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Entrevista

gadutra: “A música sempre me conduziu para lugares, momentos e direções”

27 Junho, 2022 - 19:26

De tatuagem a fotografia, o maravilhoso mundo de gadutra guia-nos por um trilho bem próprio, tal qual aquele que se escuta no álbum de estreia “lagarta”.

Foi no início deste ano que gadutra pôs cá fora “lagarta”, disco editado pela Troublemaker Records que assinalou o lançamento do primeiro álbum desta artista multidisciplinar. Natural do Rio de Janeiro, gadutra vive em Portugal desde 2017 e, desde então, tem chamado a atenção pelo trabalho que desenvolve não só a nível pessoal (como música, ilustração ou tatuagem) mas também por projetos como Rezgate.

Não é novidade que gadutra se sabe aventurar pela música: afinal, estamos a falar de um nome que começou a fazer DJ sets aos 15 anos, que faz hoje live acts e que, por exemplo, tem muita experiência na organização de eventos. No referido álbum de estreia, produzido inteiramente num iPad e uma das motivações para esta entrevista, a artista mostra como é capaz de desenhar uma obra que, para além de viver de diferentes estéticas, convive com outros nomes (como EVAYA ou Tita Maravilha) para cozinhar uma receita bem apurada.

Nesta longa entrevista, realizada em abril e recuperada agora, a artista formada em Comunicação Social e em Ilustração fala sobre como “sempre se interessou por artes como um todo”, a vida no Brasil, a ingressão na música e, pois claro, o álbum de estreia “lagarta”, entre tantos outros tópicos.

És uma artista multidisciplinar. Tatuagem, pintura, ilustração, música… Como se foram instalando estas vertentes na tua vida?

Sempre me interessei bastante por artes como um todo. Quando foi chegando o momento de entrar na faculdade já pretendia fazer arte, mas sempre senti uma pressão estrutural da família e pessoas em volta, até mesmo dos colégios em que eu estudei. Eu nunca senti incentivos para estudar arte de maneira profissional. Com certeza também pela dificuldade de viver em bairros periféricos. Cresci com: “primeiro faz uma faculdade que te dê um trabalho remunerado, depois você pensa em fazer arte”

Com isso, estudei Comunicação Social, o foco era o Marketing Digital. Nessa época também comecei a fotografar profissionalmente, principalmente em aniversários e casamentos. Também sempre desenhei, mas com a fotografia consegui contatos de trabalho, por isso virou uma base, deu esse start de “ah, é possível fazer dinheiro com arte”.

Comecei a tatuar em Outubro de 2015, um ano antes de me formar na faculdade. A tatuagem foi o maior divisor de águas, trouxe muitas novas possibilidades e acessos, comecei a ter uma estrutura profissional mais estável, passei a conectar mais com o circuito do Rio de Janeiro, virou o meu full-time job mesmo.

Eu vim para a Europa conhecer, descobrir o que eu podia. Aqui comecei a explorar a pintura. Já tinha feito também alguns murais no Rio de Janeiro, mas em Lisboa passei a ter uma estrutura mais estável. A tatuagem em Portugal consegue me dar alguma tranquilidade e tempo para conseguir investir também nessas outras vertentes. Comecei a pintar com mais regularidade, me envolver mais com performances. Trabalhei também com videomapping e livepainting em alguns eventos. Nunca parei de fotografar e tatuar.

Ah, o design também! Quase todos os projetos que me envolvo, acabo tomando frente dos projetos gráficos. Assim que tudo se mistura. Quanto mais liberdade, mais consigo entrar em todas essas dimensões artísticas. Daí também o gosto pela Direção de Arte.

Já cruzaste todas essas dimensões artísticas num mesmo evento multidisciplinar?
Já, algumas vezes. No “It’s Happening”, em 2018, aqui em Lisboa, fiz curadoria de 70 artistas para uma exposição, organizei um mercado de artes, fotografei e pintei um mural durante o evento.

Também fiz parte da SOMA, que foi um coletivo de coletivos, mais voltado para festas à noite, também em Lisboa. Cuidei principalmente do design, redes sociais, fotografia, toquei como DJ, cuidava da iluminação e videomapping também. Aprendi muito sobre propostas de horizontalidade na Soma, éramos mais de 20 na produção.

Hoje em dia tenho dado mais foco para meus projetos pessoais e para Rezgate, com Rezmorah, onde idealizamos, produzimos festa, fazemos a cenografia, comecei a explorar mais a maqueagem, algumas vezes também fotografo e sempre faço live sets. Temos nosso próximo evento nessa sexta feira, dia 01/07 às 23h no Planeta Manas, onde convidamos os coletivos Inferno, de Londres e Chernobyl, de São Paulo.

Fotografia por Bruno Saavedra

O que te levou a querer fazer música? Consegues precisar algum momento, alguma influência?

De todos esses formatos, a música foi mais recente. Também tem sido o maior foco. Há alguns anos decidi começar a produzir sons, inicialmente mais voltados para música ambiente, mas foi no início de 2020 que comecei a produzir o álbum. Sempre me senti bastante inspirada por sonoridades e seus sentimentos, mas também por artistas como Ventura Profana, Arca, Saskia, Caterina Barbieri, Podeserdesligado, Shygirl, Sega Bodega.

