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Entrevista

João Pais Filipe à conversa sobre “Sun Oddly Quiet”

20 Abril, 2020 - 15:12

Antes do lançamento do novo álbum, João Pais Filipe falou sobre si e sobre o novo trabalho em entrevista.

A Lovers & Lollypops e a Holuzam juntam-se para dar vida ao segundo longa-duração de João Pais Filipe. “Sun Oddly Quiet” é uma caixa de pandora constituída por quatro composições de música metafísica que levam o ouvinte a contemplar padrões e atmosferas introspectivas. O lançamento do suporte físico, em CD, e digital está marcado para dia 24 de abril. O single XV estreou dia 1 de abril, no YouTube, com vídeo realizado pela artista visual Maria Mendes.

O mestre português de percussão contemporânea tem corrido o mundo difundindo as suas experiências meditativas. Polónia, Inglaterra, Suécia, Uganda, Japão, Macau, Perú e China foram alguns dos países que já receberam o percussionista que faz história no panorama da música experimental de forma despercebida. A mistura de atmosferas mentalmente sedativas, com ritmos físico-hipnóticos, revelam a pontualidade do músico no ritmo e na capacidade de conduzir o público a um estado de trance profundo. Não dançar é impossível. Poliritmos e contratempos entranham-se nos movimentos físicos daqueles que admitem ter dificuldade em entender padrões complexos, e os mantras sonoros induzem os mais distraídos a uma capacidade de foco desconhecida pelos próprios.

Two White Monsters Around A Round Table, Fail Beter, Sektor 304, HHY & The Macumbas, CZN, Paisiel, Montanha Magnetica, colaborações com GNOD, Black Bombaim e Rafael Toral são alguns dos grupos e trabalhos onde esteve presente, e ainda podemos acrescentar a banda de doom Profan ao seu reportório. Para além das suas habilidades rítmicas e diversos projetos, o baterista percussionista é também escultor sonoro, e o seu trabalho já é reconhecido lá fora. Pratos, singing bowls, gongos e até spinning bells são inteiramente fabricados por si.

E além desta entrevista e do novo álbum para conhecer, dia 24 de abril João Pais Filipe apresenta “Sun Oddly Quiet”, no site ou nas redes da Lovers & Lollypops, com um preço referido como de “donativo consciente”.

“Sun Oddly Quiet” é o teu segundo lançamento a solo, certo?
Na verdade, tenho uma espécie de primeiro, só que foi em CDr que eu editei na altura, por volta de 2008. Mas sim, este é oficialmente o segundo disco.

O que podemos esperar de novo, ou de diferente, neste trabalho?
Começa logo pelos ritmos. No primeiro explorei sempre ritmos irregulares, inspiração étnica, eletrónica também, mas neste disco usei ritmos mais complexos, o que foi um desafio. A minha ideia era fazer soar ritmos complexos em algo quase natural, então os grooves demoram-me algum tempo a compor porque quero que seja uma coisa circular, e por muito complicado que seja não quero que sintas isso – tem de soar natural, e a beleza para mim é um bocado essa. Para além disso, acho que é uma forma de perceber que existem mais opções rítmicas do que o convencional 4/4… é possível fazer algo também interessante, sem soar complicado para as cabeças das pessoas “normais”, e até chegar ao ponto a que estes grooves soassem naturais. Lá está, desta vez usei compassos compostos, 15, 13, 11, o outro disco anterior eram 5, 7, 9. Desta vez levei a coisa mais para a frente. Tentei que fosse ainda mais minimal que o primeiro, que fosse ainda mais estático. Por exemplo, esta peça que saiu, que já está no YouTube, chamado tema de avanço, é igual do início ao fim, estática completamente, só tem umas ligeiras variações nos timbalões melódicos que são quase imperceptíveis. Já que o ritmo é em 15, algo bastante complexo, na altura decidi assumir isto, ou seja uma cena estática, completamente, mas tocada do início ao fim, não é um loop… Não conseguias que uma coisa se aguentasse assim se fosse uma coisa ritmicamente pobre durante 10 minutos…

