AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Entrevista

Vitor Joaquim: “Não colaborar seria um contrassenso inexplicável”

6 Janeiro, 2021 - 11:45

Estivemos à conversa com Vitor Joaquim, conceituado experimentalista português que editou o seu mais recente álbum no final do ano passado.

Pensar no conceito de tempo talvez afugente a maioria de nós, mas não é isso que acontece a estudiosos como este. Desde Setúbal, Vitor Joaquim lançou em outubro passado “The Construction of Time”, álbum no qual aborda “questões de tempo, fluxo, interioridade e amplitude de percepção que criamos a partir do mundo em que cada um de nós vive”.

Um objeto será sempre um objeto, mas cada interpretação é fruto do significado que reside num indivíduo. E no caso do tempo, “este é um daqueles assuntos em que quanto mais se pesquisa e se sabe, mais dúvidas há e mais complexa é a resposta”, diz Vitor Joaquim nesta entrevista.

A complexidade destes conceitos não impede o músico de os interpretar nos seus discos: antes de “The Construction of Time”, lançou trabalhos como “Nothingness” (2019) e “Impermanence” (2018). Aliás, é o recurso aos computadores que pode abrir portas para “teorizar” e “fantasiar” temas com “alta carga metafísica”, como diria Sherry Turkle.

Vitor Joaquim é exemplar nessa relação homem-máquina e não apenas a solo – “para mim o lado colaborativo da música é o que dá sentido a fazer música”, revela-nos. Nos três volumes de “LIVE Series +” editados este ano, por exemplo, é possível ouvi-lo a manipular ao vivo músicos como Carlos Zíngaro e Simon Fisher Turner, assim como acontece com o trompete de João Silva em “The Construction of Time”.

Apesar da extensa discografia e de outros trabalhos no campo do som, no currículo de Vitor Joaquim pode ler-se muito mais do que isso. Fundador, diretor e programador do festival EME, o setubalense é doutorado em Ciência e Tecnologia das Artes, na área de Computer Music, pela UCP, onde foi professor e é investigador associado no CITAR.

Nesta entrevista, Vitor Joaquim, que irá apresentar o novo disco em Coimbra (29 de janeiro) e Leiria (dia 30), fala sobre “The Construction of Time” e uma série de outros tópicos, como é caso da sua vida académica ou até da importância que colaborar tem para si.

Qual é a sensação de lançar um disco neste período pandémico?
No meu caso, não estou a sentir grande diferença tendo em conta que nos últimos dois anos tenho passado a maioria do tempo em casa e, de alguma forma, a pandemia não veio introduzir grandes variações nos meus hábitos. A parte em que tenho sentido mais implicações é ao nível dos espetáculos ao vivo e da dificuldade em circular. Mas do ponto de vista das edições, além deste CD lancei três álbuns digitais este Verão, sobre os quais não houve grandes implicações. Oxalá assim fosse com toda a gente!

Ainda assim, têm sido lançados muitos trabalhos nos últimos tempos, e boa parte é fruto deste período que vivemos. Há algum artista ou disco que te tenha chamado a atenção recentemente?
Esta é talvez uma das perguntas mais engraçadas e simultaneamente embaraçosas de responder tendo em conta que sou músico e compositor. Mas há um facto que não posso negar: não consigo realmente acompanhar o que se passa e fica-me cada vez mais a sensação de que me está a passar quase tudo ao lado tendo em conta a quantidade abissal de música que está a ser publicada. E o que tem mais piada é que quando era novo ficou-me gravada na memória uma entrevista do Peter Gabriel em que ele dizia que mal tinha tempo para ouvir música pois passava o tempo em estúdio a fazer música. Pareceu-me estranho e quase impossível de compreender, mas hoje consigo finalmente compreender. Em todo o caso, poderia nomear alguns álbuns que achei interessante mas ia-me parecer uma lista esfarrapada. Por isso vou só salientar um álbum que me parece interessante de sublinhar: “Textures & Lines”, dos Drumming GP com a Joana Gama e o Luís Fernandes. Talvez um dos melhores álbuns nacionais de 2020.

