AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Entrevista

Rafael Toral: Um “reencontro emocional” chamado “Spectral Evolution”

15 Março, 2024 - 13:55

Um dos grandes nomes da música experimental portuguesa lançou em “Spectral Evolution” o seu trabalho favorito até à data. À A Cabine, Rafael Toral fala sobre o disco e muito mais.

Silêncio, que se vai ouvir “Spectral Evolution”. Fruto do prazeroso desafio que tem sido voltar à guitarra, o novo álbum de Rafael Toral foi lançado em fevereiro e é um marco em várias frentes – desde o regresso à atividade da Moikai, sub-editora da Drag City, até ao reencontro do músico consigo próprio e com “muitas pessoas que têm amor pelo trabalho mais antigo” com o referido instrumento.

Se o álbum pode ser visto como um retorno à guitarra, isso não significa que Rafael Toral alguma vez tenha parado. Que o diga o vasto trabalho que desenvolveu ao longo dos anos, digno de rasgados elogios por cá e além-fronteiras: se entre 1987 e 2003 esteve num período mais ligado à música ambiente, com discos tão incontornáveis quanto “Wave Field”, os anos 2004-2017 marcaram a fase de jazz e de construção de instrumentos eletrónicos do Space Program, isto tudo sem contar com o que se seguiria e com as inúmeras colaborações que assinou pelo caminho, como se pode ler no guia da discografia que o próprio escreveu no site oficial.

Embora se possa encontrar o disco em prateleiras como ambient, o músico relembra que este “não [tem] género musical definido, é uma síntese que inventou.” Ao longo desta entrevista, conduzida via email, Toral explica mais sobre o processo de “Spectral Evolution”, o trabalho com a guitarra, a eletrónica que explora ou até a importância de celebrarmos o que há de bom na vida.


Editado também em vinil, o disco pode ser encontrado nestas lojas e plataformas

Obrigado por cederes algum do teu tempo para esta entrevista, Rafael. Como é que tem sido a vida nos últimos tempos? Não só no teu dia-a-dia, mas também em relação à recepção que o teu novo disco tem tido.
É um prazer, gosto da tua maneira de fazer perguntas. Estes meses têm sido diferentes, tenho estado muito envolvido com toda a dinâmica gerada pela publicação do “Spectral Evolution”, mas às vezes consigo obrigar-me a ir para o mato fazer limpezas atrasadas na floresta. Tenho estado a trabalhar em discos novos e também a evoluir com o tocar guitarra, que é um trabalho sem fim. O disco, quando começou a revelar-me o potencial para ser isto que é, também me deixou ver que era muito provável que tivesse esta recepção. É um reencontro comigo próprio, mas também um reencontro emocional com muitas pessoas que têm amor pelo meu trabalho mais antigo com a guitarra. Senti que este disco já era desejado mesmo antes de se saber que existia, e isso tudo está a explodir duma maneira muito bonita.

Mudaste-te para o interior em 2014 para procurar uma “vida mais sustentável”. Essa vida é também uma vida que se tenta afastar da ruína desta secularidade?
Bem, não te vou esconder que hoje me sinto melhor assim “retirado”, preciso de espaço para a alma respirar. O mundo está claramente a acabar e isso revela-se de inúmeras formas, cada uma mais atroz que a outra. Aqui tenho tentado, numa área alargada, manter uma pequena bolha de floresta “normal” (sem eucaliptos, mimosas ou pinheiros, mas sim sobreiros, castanheiros, carvalhos e outras espécies nativas). Às vezes o esforço é grande e dou dois passos atrás para justificar o tempo e energia que gasto nisso. Até que percebi uma coisa simples, e na verdade justifica tudo: é um projecto de resistência ao fim do mundo. E isso vale muito a pena em todas as formas imagináveis.

Para mim, discos como este “Spectral Evolution” têm sido cada vez mais um refúgio para fechar os olhos e tentar esquecer, ainda que por momentos, o mundo lá fora. Como vês o teu disco e a tua música no contexto que atravessamos?
Pois… a má notícia é que não existe “lá fora”, estamos no mundo. Por acaso com muita mais sorte que outros noutras partes do mundo. Não podemos esquecer nem ignorar, tudo está a acontecer *aqui*, no mundo. Mas podemos e devemos iniciar e apreciar todos os gestos que promovem e celebram tudo o que é benigno, belo, vivo, maravilhoso. Que tocam o que há de mais magnífico e mesmo divino em ser humano. Tento fazer com que a música toque nessas dimensões, ou pelo menos que as invoque. Acho que um dos maiores problemas da Humanidade é a noção de separação (nós e “os outros”) que cada vez é mais extrema. Este disco, ao tomar corpo na forma de conciliação de formas incompatíveis de pensar a música, acaba por se oferecer como mensagem, ou “oração” talvez, lembrando que temos que reconciliar muita coisa. É também um disco que celebra a vida e que procura entregar algum do espanto que a vida oferece.