Também é o facto de quereres que isso soe natural e estático, que acaba por se tornar numa meditação sonora, certo?
Exatamente, é quase como um mantra. Quero que te deixes levar e que as peças te levem para algum lado diferente. Os ritmos são um bocado como o som, claro que os sons têm mais a ver com as vibrações, mas os ritmos se forem diferentes alguma coisa acontece. Levam-te para outros sítios, a tua mente acaba por reagir de forma diferente a este tipo de padrões…

O que te inspirou a escrever este álbum? Há algum conceito artístico, ou até pessoal?
Houve um ponto que foi muito importante. Há cerca de um ano, entre fevereiro e março, veio cá o Burnt Friedman, que também toca com o Mohammad Reza Mortazavi, que vimos no Rivoli em janeiro, é um artista que eu admiro e foi super interessante gravar com ele. Ele veio com estas ideias de ritmos de compassos compostos e foi importante para mim começar a trabalhar nisto. E deu-me este desafio para eu fazer. Se ele não tivesse vindo cá provavelmente tinha feito um seguimento do primeiro disco, mas se calhar não tinha entrado nesta onda dos compassos compostos. Deu-me aquele clique para fazer este disco. Embora tivesse ideias de gravar, estava tudo um bocado em aberto, mas depois de ele ter vindo cá percebi perfeitamente o que queria fazer e as coisas saíram logo naturalmente. Às vezes queres fazer mas estás a espera daquele clique… Depois fez tudo sentido, comecei a trabalhar durante meses e meses, claro com dificuldades, mas sabes que quando está mesmo a sair tu percebes “ok, é mesmo isto que tem de acontecer”.

Então foi mesmo o facto de ele ter vindo cá que te acendeu essa luz e que te levou a compor algo diferente…
Sim! E agora há ritmos que comecei a compor que também uso com ele, muitas vezes manda-me eletrónicas com sequenciadores.

Tu depois com sequenciadores consegues fazer padrões rítmicos e mudar de uns para os outros…
Exato, o que trabalho com ele é mesmo isso: eletrónica e percussões. O split que vamos lançar, o “Eurydike”, que dum lado é Jaki Liebezeit e o Friedman, e do outro lado sou eu e ele, é muito importante para mim… Foi quando ele veio cá gravar o novo disco que me abriu a cabeça para fazer outro tipo de coisas. Na mesma linha do primeiro, mas consegui expandir-me um bocadinho mais.

A numeração romana tem algum significado?
A numeração romana é na verdade o tempo das músicas: 15, 13, 11 e 5. Eu queria que o conceito fosse também como a música, o mais minimal possível, e optei por esta opção, fica interessante visualmente em vez de números, acho que resulta melhor.

E o espetacular vídeo da artista visual Maria Mendes no single “XV”? Como é que tu, ou a editora, ficaram a saber do trabalho dela?
Fui eu por acaso. Conheço a Maria há uns anos, e como já tinha um álbum pronto, queria ter um vídeo, falei com ela. Gosto muito do trabalho dela, e de alguma maneira, quando acabei as gravações, senti que havia uma ligação, foi muito claro para mim, lembrei-me logo dela. Já no primeiro disco, quem trabalhou os vídeos também foram umas amigas, a Sofia Arriscado e a Mónica Baptista.

O que podemos esperar num futuro próximo de colaborações e trabalhos a solo?
Entretanto sai a “Faca de Fogo”, com os GNOD, gravámos o disco o ano passado, íamos apresentar no Supersonic, mas não vai acontecer, mas vai sair o disco também de certeza. 15 de maio é o lançamento do split, com o Burnt Friedman. Também gravei o segundo trabalho com a Valentina, em dezembro, que irá sair ainda este ano.

