AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Entrevista

XEXA: “Penso na música que crio como um ser que olha para mim”

30 Novembro, 2023 - 14:34

“Não estava à espera de nada”, mas assinou um dos discos do ano. Sobre o álbum “Vibrações de Prata” e muito mais, XEXA na primeira pessoa.

É pouco comum ver alguém chamar tanto a atenção num espaço de tempo tão curto. Muito menos quando se trata de música afrofuturista, espiritual e ambiente feita em Portugal. Não é o caso de XEXA.

A aventura na música começou há vários anos, sim, mas só no ano passado é que editou o primeiro trabalho mais longo e sério. O impacto da mixtape “Calendário Sonoro” e do universo próprio de XEXA foi tal que esse lançamento foi destaque por aqui, no Rimas e Batidas ou nos ouvidos de tantos ouvintes.

“Vibrações de Prata”, o primeiro LP de XEXA e motivo para esta conversa, foi editado pela Príncipe, saiu em outubro passado e tem feito com que ainda mais pessoas se interessem por este nome. Mais uma vez, poucos e poucas ficaram indiferentes, até mesmo lá fora. O disco mostra com clareza o uso da voz, dos sintetizadores e de tantas outras minúcias e explorações de design de som. Mas não só.

Ao longo desta entrevista, Vanessa fala sobre “Vibrações de Prata”, os estudos, a sua visão sobre aquilo que compõe ou a sua interpretação de afrofuturismo, que no seu caso está intimamente ligado à cultura de São Tomé e Príncipe.

Olá, Xexa, e obrigado por esta entrevista. Como é que têm sido estes tempos e a receção ao “Vibrações de Prata”?
Têm sido uns tempos assim meio de correria e reajustes. Regressei a Londres, depois de ter estado quase três meses em Lisboa, na semana em que o álbum saiu. Fizemos noite Príncipe em Manchester no mesmo dia do lançamento do álbum, então deu para comemorar fazendo o que gosto, que é performance.

A receção ao “Vibrações de Prata” tem-me surpreendido bastante. Na positiva. Sou-te sincera, ao lançar este projeto, não estava à espera de nada. Nada mesmo. Não por não pensar que as faixas do álbum não são boas, muito pelo contrário, eu sei de que é que aqueles sons são capazes. Como são sons ou, como eu gosto de chamar, tracks não lineares, sem template estilístico específico, não sabia como é que os sons iriam ser recebidos. Ou se iriam ser percebidos.

As mensagens de apoio e as reviews têm-se feito ouvir. Guardo tudo na memória do coração.

Ainda estás a terminar os estudos na Guildhall School of Music and Drama? Como é que tem sido essa experiência e de que forma o lado académico tem influenciado o teu trabalho?
Terminei os estudos na Guildhall recentemente, no início de novembro graduei-me. Eu sou uma pessoa que naturalmente gosta de aprender coisas novas e de ser constantemente desafiada e estimulada. Decidi estudar faculdade em música porque, na altura, com 18 anos, parecia-me o mais certo. Houve toda essa cena de seguir o meu instinto, então saí de casa aos 19 e mudei de país sozinha.

A minha universidade não influenciou em nada a nível estilístico do meu trabalho. Estudei faculdade para aprender música e não estilos. Esse foi um dos motivos por eu não ter estudado música em Portugal. Lembro-me de, em 2019, ter-me sido difícil encontrar um curso técnico de música onde se ensinasse musica sem se comprimir a géneros. Na altura, lembro-me de procurar por cursos de música em Portugal e só encontrava cursos de música pop, jazz, fado. Eu sabia que, assim que fizesse um curso desses, iria começar a ter essas influências na minha música e não era isso que queria.

