AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Entrevista

Temudo: “Fico grato por tudo, mas é fruto de anos e anos de trabalho”

14 Agosto, 2024 - 14:57

Grande entrevista com um dos principais porta-estandartes do techno nacional. Temudo sobre “Shapeless”, o seu percurso e muito mais.

Lançamentos em editoras como Blueprint, Klockworks ou Soma. Atuações um pouco por todo lado. Referência máxima do techno português. Nada disto caiu do céu nem foi por acaso. Desde cedo ciente de que se queria dedicar à música, Temudo é um exemplo de devoção e amor à camisola.

Formado em Som e Imagem pela ESAD das Caldas da Rainha, João Rodrigues nem sempre se aventurou no techno. Há uns anos, era conhecido no mundo do drum’n’bass como Médio, cujo último lançamento, “O Ladrão”, saiu em 2019 pela Skalator Music e inclui uma faixa feita ao lado do saudoso Razat.

Antes disso, como recorda nesta entrevista, esteve envolvido na Dead Motion Records, isto alguns anos antes de criar a HAYES ao lado de cúmplices como Vil. Uma das apostas mais recentes passa pelas atuações em formato live, um pormenor falado nesta conversa que, infelizmente, ficou perdido por falha técnica.

Lê abaixo a entrevista completa que, apesar de ter sido conduzida no âmbito do álbum “Shapeless”, vai muito além disso.

Queria começar por perguntar como é que estás, especialmente porque, a brincar a brincar, a última vez que A Cabine falou contigo já foi há uns 5 anos, quando assinaste o podcast. Queria saber como é que têm sido estes últimos tempos. Muita coisa na tua vida deve ter mudado desde então.
Realmente as coisas mudaram. Veio uma pandemia que nos mudou a todos, que trouxe novas dinâmicas à indústria da música, que trouxe a explosão de novos subgéneros. Outras coisas que estavam no mainstream e deixaram de estar. Tudo mudou.

Eu estou bem, estou feliz porque lancei agora este álbum na HAYES e a recepção foi boa – não é que eu achasse que ia ter uma má recepção. Recebi muito amor e muito carinho por este release, pelos meus pares, por pessoas que eu respeito, por lojas. Ele também vendeu, felizmente vendeu bem, tendo em conta que era um álbum duplo. A HAYES também fez algum investimento para fazer um disco duplo. Então, sim, fiquei muito contente e também estou contente porque vou agora também lançar já outro EP, que também foi uma epopeia para o acabar.

Vou lançar um EP numa label italiana que é Sublunar [“5 Assets”, que entretanto já saiu]. É uma espécie de aposta pessoal minha porque a label não é conhecida pela maior parte das pessoas com quem falo. Mas eu acho que não conhecem agora porque é uma label que vai dar que falar pela visão. Quem está atrás da label é o Sciahri, que é um artista que eu já conhecia há muito tempo porque ele tinha lançado pela AWRY, do Wrong Assessment, há uns anos.

Eu já acompanho o trabalho dele, ele convidou-me e eu acho que ele tem uma visão boa. Já teve lá um EP do Paleman com que fiquei completamente rendido, e o último dele também foi bom, agora o meu. Depois, gosto da linha de editora. Vou lançar lá, portanto, nesse sentido também estou fixe. Desde a última altura em que falámos, comecei a tocar um bocadinho mais também.

Eu até queria ir daqui a bocadinho ao “Shapeless” e tudo, mas como é que é gerir esta vida? A maioria das pessoas pode achar que és só DJ e produtor, mas também tens os teus serviços de masterização, também suponho que a HAYES dê muito trabalho. Como é gerir isso tudo? Como é que é a tua agenda?
Imagina, eu não quero me vitimizar e insinuar que não faço mais nada que não seja trabalhar. Eu também às vezes fico colocado ao telefone só a fazer scroll, que é um hábito que eu estou a tentar despegar ao máximo, mas que às vezes também é necessário estar ali um bocado [risos]. Mas imagina, eu tenho uma benção que consegui para a minha vida, que é não ter compromissos face-to-face com muita gente, tirando os gigs que tenho e os aeroportos, que tenho que cumprir horários, mas de resto eu consigo fazer o meu horário e isso é uma benção.

Eu estou a gerir a HAYES, claro. Eu e o Artur [Nørbak], neste momento, somos quem trata da parte chata da HAYES, digamos. Do back-office, da submissão das releases, ele trata mais da promoção… Quem gere o processo interno sou eu e o Artur. Então sim, a HAYES ocupa uma fatia do meu tempo.

Outra fatia é ocupada por fazer mastering, e é claro, outra fatia é fazer música, outra é a nível de management, e sei lá, tratar das redes sociais do meu projeto do Temudo, falar com a gente, organizar. Portanto, eu não acho que haja um dia em que não trabalhe.