E vamos contar com a pós-produção da Abbey Road?
Isto foi gravado cá com a Valentina e com Leon Marks, da Abbey Road, desta vez foi um trio. Gravámos com eletrónica em tempo real, e sim a pós-produção vai ser feita lá. Ainda demos um concerto no Pérola Negra. Ia haver mais, mas com o panorama atual é tudo muito incerto…

Como foi fazer uma tour pela Ásia em 2019?
Foi altamente, e foi quase tudo seguido, tive em África, um mês em residência no Uganda, toquei num festival importante, o Nyege Nyege, também tive no Peru em residência com o Manongo, também dei lá um concerto em Lima, foi quase tudo seguido, depois fui para a Asia. Também tive na Polónia, no Unsound Festival.

O que sentiste nos espetáculos na Ásia? Como foi a recepção do público?
Reagiram bastante bem. Também estava curioso nesse aspeto, embora tenha tocado em festivais pequenos, o pessoal aderiu bastante. Macau foi altamente, Hong Kong foi incrível, Japão foi espetacular. Em Tóquio fomos recebidos pelos Kufuki, uma banda que já esteve cá a tocar, foram impecáveis.

E No Uganda?
Foi incrível, comprei lá uns tambores, ia estreá-los num dos concertos de apresentação do meu disco – já não vai acontecer, estou aqui a olhar para eles, um bocado deprimente [risos]. Tive na aldeia onde fazem esses tambores que são lindíssimos, vi-os a construir à minha frente de forma artesanal, foi mesmo muito importante. Toquei com um grupo de percussão incrível, foi inacreditável… posso dizer que foi mágico, até me estão a dar as saudades. A primeira vez que toquei com eles tiveram uma reacção estranha, até fiquei um bocado naquela, “será que alguma coisa que está a correr mal?”

Mas era pelo facto de tocares num tempo diferente?
Não, eles depois pararam, eu voltei, e eles estavam-me todos a abraçar a chamarem-me “Filipe, Filipe”, eu a pensar que tinha acontecido alguma coisa, mas na verdade tinham era ficado surpreendidos por ter tocado aqueles ritmos africanos que já tinha estudado antes, não é que sejam ritmos secretos, mas ficaram baralhados no sentido “como é que ele sabe estas coisas”. Mas lá está, tocar com eles foi mesmo fácil, tanto para mim como para eles.

Lembro-me quando fomos buscar uns tambores a uma aldeia, eu queria usar um set tradicional dos tambores deles. Eu estava a experimentá-los, eles não falavam inglês, estavam a olhar para mim com uma cara esquisita. Depois o Omutaba veio ter comigo a dizer que eles não se acreditavam no que eu estava a tocar. Estava a tocar um ritmo tradicional das cerimónias da parte este do Uganda e não se acreditavam que eu sabia tocar aquilo. Aconteceram assim umas coisas mesmo engraçadas… O pessoal é mesmo impecável lá.

Como te sentes ao saber que a tua música é altamente tentadora à arte do sampling na música eletrónica?
Fico super contente [risos]. Aliás, a reedição do meu primeiro disco tem umas remisturas, é sempre bem-vindo. Ainda por cima porque gravo com a cena do metrónomo…

És o tipo de baterista que é obcecado pelo metrónomo?
Não é obcecado, tem mais a ver com a música eletrónica, para ser aquela cena certeira. Para mim é um conceito diferente, quero que a coisa seja precisa e quase recortada. Eu gravei com metrónomo o meu disco só porque os temas são muito longos, em temas de 10 minutos, por mais certo que eu seja, vai haver sempre um pequeno desfasamento, e eu não quero que isso exista para que seja quase uma cena de looping. Para mim é natural, estou habituado a tocar com pessoal da eletrónica, se estiver a ouvir uma cena a dar até é mais confortável, é natural para mim, não estou a esforçar-me.

Lá está, ainda não há a capacidade de sermos ritmicamente perfeitos para atingir aquela perfeição milimétrica…
A minha obsessão é um bocado essa. Eu quero quase ser maquinal com o metrónomo, que soe tudo preciso e recortado, daí eu estudar muito com sequenciadores e metrónomos.