Sempre quis criar um som próprio a mim. Um som que tivesse como base várias raízes, mas que o ouvinte soubesse logo de quem o som é, meramente pela forma como o som se movimenta. Como na arte visual os artistas têm o seu próprio traço, queria também ter o meu próprio som. Eu penso na música que crio como uma figura, uma essência, uma paisagem, uma viagem, um ser que olha para mim. Eu como produtora e sound designer esculpo o som, a viagem sonora, a paisagem, a essência da figura que olha para mim.

De certa forma, sempre estiveste ligada às artes. Li no Rimas e Batidas que fizeste piano no conservatório em tenra idade e que passaste até por Ourivesaria no secundário. Apesar disto, gostaria de saber o quão importante achas que o lado teórico ou académico pode ser para um músico. Será assim tão essencial?
A minha ida para o conservatório em pequena foi uma coincidência, aconteceu por acaso. Quando mudei de casa do Mocho, surgiu essa oportunidade na nova zona onde morava de fazer articulado em música. A minha mãe perguntou-me se queria fazer música, e eu disse “pode ser”. Tinha 9 anos. Ela inscreveu-me só mesmo para eu fazer alguma atividade extracurricular. Eu é que acabei por ganhar o gosto naquilo.

O lado teórico da música é algo vago e bastante subjetivo. Considero que existam várias teorias musicais. Teoria de música clássica western, teoria de música arábica, teoria de jazz, teoria de folclore e ritmos de África, teoria de DJ, teoria de produção, masterização, etc. Há a teoria académica e a teoria que tu desenvolves, com base nas tuas experiências, aprendizagens, gostos e tudo mais.

A teoria académica de nada te vale se não desenvolveres em ti a tua teoria ou uma perceção dessa tal teoria académica. Que não estudemos música para perpetuar passados, mas sim para criar caminhos. Não precisamos de novos Mozarts nem de Chopins, precisamos de Melissas, de Brunos, de Tatianas… Acho essencial questionarmos o que fazemos, o que nos dizem, o que nos é ensinado. Em suma, academia não te vale nada, se não souberes ser fora dela.

Fui para a escola de música e lá aprendi muito, o que fazer e não fazer. Fui para a escola de música porque queria aprender o máximo de assuntos diversos no espaço mais curto de tempo. Sou uma mulher que gosta de ser autossuficiente, entre fazer os meus próprios sons, a mixá-los, a compor em partitura, a dirigir uma orquestra, montar o meu próprio set, film scoring, programação de som, instalação, surround sound, terapia de som. Quis aprendi isso tudo. E aprendi. Não gosto de depender dos outros.

Quis apanhar conhecimento de cenas que quero espalhar pelos países de onde venho, São Tomé e Príncipe e Portugal.

Voltando ao “Vibrações de Prata”, como o descreves e a todo o processo por trás do disco?
As músicas do Vibrações de Prata foram compostas em tempo de pandemia, entre 2020/2021. Considero-as músicas técnicas. O que quero dizer com isso? São músicas que foram produzidas com um intuito de explorar novas técnicas com o propósito de gerar emoções.

A track Libelula são só dois sintetizadores a oscilar, queria replicar a sensação da vibração das asas de uma libélula e toda essa dualidade que existe no som de asas a vibrar. Essa tensão que vem e vai.

A Assim é uma track em que gravei a voz principal várias vezes de forma ligeiramente diferente. Nesse som criei o echo e o reverb de forma analógica, por assim dizer. A repetição das vozes não são efeitos, são mesmo as vozes a repetirem-se de forma diferente.

Já a Sisters Dancing, por exemplo, são várias samples de 4/5 segundos que foram trabalhadas e mixadas em Max MSP de forma a criarem esse ambiente de celebração e energia que está presente na track.

A capa foi o excelentíssimo Márcio [Matos] a fazer. Trabalhámos na bolacha, que é a imagem que está no CD, em conjunto. O “Vibrações de Prata” foi o primeiro momento da minha carreira em que tive uma equipa a ajudar. Aprendi muito sobre mim, com este lançamento.