Por exemplo, às vezes só responder a um cliente de mastering a dizer quando é que lhe posso entregar, ou estar a responder ao meu agente sobre alguma estratégia ou alguma data que possa aparecer, ou estar a falar com o Artur a estipular o que é que vamos fazer na HAYES… Eu acho que não há um dia em que eu tenha uma verdadeira folga, estás a ver? Mas pronto, isso foi um commitment que eu também tive para com esta vida. É um commitment com a cena eletrónica que eu quis ter porque eu quero trabalhar e felizmente consegui trabalhar nesta área, que tanto me motiva e tanto me deu. Mas a que também já dei muito, não é? Pelo menos tempo. Acaba por ser uma vida dedicada a isto, tendo em conta que eu comecei com 15 anos.

E já que tocaste no facto de que estás na música há muito tempo – acho que começaste com aulas de guitarra, se não me engano – queria olhar para os primeiros tempos de Temudo. Por exemplo, os primeiros lançamentos da HAYES. Uma das faixas na altura de que mais gostei, e que sinceramente ainda hoje gosto, e é das minhas favoritas, é a You Have Beautiful Highs. Como é que tu dirias que o teu som desenvolveu desde então? Consegues descrever essa evolução?
Quando fiz a transição de estar a produzir drum’n’bass e fazer o projeto Temudo, eu tive ali dois EPs… Eu sei precisar a altura. Eu tive ali um 2014 e um meio de 2015 a descobrir-me, por assim dizer. Mas o primeiro EP que lancei até correu bem, eu tive logo, por exemplo, o Sasha a tocar logo o release e tudo, mas eu aí estava a fazer um estilo um bocadinho mais progressivo e não seria tanto como aquelas referências clássicas, um som que se assimilaria se calhar mais a um James Ruskin, a uma Blueprint, a um Jeff Mills, ainda ainda me estava a descobrir. Ainda ouvia outras referências, como, sei lá, a Minus, na altura, ou Matador.

Sim, e na altura era normal, não é? Acabava por ser o que havia mais em festas, etc.
Sim, sim, eu ouvia muito as cenas da Drumcode, por exemplo. Eu costumo dizer que eu nunca tive aquele primo mais velho, como muitos dos meus amigos tiveram, que ouvia Jeff Mills e punha a malta a ouvir Jeff Mills. Ou eu não fui àquela rave. A primeira rave que eu fui dentro de techno, dentro do estilo mais hipnótico e que tem aquelas micro-dinâmicas de que todos nós gostamos, sei lá… O primeiro gig que eu fui assim ver foi Kr!z ao Europa Sunrise em 2014, para aí, ou se calhar já era 2015. Ou seja, eu sou de 88, portanto, já tinha alguma idade quando fui. Às vezes falo com pessoas que dizem “eu já saio desde 98 ou 99” – pá, eu é desde 2014.

Ou seja, mas este parênteses porquê? Para dizer que eu acho que o verdadeiro shift ocorreu antes da You Have Beautiful Highs. Não te consigo dizer que tenha tido um grande shift desde 2018 até agora, que foi mais ou menos quando eu fiz essa música. Eu lembro-me que acabei essa música, ou trabalhei elementos dessa música, no avião. Isto para um dos meus primeiros gigs, penso que tenha sido para o Luxemburgo, para tocar com o Chich numa festa dele. Eu lembro-me disso, por isso é que eu sei exatamente a altura em que fiz mais ou menos essa track. Foi feita em 2017, assim é que foi, e acabou por sair em 2018 no HYS003 no fim do ano.

Desde então eu acho que toda a cena techno ficou um bocadinho mais acelerada e eu abracei também essa mudança. Eu acho que é muito engraçado na parte do DJing tu conseguires descobrir que há músicas que funcionam a qualquer BPM, há músicas que funcionam bem ficando mais lentas, outras que funcionam bem ficando mais rápidas, mas há músicas que funcionam bem no BPM em que foram feitas.

Então, para mim, também foi interessante explorar e fazer música num andamento um bocado mais rápido. Foi algo que quando comecei não acharia tão óbvio, estar a fazer música a 140 ou a 143 BPMs e desenvolver ideias. Portanto, se eu posso falar de um shift, eu posso falar que se calhar um tipo de ideia que eu saco a 140 BPM não seria o tipo de ideias que eu se calhar estava a trabalhar em 2017 a 130. Por exemplo, aquela minha track A1, que saiu logo no primeiro HAYES, isso era uma track em que se notava claramente que eu estava a viver um período de andamentos mais lentos.

E sentes que te descobriste, por assim dizer? É que agora, ultimamente, há uma sonoridade muito específica, uma sonoridade de Temudo a que as pessoas te associam.
Ya, se há coisa por que estou grato, ou estou contente por ter atingido… Eu acho que há claramente uma assinatura minha sem que eu repita as mesmas produções. Porque é muito fácil – e atenção, isto não é uma crítica, é algo que eu estou contente por ter conseguido a nível pessoal/artístico – quando tu fazes um método a produzir, é muito fácil tu mudares pequenas coisas numa sequência ou mudares o jogo de percussões e com os mesmos elementos fazes 10 faixas.