O teu concerto no Semibreve 2021 foi um dos momentos mais tocantes para mim nesse ano. De certa forma, este disco traz-me a mesma paz que senti aí. Precisamos de mais tempo, espaço e silêncio do que nunca? É algo em que tens pensado, seja na composição deste novo trabalho ou não?
Adorei esse concerto. Ainda estava a meio de o produzir, mas metade desse concerto teve já material deste disco. Acho que é exactamente como dizes, precisamos de mais tempo, espaço e silêncio do que nunca. Mas precisamos deles sempre. Penso sempre em muitas coisas quando produzo música nova. A principal pergunta é “qual será a experiência de ouvir esta música?”. E aí observo o que me proponho entregar. Tempo, espaço, silêncio? E tensão, relaxamento, quietude, surpresa, estabilidade, instabilidade, conforto, desconforto, proximidade, distância, provocação, cumplicidade…? E mais coisas, por aí fora. Preciso de pensar e sentir que neste momento no mundo e neste ponto de avanço da cultura, ouvir esta música vai fazer sentido, vai fazer bem. Isso sempre foi assim, desde o primeiro disco, essa exigência nunca me abandonou.

Na tua opinião, de que forma é ideal ou qual o melhor momento para ouvir o “Spectral Evolution”?
Com o melhor som possível, com boas colunas ou com bons auscultadores. Foi masterizado para soar bem em qualquer lado, mas vale a pena ouvi-lo nas melhores condições. Creio que vai soar bem em qualquer momento, mas recomendo abrir um espaço sem ruído para o ouvir com atenção duma ponta à outra, porque só faz inteiramente sentido na sua forma total. Prometo que valem a pena os 47 minutos!

Como tem sido o regresso à guitarra como um dos principais instrumentos, senão o principal? Torna tudo mais fácil ou é ainda mais exigente?
Tem sido um desafio o trabalho com a guitarra. Não sei ainda se é mais exigente porque tenho grande fluência nos instrumentos electrónicos e isso permite-me ser muito exigente, aplicar noções de fraseado muito rigorosas, desenvolvidas com o mestre Sei Miguel. Com a guitarra ainda não tenho técnica para executar um trabalho exigente. Não falo de exigência técnica, não vou ser nenhum virtuoso, mas sim do rigor subjacente àquilo que possa decidir tocar. Ou seja, ainda não cheguei a um patamar do qual possa responder à pergunta…

Mas dirias que nunca deixa de ser prazeroso?
Claro, tem que ser, duvido que o fizesse só por obrigação técnica. Como em qualquer instrumento, ter o corpo fisicamente envolvido em gestos que produzem vibrações, que o mesmo corpo não só ouve mas sente também, e poder sustentar essa intimidade com o instrumento é mágico, sempre foi e sempre será.

Já falaste sobre este tópico noutras ocasiões, mas gostaria que o fizesses também para os nossos leitores. Neste “Spectral Evolution”, além de guitarra e baixo, usas instrumentos construídos por ti. São eles que trazem os sons de “pássaros” que se ouvem? Podes falar um bocadinho sobre esses instrumentos?
São todos os instrumentos do Space Program, que tenho usado nos últimos 20 anos. Alguns, por vezes lembram canto de pássaros, em certas passagens, mas nunca foi minha intenção imitar ou evocar pássaros ou outra coisa. Uma constante na minha música a que sempre fui fiel é que só se tem a si própria como assunto, não é nunca sobre coisa nenhuma. A única associação que se tornou intencional, “by design”, foi o final do disco (termina com um instrumento que às vezes se parece com canto de pássaro), achei que aquele som tinha “a última palavra”. Um som herdeiro de todo o percurso ligado a uma ideia de liberdade com o fraseado livre e abstracto e também a uma ideia de Natureza, pelo comportamento algo imprevisível dos instrumentos. Ouvi aquilo, olhei para a capa e fez click.

Fotografias por Vera Marmelo

Ah, os instrumentos. Logo na “Intro”, ouve-se também este mesmo instrumento, que é um pequeno sistema modular de feedback electrónico com uma antena de theremin. Penso sempre nele mais como uma flauta do que como um pássaro. O outro instrumento que faz trio com a guitarra é um pequeno amplificador em feedback também, mas aqui com um microfone. É o que por vezes lembra um trompete.

Há no disco ainda outras formas de feedback e os outros veteranos como o oscilador de eléctrodos (um circuito duplo de oscilador controlado por fios de cobre tocados pelos dedos), sintetizador modular, o amplificador MT-10 que soa mais caótico (numa óptica mais de circuit-bending), etc. Todos estes instrumentos foram gravados em secção, com várias pistas cada um.

Foram várias versões até chegares ao resultado final. Um processo moroso, suponho, mas questiono-me se foi algo frustrante.
Sim, muitas vezes tive que recuar para ganhar mais balanço. Por vezes sabia que os acordes estavam correctos mas não soavam convincentes. Aí tinha que parar e estudar, aprender que mistérios da harmonia guardavam essas respostas. No fundo, nunca duvidei que ia conseguir – a promessa era demasiado forte para falhar – mas percebi claramente que o projecto estava para lá das minhas capacidades e isso, na verdade, chegou a ser doloroso.