Gostaria também de saber mais um bocado sobre as influências que vês eventualmente imprimidas aqui. A nível musical, sim, mas tenho também interesse em saber se o dia-a-dia tem impacto naquilo que compões. Deste lado, parece haver uma abordagem bem pessoal, quase espiritual, na tua música.
Muita da minha inspiração para criar vem da necessidade de inovar. Sempre que crio, tento criar uma cena nova. Obviamente que repito formas de fazer coisas em novas criações musicais, com o intuito de aperfeiçoar alguma ideia, evoluir, mas dificilmente ouvirás três sons meus parecidos a níveis estruturais. Podem ter algo em comum, mas similares nunca serão. Não trabalho à volta de templates de géneros musicais. Gravo sem metrónomo, as minhas músicas nem BPM específico têm. O meu estilo gira muito à volta de não me prender a algo durante muito tempo. Diz muito sobre a minha personalidade.

Eu não chamo as minhas músicas de sons, chamo-as de tracks porque são caminhos, percursos sonoros. São de facto momentos quase espirituais porque eu não produzo com o intuito do outro ouvir. Eu produzo para mim, é uma abordagem bastante pessoal de facto. Quero mostrar que não precisamos de nos conformar a estilos ou formas de fazer música. Como no quotidiano, não devemos nos conformar com o que nos é dito.

Como artistas visuais têm o seu próprio estilo e traço, quero mostrar que nós músicos também podemos criar, tendo o nosso próprio estilo de música. Algo único a nós.

Catalogas a tua música como afrofuturista e diria que isso é evidente. Poderias explicar-nos como olhas para esse movimento e de que forma está presente no teu trabalho?
Para mim, o afrofuturismo consiste na criação de novas narrativas africanas ou de diásporas explorando a relação entre a cultura africana e diásporas com a ciência, filosofia e tecnologia. Como tal é atingido varia para cada artista e dos seus mediums de criação. Há quem concorde com esta descrição e há que refute e está tudo bem.

O meu afrofuturimo é diferente do afrofuturismo de A e B porque está internamente conectado com as minhas experiências pessoas dentro da minha cultura, que é de São Tomé e Príncipe. A perceção de cada um é única, e o afrofuturismo explora isso.

Que lugar acreditas que a tua música pode ter neste mundo em constante ruína?
Espero que a minha música ajude a curar, e que ensine. Por mais prepotente que isso soe.

Sinto uma certa responsabilidade na produção do segundo disco. O mundo está como um barco a afundar, há conflitos éticos, políticos e sociais em todos os cantos do mundo. Sinto que o meu lirismo pode ajudar. Quero que as pessoas oiçam a minha música e se questionem. Quero ajudar a quebrar esta crescente alienação social e esta praga que é o conformismo.

Têm-me dito, pós concertos, que a minha música tem uma característica hipnótica. Não te consigo explicar a sensação de atuar sozinha no palco perante uma sala cheia que está completamente em silêncio e imergida na tua performance. Tipo no OUT.FEST, por exemplo, eu lembro-me de olhar para o público e ninguém se mexia. É quase que como um ritual, é mesmo uma viagem. Gosto de saber que a minha música é capaz de proporcionar ao ouvinte esta experiência contemplativa.

És a segunda mulher a assinar um disco a solo pela Príncipe. Consegues recordar a história da tua ligação com a editora? E o que isto significa para ti?
Eu conhecia os sons dos artistas da Príncipe, mas só quando me juntei à editora é que percebi a dimensão da cena e que vários artistas que me inspiravam sonicamente lançavam na mesma editora.

Foi surpreendente o contacto por parte da Príncipe. Não estava a espera e por uns bons meses não entendi, nem acreditei. Juro. Chama-lhe de negação, mas eu não acredito nos mambos até ver. Nunca estive habituada a ter quem me ajudasse. Sempre quis fazer tudo sozinha, comecei a planear sair de casa aos 18 e aos 19 anos. Saí e mudei de país porque quis. Malhei muito para ter o que tenho, sou muito hiper-independente.