Como é que encaras e defines um conceito tão subjetivo quanto o tempo? E de que forma é que transpões isso para este “The Construction of Time”?
Este é um daqueles assuntos em que quanto mais se pesquisa e se sabe, mais dúvidas há e mais complexa é a resposta. De facto a noção de tempo é absolutamente relativa e depende de variadíssimas circunstâncias. Do ponto de vista da física, tanto quanto se sabe não há forma de distinguir o passado do futuro, é uma diferença que não se encontra expressa em nenhuma equação fundamental do universo. Por outro lado, todos nós temos a perfeita noção do que queremos dizer quando nos referimos ao passado e nos lembramos de memórias da nossa infância e adolescência. Mas pelo que se sabe esta percepção de tempo, em que se inclui a percepção do presente é muito vaga dependendo grandemente do nosso estado emocional. Carlos Rovelli, um dos grandes estudiosos da problemática do tempo (enquadrada na área de quantum gravity) diz-nos que a sensação de passagem do tempo para nós tem muito mais que ver connosco do que com o mundo em si. Esta passagem está assente numa questão de perspectiva, dependente da forma como o nosso cérebro funciona e do nosso estado emocional. É por essa razão que em momentos de prazer o tempo passa rapidamente, e em momentos difíceis demora a passar.

Mas se quisermos manter a questão do tempo no plano tangível e das contas fáceis do ponto de vista científico, até aí as coisas se complicam muito: dois relógios colocados a altitudes diferentes contam tempos diferentes. O Rovelli explica isso muito bem nos seus livros.

Acredito que tenhas uma especial preocupação com a semiótica que envolve a criação de um disco. Em “The Construction of Time”, um dos muitos detalhes que se escutam é gravações “aleatórias” que captaste de broadcasts de rádio e TV aquando da invasão ao Iraque. Por isso, pergunto: de que forma é que estas captações coincidem com o conceito por trás deste álbum?
Essas gravações são para mim bancos de memória pessoal sobre o desfilar da história da humanidade. E como tal, trabalhar à volta dessas memórias é como tecer uma malha de tempos em que algo do passado é arrastado até ao presente, dialogando com outros sons que lhe são temporalmente dissociados. Tal como refere Rovelli, já Santo Agostinho se apercebeu de que a música possuía essa extraordinária capacidade de fazer confluir no presente – momento de ouvir – a memória do que se ouviu anteriormente com a expectativa do que poderá vir a seguir. E nesse sentido, este disco acaba por ser um palco onde essas duas componentes são conscientemente equacionadas.

Que memórias te passam pela cabeça ao ouvir o resultado deste trabalho?
Normalmente nunca ouço os discos que acabei de fazer. Passo demasiado tempo a criar a composição, e depois a re-arranjar, misturar e masterizar para ser capaz de os voltar a ouvir sem precisar. Tem sido sintomático desde o primeiro, torna-se impossível. Por outro lado, tenho imenso gosto em os tocar ao vivo pois volto a revivê-los de novo mas de uma nova forma diferente, dependente do local, da acústica, do meu mood, do PA, etc.

Recuperando a pergunta, não ouvindo o disco mas tocando-o ao vivo, no momento de tocar deixo-me embalar e acho que me desligo muito da minha parte racional. Nesse sentido a viagem do sentir é o que mais pesa e cada dia acaba por ser uma caixa de ressonância de tudo o que já vivi. É uma experiência difícil de descrever…

