AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Entrevista

Filipe Sambado: “O sítio de onde as canções vieram foi duro, denso e confrontacional”

29 Setembro, 2023 - 13:38

Uma reafirmação como artista e como pessoa. Intensidade e sinceridade. Está aí “Três Anos de Escorpião em Touro”, o regresso de Filipe Sambado à unicidade a que sempre nos habituou e um convite para o seu próprio universo hyperpop.

E se pudéssemos ser quem quiséssemos? Filipe Sambado nunca escondeu essa vontade. Em 2018, por exemplo, já a cantava em Deixem Lá. Agora, no novo álbum “Três Anos de Escorpião em Touro”, a artista parece mais sincera do que nunca.

Filipe Sambado sempre confessou a sua timidez. Apesar de “adorar sociabilizar, conversar e brincar”, a própria chama-lhe uma “defesa de insegurança”: “Tenho muitos receios e escondo-me dos primeiros contactos”, conta-nos em entrevista via email.

Isso e muito mais escuta-se no novo trabalho. “Três Anos de Escorpião em Touro” marca um ponto de viragem na discografia de Sambado, que assina um disco que, embora bem hyperpop, não larga coordenadas que sempre marcaram a sua música. Também já teve elementos de eletrónica no passado – ouça-se o envolvente e espacial sintetizador de Este Fardo, do álbum de 2020 “Revezo” – mas, agora sim, estão realmente evidentes – como estiveram na homenagem que fez a Fausto no Festival da Canção.

Houve “mudanças significativas” neste período de três anos, podia ler-se nos comunicados de imprensa que antecederam o novo disco: “A minha reafirmação de género, uma reconstrução familiar (ser pai, mãe, papita ou outro papel de parentalidade não binária), reapropriação discursiva, incerteza, ansiedade, depressão, que trouxeram consigo um confronto com a identidade.”

“A minha vida é a continuação do que tenho vindo a escolher para mim, as consequências disso e a sorte que daí veio. Uma filha, uma vida profissional, uma vida familiar, uma pandemia, uma crise, muita felicidade e tristeza, incompreensão, frustração, euforia e depressão e muitas coisas mais”, reflete Sambado nesta entrevista.

Também por isso, o processo deste disco “foi muito intenso”: “O sítio de onde as canções vieram foi duro, denso e confrontacional. Tem muito de memória e de urgência. O próprio processo teve várias fases de grande intensidade.”

“Três Anos de Escorpião em Touro” é um álbum especial. Há muito contraste por lá, como entre rispidez e brandura ou entre canções e temas mais disruptivos. Isso ouve-se logo nos primeiros segundos em Frasco de Vidro, que é tão calmo quanto, em certos momentos, duro e áspero.

Para isso, Sambado não esteve sozinha: “Eu sabia que queria fazer um disco com o Bejaflor e aplicar a linguagem que ele tem vindo a recriar e o Rodrigo Castaño da Maternidade veio arrumar as pontas soltas e dar o empurrão que a produção do disco precisava.”

Apesar de a produção do álbum ter sido ao lado desses dois nomes, há mais participações, como Violeta Azevedo em Talha Dourada, Conan Osíris em Caderninho ou vozes de AURORA, Marianne e João Borsch, entre outras, em Coro d’Enby. Mesmo nos videoclips, bem ricos e que ajudam no lado visual que Sambado quis para este disco, há vários artistas a colaborar, como Ricardo Branco e Duarte Coimbra na realização ou 420bombshell na maquilhagem, cabelo e caracterização.

“Sempre gostei muito de criar imagens que me ajudassem a explicar e a dizer o que quero. Talvez tenha desbloqueado alguns processos ou tenha melhorado as minhas idiossincrasias”, respondeu-nos quando questionada sobre estar mais direta do que nunca apesar da presença do lado metafórico.

É difícil ouvir este álbum sem sermos remetidos para referências internacionais como Arca, SOPHIE, 100 Gecs – refere a PC Music ao Rimas e Batidas – e também para nacionais como “Bejaflor, Sreya, Odete, Diana XL, AURORA, entre outres”. Isso não quer dizer que Fausto ou Zeca Afonso deixem de “fazer parte do seu referencial”: “Esse cancioneiro, assim como My Bloody Valentine, Cocteau Twins, Pega Monstro, Robert Wyatt ou Janita Salomé.”

Para ela, “o hyperpop é um género abolicionista de géneros ou o mais inclusivista na medida em que aceita todos e que a sua luz salvará todos os outros”. No fim de contas, “a sua cabeça sempre funcionou bastante assim e encontrar um lugar como este deixou-a mesmo confortável criativamente”, conta-nos, citando discos que foram importantes “nesta altura”, como é caso de “Flamboyant”, de Dorian Electra, ou “Pang”, de Caroline Polacheck.

Filipe Sambado tem em “Três Anos de Escorpião em Touro” um dos discos mais importantes e bonitos do ano, um disco que nos dá melancolia, coragem, uma canção tão sincera quanto Choro da Rouca e tanto mais. “As reações têm sido muito bonitas e sinceras”, diz Sambado, que está longe de ser egoísta – como sempre evidenciou, aliás. “Há muitas coisas interessantes a acontecer, mas enquanto continuarmos neste contexto de desinvestimento cultural, dificilmente se consolidará ou traduzirá num momento de música contemporânea portuguesa.”

“A música portuguesa tem a qualidade que tem a música de qualquer lugar, mas não cabe no seu país e não se descobre, nem se desenvolve”, continua. “É muito giro sair no ‘The Guardian’ e depois ter de tocar no palco secundário a receber cem vezes menos que o artista tradicional de fora. E o mesmo acontece no circuito regional, onde continua a ser mais importante trazer as bandas dos centros em vez de apostar no tecido artístico da região. Tem de se reequilibrar a noção de cultura. Esta lógica aplica-se à falta de representatividade feminina, não branca, não cis, etc… Os festivais grandes e pequenos movem-se sempre numa lógica de importação”, acredita a artista.

Conversas importantes à parte, por agora as atenções viram-se para “Três Anos de Escorpião em Touro”, que Filipe Sambado apresenta no Lux Frágil, em Lisboa, a 16 de novembro, e no CCOP, no Porto, a 23. E daqui em diante, não nos esqueçamos do que elu canta em Talha Dourada: “Sou mais eu quando não tenho medo de ser”.

Fotografias por Rita Chantre

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