Atuavas como DJ aos 15 anos em festas no Rio de Janeiro. Consegues descrever-nos como eram? O ambiente, as pessoas.
Foi principalmente em festas de aniversários, lembro que usava o Virtual DJ no computador mesmo. Já era uma coisa que as pessoas a minha volta sabiam que eu fazia e gostava, por isso convidavam. Lembro também que a primeira festa que roduzi foi para a formatura do segundo grau, terminando o colégio. Foi um super desafio produzir essa festa praticamente sozinha. Tivemos 2 mil pessoas, aconteceu na Feytoria, no bairro do Cachambi. Por isso, as dimensões todas lá no Rio eram muito maiores, e isso me encorajava muito a querer fazer mais. Conhecer pessoas sempre foi algo que me moveu e me ensinou a conhecer novas propostas de ser.

Hoje em dia eu sinto que, relativamente, é mais fácil produzir aqui. Os obstáculos técnicos são todos muito menores, muito mais contornáveis. O real problema são os pactos coloniais, que continuam direcionando o dinheiro sempre aos mesmos homens brancos. Invisibilizando uma massa criadora de novidades que questionam e tencionam o que é poder e beleza.

Lembro que, quando saí do Brasil, já pensava em fazer festas para oito mil pessoas, as responsabilidades eram grandes! Isso tudo no Lins de Vasconcelos e eu tinha 17, 18 anos.

Achas que isso te ajudou no processo de adaptação ao circuito da música portuguesa?

De alguma forma sim, mas comecei a ter outras dificuldades. Enquanto fiz parte da Soma nós começamos exigir novas urgências, que os espaços não tivessem banheiros binários, por exemplo, não queríamos trabalhar com seguranças, ou pelo menos que a equipe fosse de mulheres, práticas de conscientização sex positive e também sobre como alertar as pessoas de que as festas são espaços coletivos de cura, do tipo: respeitem, você também fazem parte disso.

Ao mesmo tempo, o mercado português sempre me surpreende negativamente, existem muitos vícios ultrapassados. Uma grande ilusão de multiculturalidade e de cuidado que precisava de renovação, trocas, revoluções estruturais. Por isso, estamos aqui e não vamos parar. Temos fome de poder!

Olhando para “lagarta”, como é que encaras agora estas produções feitas numa “fase embrionária”?

Sempre soube que eram um início, uma peça introdutória. Era um projeto pequeno, composições feitas em casa, na quarentena, muita incerteza, fragilidade. Mas por ter pessoas confiando, colaborando, foi tomando forma, tornando-se possível, grande.

Não parei de produzir, tenho feito malhas muitos diferentes agora. “Lagarta” me trouxe certezas.

Fotografia por Bruno Saavedra

Disseste à Parq que “nós não temos o nosso estilo, nós somos”. Com isto queres dizer que não há propriamente uma forma de nós sermos, mas apenas uma miríade de comportamentos que vamos levando a cabo em função dos contextos em que estamos? Ou seja, não é uma coisa linear. É sempre diferente? Não sei se é isso que queres transmitir, mas tive a sensação de que a ideia de fluxo permeia todas as entrevistas que li tuas.
Exatamente. A ideia de fluxo tem estado muito na minha cabeça. É sobre entender que a gente vai se manifestar de maneiras diferentes em situações diferentes. Isso faz com que o nosso estilo não seja apenas uma limitação que a gente decide para cada produção.

Por exemplo, se eu uso uma caneta azul e uma vermelha para criar desenhos específicos com essas 2 canetas, já vão ler isso como estilo. Mas na verdade isso é só uma limitação. Por isso, se desprender da ideia de encontrar um estilo foi super libertador. Eu me interesso bastante pelo que conecta toda minha arte e que independe de padrões estéticos, por exemplo. O que tem de mim em uma foto, mas que também se percebe em uma música ou uma tatuagem.

O que mantém você querendo continuar a fazer coisas? Me interesso pela ideia de progressão, nossos fluxos.

Como surge a Troublemaker Records na tua vida?

No verão do ano passado. O pessoal da Au Largo me convidou para participar de um evento de live sets com Bruno Trigo, Phoebe, no Titanic Sur Mer. Nesse dia nos conhecemos e, ao conversar sobre o álbum, surgiu a ideia de lançar pela Troublemaker. Foi tudo muito leve e tranquilo, adoro trabalhar com Bruno.

Há planos para o futuro no projeto gadutra? E, já agora, uma curiosidade: “lagarta” é o início de um ciclo com casulo e borboleta? Ou vais explorar coisas completamente diferentes daqui para a frente e não vais manter necessariamente aquele raciocínio… não sei. Algumas luzes, se quiseres partilhar.

Pretendo continuar focando na música durante esse ano, tenho feito lives e DJ sets, trabalhado em alguns remixes. Tenho pensado num álbum de remixes de “lagarta” e já tenho convidado algumas produtoras. Bastante foco direcionado para Rezgate também, possibilidades de um EP em breve. Nunca paro de tatuar, pretendo viajar mais por conta disso também.

Sobre o nome do álbum, tive muitas dificuldades para escolher esse nome, as músicas estavam prontas há muitos meses e o álbum só saiu em janeiro porque eu não conseguia decidir o nome. Eu gosto da palavra, acho bonita. Queria uma palavra com muitos “a” e gosto de falar a palavra “lagarta”.

Na adolescência sofri muito bullying por ser diferente no colégio. Chegaram até a quebrar meu braço. Me chamavam de borboleta.

Fotografias por Bruno Saavedra

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