Não é todos os dias que pessoas que acreditam em ti se aproximam com tanta garra e energia para te apoiar. Tipo, eu, que estava pronta para fazer a caminhada da minha carreira sozinha, arranjei companhia.

Tens mais no currículo além do “Vibrações de Prata” ou do “Calendário Sonoro”. Por exemplo, compuseste “Metamorfa” para um desfile de Ivan Hunga Garcia, no âmbito do ModaLisboa, e estiveste ao lado de Ana Carvalho para o 18º episódio de “órbita”, do gnration, Culturgest e Canal 180. De que forma é que experiências como estas te enriquecem?
Sou uma beca exigente com as minhas colaborações. Não faço cenas só porque me pedem ou porque sim. Só participo em projetos que acredito. Gosto de trabalhar com artistas de outras disciplinas porque é de facto bastante enriquecedor, sinto que cresço de forma diferente e inesperada.

Eu gosto de compor para vários medias e sinto que a ModaLisboa é um espaço bastante recetivo a novas ideias sónicas. Já compus 3 tracks originais para os vários desfiles de Ivan Hunga Garcia e em todas elas aprendi algo novo.

O projeto com a gnration, Canal 180 e a Culturgest surpreendeu-me. Ainda estou no início da minha carreira e saber que essas organizações querem trabalhar comigo é estimulante. Plus, a Ana Carvalho fez um trabalho incrível com o vídeo. Ficou mesmo lindo.

Por falar em gnration, foi lá que tocaste aquando da tua passagem pelo festival Semibreve. Na altura, se não me engano, o teu concerto tinha boa parte de foque na voz. Ainda é assim nos dias de hoje? Como é que te apresentas ao vivo?
O concerto do festival Semibreve de 2022 foi um dos meus favoritos desse ano. Foi num momento em que comecei a ficar mesmo mais à vontade no palco e isso notou-se. Atualmente, os meus lives têm maioritariamente foque na voz porque gosto de cantar. Também tenho andado a misturar as minhas músicas nos CDJs em certos momentos do set e a tocar os meus sintetizadores através de MIDI. Gosto de me movimentar em palco e ir tocando instrumentos diferentes.

O meu formato de live é algo que está em constante evolução e transformação. Veremos o que 2024 trará.

Já passaste por Berghain, festivais como Nuits Sonores e tanto mais. Qual o impacto que isso tem em ti e que outras datas tens a caminho?
Tem sido um bom primeiro ano de carreira, confesso. Não faço diferenciação dos espaços que toco, trabalho para proporcionar a mesma qualidade sonora e nível de dedicação independentemente da venue. O impacto que isso tem em mim é tremendo porque sinto que acelera o meu crescimento em palco, como artista. E é muito fixe tocar fora de Portugal e ver como outras culturas a experienciar o meu som. No entanto, Portugal é casa, visto que foi aqui que comecei a tocar.

Sobre datas, viajo para a semana para França, vou fazer um concerto em Grenoble e dar uma masterclass de sound design lá. Algumas datas do ano que vem: o Sonar Festival, aqui em Lisboa, e o Primavera Sound, em Barcelona, por exemplo. Entre outras coisas que não posso dizer ainda, é surpresa.

Como olhas para a Xexa de amanhã e do futuro?
Sinto que a XEXA de amanhã e do futuro tem a capacidade de se tornar em tudo o que ela quer se tornar desde que ela continue a se dedicar. Hard work compensa.

Sou uma artista multidisciplinar, tenho muita energia e quero fazer tudo. Mas sou só uma. O que me limita é ser humana. Mas com a música, aprendi que limites estão sempre em constante expansão, portanto é continuar.

Duas primeiras fotos por Marta Pina, terceira por Renato Chorão

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