Uma vez que te consideras baterista, não achas um bocado batota não usar pedal para o bombo?
Agora é um bocado raro tocar bateria. Por exemplo, nos The Macumbas são kicks eletrónicos. O potencial de tocares assim é completamente diferente, não é melhor nem pior e tens uma abordagem completamente diferente. Se pensares bem a bateria tem cento e tal anos, é algo recente, tocar com as mãos já se toca assim há 50.000, não estou a inovar nada, eu até estou a voltar um bocado atrás. A minha ideia sempre foi um bocado de roots mas futurista ao mesmo tempo.

A cena é que também tive de desenvolver e mudar a maneira como toco. Inicialmente era bastante estranho, mas se tiveres este set e mudares o teu mindset, deixas de tocar as cenas que estás habituado a tocar na bateria, os padrões com ride e tarola constantes… isso aqui não existe, tens mesmo que inventar. Demorou algum tempo e continuo sempre a mudar e acrescentar coisas. Apercebi-me da quantidade de ritmos que podias criar com este set e expandir-te, achei inacreditável. Continuo a curtir tocar bateria, mas decidi seguir este caminho. Incluí agora os tambores do Uganda, estou sempre a adicionar novos elementos dentro do mesmo sistema.

Sempre que faço um disco, todas as peças que uso, mesmo as em madeiras, ou seja, os tambores, embora não os construa, são customizadas por mim para ter um determinado som. Foi todo um processo de criar os mesmos timbres.

Como te sentes ao saber que há um CD dos Profan, “Sacrificing To The Serpent God”, a 40 euros no Discogs? Sendo que a primeira faixa é dos Josué O Salvador Em Busca Da Perdição?
[risos] Se eu te dissesse como isso foi gravado… Na altura ainda estávamos no Stop, há cerca de 13 anos, eu e o André Coelho tínhamos o projeto Sektor 304. Foi gravado com uns Behringers que já tinham levado uma coça, um ‘gajo’ espetava uns reverbs, tudo comprimido, mas agora esse preço [risos]. Mas por acaso, esse disco de Profan, acho que é mesmo fixe, dentro daquela onda. Foste mesmo buscar ao baú. Mas mesmo nos Sektor 304, muita gente conhece-me daí, é um projeto que tenho bastante orgulho, tínhamos lançado por uma editora americana, tivemos algum sucesso na onda industrial. Usava sempre sets muito marados, bidões, chapas, etc. Também houve uma altura em que estive envolvido no improviso do free-jazz. Mas a minha escola é muito a cena do industrial.

Retomando agora aos CZN… a arte gráfica pareceu-me um bocado propaganda adaptada aos “loucos anos 40” da Alemanha, embora esteja fantástico o trabalho gráfico, chegaste a receber algum tipo de comentários politicamente correctos, ou até cómicos, em relação a isso?
Por acaso não [risos]. O gráfico não tem nada a ver comigo, foi a Valentina Magaletti que tratou do trabalho. O próximo, até posso revelar já, vai ser em vermelho e em vez de uma colher será uma faca.

E, para concluir, em relação à situação atual do Covid-19, tiveste muitas datas canceladas?
Tenho tudo cancelado até agosto, inclusive o Boom, onde ia tocar com o Burnt Friedman. Ia ao Supersonic, a Inglaterra, Birmingham, ia ser a minha estreia com os GNOD, gravámos um álbum o ano passado… havia também a um festival na Grécia, eu e Julius Gabriel, como Paisiel, que também foi cancelado. Há coisas que ainda não estão oficialmente canceladas, mas que provavelmente vão ser. Tinha estes discos todos para sair, inclusive o meu, nem sequer posso apresentar. Quer dizer, vou fazer um stream na minha oficina, mas um livestream a sério, com o meu material, microfones, etc. – dia 24 de abril, apresentação do novo álbum.

Fotografia por Renato Cruz Santos

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