja mutável, e que não exija muito. Que seja portátil, que dê para tocar ao vivo. Tem de ser divertido e interessante para mim e ter um setup que me permita explorar hands-on, longe do computador, porque foi assim que eu comecei a fazer música. A tocar guitarra, gravar cenas no Audacity. E não é que o computador não me vá fazer falta, mas sei lá… já o utilizo para mandar emails, e não quero que seja tudo.” E nós ficamos a aguardar o seu regresso.

Fotografias por João Viegas

relacionados

Deixa um comentário







t

o

p