Como chegaste ao João Silva e o quão importante foi ele para a concepção deste disco?
Cheguei ao João através de um contacto interpessoal puramente ocasional entre amigos comuns em Azeitão. Simpatizámos um com o outro, algo importante para mim, e como já conhecia algum do seu trabalho ficou uma porta em aberto para possíveis colaborações. Acontece que na altura em que decidi convidar o João, a concepção e a composição geral do disco já estavam por assim dizer fechadas. Estava em retoques finais de mistura. Mas algo me fez recuar e achar que poderia ser uma boa oportunidade para desfragmentar tudo e experimentar a colaboração do João. Enviei-lhe a peça total para que pudesse respirá-la bem e apontei-lhe algumas indicações sobre o que para mim faria sentido fazer e fomos gravando tema a tema de forma progressiva. Enquanto ele trabalhava sozinho sobre um tema, eu recompunha o que ele me tinha enviado do tema anterior, e enviava-lho a seguir para ele perceber o caminho que eu estava a dar ao seu próprio trabalho. Dessa forma o João acabava por ir absorvendo o meu input a partir do seu input. E assim chegámos ao fim, step by step, com muita coisa minha remisturada de forma diferente para conseguir criar espaço para o trompete.

Colaborar é “um processo de engrandecimento fundamental num músico”, diz Vitor Joaquim

O que retiras dessa experiência colaborativa, bem como de outros artistas com quem trabalhaste, como é caso de Carlos Zingaro, Simon Fisher Turner ou Nuno Moita nas atuações que podemos ouvir nos LIVE Series?
Para mim o lado colaborativo da música é o que dá sentido a fazer música, quer como compositor quer como músico. Não me imagino a não colaborar, seria um contrassenso inexplicável. Aprende-se tanto com os outros quando se toca em conjunto, como se aprende a falar. É um processo de engrandecimento fundamental num músico. Seria como viver num mundo em que não poderia falar com ninguém, tiraria todo valor à própria existência. É ao falar com os outros que muitas vezes encontramos a nossa própria forma de expressão e até mesmo as próprias ideias. E o mesmo acontece com a música. É do confronto e da concordância que as coisas nascem, sejam elas ideias verbalizadas ou sonoridades tocadas num instrumento.

Felizmente posso dizer que tive o prazer de tocar com muitas dezenas de músicos, ao longo de quase 40 anos, e se há coisa que não posso negar é o enorme agradecimento que devo a cada um deles por ter partilhado esses momentos e sem os quais não seria o que sou hoje.

Há algum artista, nacional ou não, com quem gostarias particularmente de colaborar? E porquê?
Há imensos artistas nacionais e estrangeiros com quem gostaria de colaborar! Nomeá-los a todos significaria escrever dezenas de nomes e nomear alguns seria indelicado para com os outros que ficariam de fora. : )

No teu currículo há muito mais do que música. Por exemplo, és também professor e investigador. Este percurso mais académico influenciou a tua forma de trabalhar e olhar o som? Como?
Não tenho bem a certeza como cada um dos lados tem afectado o outro, mas estou em crer que o facto de ser criador tem sido muito mais importante para o meu trabalho de professor e de investigador do que o contrário. De certa forma posso ajudar muito mais os meus alunos por ser criador e produtor cultural do que se fosse só professor. Posso passar-lhes parte da experiência, e consigo motivá-los mais facilmente ao partilhar momentos vividos em produção, tornando a aprendizagem menos abstracta e mais enraizada no processo criativo. Uma coisa é dizer que as frustrações fazem parte da vida (uma abstracção), outra coisa é relatar casos reais e decompor o problema em partes para a seguir se concluir que às vezes não se consegue fazer melhor. Ou que o que nos soa mal a nós, soa bem a outros. Ou que o nosso problema de insegurança não é único, antes pelo contrário, é partilhado por muitas outras pessoas. Ou que o erro é um aspecto fundamental da criação e que há criadores que construíram uma carreira à volta do erro.

Essas dicas parecem-me certeiras, mas vamos supor que alguém mais novo te pede conselhos sobre produção musical e só podes dar um. Qual seria?
Provavelmente dava dois conselhos, muito diferentes mas muito próximos um do outro. O primeiro e mais importante teria que ver com a forma de olhar a produção, clarificando que mais importante do que os fins, são os próprios processos. Não desesperar perante um falhanço ou um erro: se formos fiéis a nós próprios e aprendermos a caminhar dessa forma, todos os percursos acabarão por ser interessantes e gratificantes. Não há forma de se aprender sem se cometerem erros. O importante é viver bem o processo (caminho), dessa forma tudo irá correr bem.