Será por todo esse perfecionismo que vês neste disco o melhor que fizeste até hoje? Porque acreditas nisto?
Não, esse “perfeccionismo” é uma exigência permanente e está em todos os meus discos. Não lhe chamo perfeccionismo mas uma exigência de perfeição. Não pode ser doutra maneira. E explico o que entendo por perfeição: é simplesmente a ausência de defeitos. Sou muito lento porque entendo que é minha obrigação absoluta entregar um trabalho no qual já não encontro nada que possa ser melhorado.

Agora, acho que é o melhor disco que fiz porque nele consegui superar um desafio mesmo muito ambicioso. Lembremo-nos que não é um disco de género musical definido, é uma síntese que inventei. Consegui realizá-lo com um alcance muito grande e integrei elementos que ressoam fortemente com a cultura humana e a consciência colectiva. Não se faz isso muitas vezes na vida.

Consegues recordar algum momento ou obra que tenha ressoado da mesma forma em ti ao longo da vida? Se quiseres, não precisa de ser necessariamente tua.
No que toca a esta escala de ambição, ao desafio para lá do alcance e amplitude da obra, sem dúvida que o antecessor de “Spectral Evolution” é o “Space” (2006). Uma orquestra de entidades electrónicas a ouvir-se a si própria a sonhar com um free jazz de um universo paralelo, ou a invenção de todo um mundo sonoro e seu funcionamento. Foi o lançamento do Space Program e teve o mapa completo. Antes disso, tive uma percepção semelhante, de síntese de obra ao nível mais alto, com “Violence of Discovery and Calm of Acceptance” (2001).

Estavas a pensar enviar o álbum à Drag City, mas acabaste por ficar responsável por quebrar um longo hiato da sub-label Moikai depois de mostrares os planos ao Jim O’Rourke. Como olhas para marcos como este? Enchem-te de orgulho ou é algo a que não fazes assim tanto caso? O que significam para ti?
Às vezes tenho dificuldade em assumir este tipo de coisas porque não quero que me subam à cabeça. Preciso de manter a cabeça baixa e focar no trabalho. Foi uma espécie de acidente, estava eu a meio do processo de escrita e sentia-me a bloquear porque não estava a conseguir os voicings certos para os acordes (o alinhamento vertical das notas tem que ser exacto para se conseguir um certo efeito, específico para aquele som de guitarra, como se ouve por fim no disco). Escrevi ao Jim a pedir ajuda, ou alguma crítica que ele tivesse, e enviei-lhe uma versão provisória. Respondeu a confirmar que ainda “precisava de trabalho”, mas que gostava tanto que pensava reactivar a Moikai para o publicar. Não consegui acreditar que estava a falar a sério. Não sei, acho que simplesmente tenho sorte por ter ao longo da vida tido oportunidade de me construir e chegar aqui. Entre sentir orgulho e gratidão, tento sempre focar-me na gratidão. Tudo se resume a estar ao serviço, e servir o melhor possível. Vejo-me mais como um veículo para que estas coisas possam acontecer, por isso não as vejo centradas em mim, não é por ser “eu”.

Este é um disco a solo, mas há uma pergunta que gosto sempre de fazer a quem tem experiência em matéria de colaborações. O quanto é que isso te enriquece enquanto músico e pessoa?
Uma colaboração em música pressupõe duas coisas à partida. A primeira, ouvir. Ouvir profundamente e compreender que dinâmicas estão a acontecer. A segunda é a capacidade de tomar decisões que façam sentido nessas dinâmicas. Esse exercício é sempre enriquecedor e um modelo de postura humana. Tem paralelo directo com a capacidade de ouvir o que nos é dito por alguém e que tipo de resposta é a melhor em cada contexto. E com toda a acção que possamos empreender em resposta a cada momento à nossa volta. Para mim tornou-se um valor sagrado, a procurar sempre: Tomar a melhor decisão, no contexto certo, pelas melhores razões.

Na entrevista com a Tone Glow, falas sobre a espécie de “deserto” que se vivia em Portugal no início dos anos 90 em matéria de “música fora da caixa”. Quais são as principais diferenças que notas para os dias de hoje?
São abissais as diferenças. Hoje há salas com boas condições e programação consistente em várias cidades. Há um espectro alargado de festivais com identidade e foco. Há várias editoras especializadas e com actividade sustentada. Há um público mais consistente e determinado. E por fim, a capacidade tecnológica de comunicação de hoje não tem paralelo. Tudo isto é obra deste século.

Podemos contar com apresentações de “Spectral Evolution” por cá?
Sem dúvida! Já estreou no TAGV, em Coimbra, e prevêem-se concertos em Lisboa e Braga, a anunciar brevemente. Já no início de Abril, no festival Rewire, em Haia. Em Junho, Berlim, Colónia, Londres, e mais se está a preparar.

Fotografias por Vera Marmelo

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