O segundo prende-se com a importância gradual com que a tecnologia tem vindo a ser “vendida e comprada”. É um facto que grande parte dos grandes saltos artísticos se prendem com o aparecimento de novas tecnologias. Por exemplo, o aparecimento do óleo na pintura, permitiu que uma obra fosse trabalhada ao longo do tempo da mesma forma que o multipistas permitiu fazer dubbings que antes não era possível fazer. É pois importante não confundir novas tecnologias com re-empacotamento de tecnologias já existentes. Dominar e não ser dominado exige algum estudo e preparação, mas não há volta a dar. Vale mais uma ferramenta velha que se domina bem do que uma ferramenta nova que mal se conhece. Nada substitui a profundidade de uma relação prolongada com um instrumento que se trata por tu.

Com que regularidade vais até estúdio? Já estás a trabalhar nos próximos lançamentos?
As idas a estúdio dependem muito da fase em que estou. Há alturas em que passo 10 ou 12 horas por dia e há alturas em que passo uma ou duas semanas sem entrar no estúdio para trabalhar. Entro lá quase todos dias para ver uma ou outra coisa, arejar o espaço, rearranjar ligações ou mudar posição de equipamento, mas de uma forma geral preciso de respirar um pouco entre cada produção. De momento estou a 60% com um outro disco que gostaria de lançar idealmente na Primavera, e tenho um outro já completo que esteve para ser editado pela Kvitnu mas que se arrasta há uns 10 anos e que não sei bem como resolvê-lo. É o chamado “unfinished business”!

Também já estou a pensar numa edição futura com o João Silva, com muito mais live sampling do que o “The Construction of Time”.

Projectos e ideias não faltam.

Em jeito de remate e tendo em conta o atual contexto pandémico: como é que vês o estado atual da cultura em Portugal?
Parece-me que o estado da cultura em Portugal está calamitoso. Não que estivesse maravilhoso, longe disso, em Portugal a cultura nunca esteve bem. Somos um povo muito pouco dado à fruição da cultura e da arte, e os políticos sabem-no bem. Usam os criadores para fazer bonitinhos e aparecer nos media, mas na hora da verdade, aquela que estamos a atravessar, convidam-nos para um drink e contratualizam injecções irrevogáveis de capital nos bancos enquanto distribuem algumas migalhas pela cultura. A miserável representação que o nosso Orçamento de Estado dedica à cultura fala por si. E as coisas são tão ridículas que se mistura num mesmo “pacote de pensamento” apoio a estruturas de criação artística e serviço público de televisão (que inclui cabotinices de entretenimento pagas a peso de platina). Ser criador é quase um estigma, uma coisa com que se nasce e que tem que se carregar a vida toda em acumulação com um emprego “normal” para se poderem pagar as contas e viver merecidamente.

Mas não são só os políticos os responsáveis por esta circunstância, a passividade e a acomodação de muitos criadores é também uma peça fundamental deste triângulo maldito, ao qual há a acrescentar as fantásticas qualidades de um povo que sabe tudo sobre futebol, mas que em média só compra 1,3 livro por ano – dados de 2017. Ler ou não esse livro comprado, será ainda uma outra estatística.

Aparte os caprichos desta triangulação que vai dando um ar da sua graça sempre que se aproximam eleições, o que é deveras preocupante no actual momento é ver o estado em que se encontram alguns profissionais e empresas associadas aos eventos culturais e observar a agressividade-passiva com que o Estado lida com o problema. Lembro que em Março, num espaço de 3 ou 4 dias o governo alemão alocou 5.000 euros a cada um dos 100.000 trabalhadores independentes e pequenas empresas só da zona de Berlim como “ajuda corona”. Este artigo explica bem a facilidade com que o processo se desenvolveu.

Por cá já passaram 9 meses e o resultado é um vácuo. Calamitoso e vergonhoso.

Fotografias por Vera Marmelo e Rui Minderico, por esta ordem

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