E eu, como tento começar com o projeto de Ableton em branco cada vez que vou fazer uma música, estou contente por ter uma assinatura, mas em registos completamente díspares. Consigo fazer uma cena mais housey… E isto também se nota pelas labels que lancei. Tanto lancei pela Warm Up, como pela Klockworks, Blueprint, HAYES.

Felizmente, eu consegui ter um alcance fixe. Eu acho que isso também se deve ao facto de eu ser um grande nerd de Ableton e investigar tantas técnicas diferentes. Por exemplo, a última track que eu acabei, e que fiquei assim contente, foi uma track de house. Mas também já fiz drum’n’bass. Portanto, ter um espectro bem alargado obriga-te a procurar técnicas e soluções criativas diferentes. Então, mesmo que tenha a mesma textura e a mesma sonoridade que se vincula a mim, consigo transpô-la para moods um bocadinho diferentes.

E mesmo para ti, com estes anos todos, é constante aprendizagem, ou não? Aliás, tu próprio estavas a tocar nisso.
Muito. Imagina, por exemplo, agora toda a gente sabe, isto não é novidade para ninguém, o hard techno, de repente, eu nunca esperei, mas fez um take over. Não foi por isso que eu me quis redescobrir a fazer hard techno, estás a ver? Porque não tem mesmo a ver comigo. Mas, por exemplo, não sei, eu tenho um bichinho e adoro fazer house. Gostava de conseguir lançar, de repente, duas faixas de house que mesmo o público de house e os DJs de house reconhecessem e circulassem por aí.

Tal como se calhar um dia gostava de fazer algo mais a caminhar para aquele dubstep mais minimalista, por exemplo. Mas quem sabe eu também não vá experimentar fazer qualquer coisa também minimalista a 150 BPM dentro do techno. Mas sim, dá sempre para nos redescobrirmos sem termos que abraçar uma trend óbvia. O que eu acho que aí é que a redescoberta é um bocado pobre, estás a ver?

Ok, agora está a dar bué hard groove. Pronto, vamos todos redescobrirmos a fazer hard groove. Daqui a uns anos, olha, está na moda fazer uma cena bué mental à PoleGroup outra vez, como era à PoleGroup em 2012… Percebes? Essa redescoberta óbvia de uma cena trendy, eu acho que acaba por ser a redescoberta mais pobre. E não tem mal para quem a faça ou para quem a sinta, estás a ver? Mas eu aí acho que é uma redescoberta um bocadinho forçada, por assim dizer.

Agora quando as pessoas têm, sei lá, aquela exploração criativa mais livre e fiel a ti, fiel ao que estás realmente a sentir, acho que acaba por ser o mais interessante de fazer. Isto é a minha perspetiva, uma perspetiva muito pessoal.

E mesmo olhando para o “Shapeless”, não achas que de certa forma mostra um bocado isso? Mostra-te a ti e tudo isso em que estás a tocar, toda a aptidão de não ser a mesma fórmula, não é uma forma repetida ao longo das faixas.
Não é, não é. Foi bué engraçado que no outro dia encontrei o Rene Wise no aeroporto, estávamos a falar e ele tinha uma ideia que eu depois completei, que é: ele falou que é importante que cada track tenha o seu próprio universo. Nós completámo-nos um ao outro e a ideia é esta: que cada track consiga ter o seu próprio universo sónico. Eu reconheço que na minha discografia se calhar em três ou quatro situações há tracks que são assim um bocadinho irmãs, mas, tirando isso, eu gosto mesmo que cada produção viva por si só.

E o que aconteceu com o “Shapeless” foi uma cena curiosa. Acabar o meu primeiro Klockworks foi relativamente fácil, eu tinha uma demo na altura que o Ben Klock aceitou e foi fácil. Mas acabar o meu segundo Klockworks foi mais demorado, foi um processo que demorou para aí um ano e meio. Então houve muita música que eu fui fazendo e como eu estava muito focado, quase obcecado, em acabar o segundo Klockworks, houve muita música que eu fui fazendo e pensei: isto está fixe, mas não vai para a Klockworks.

Houve tanta, tanta música que eu fui fazendo e fui pondo de parte – e depois também houve uma altura que surgiu eu fazer um EP split com outro elemento da HAYES, mas depois isso não aconteceu – então, por uma sucessão de eventos, eu fui fazendo música e música e música que ficou guardada. Na altura de eu mostrar a música ao meu pessoal da HAYES, numa perspetiva de fazer um EP, até foi o Vasco [Autrane] que deu a sugestão ao dizer que achava o trabalho ilustrava bem quem eu sou e que devíamos fazer um disco duplo.

Esta ideia foi o que toda a gente concordou e o que é que resultou daqui? Resultou um release com música feita durante um processo de quase dois anos. Eu senti-me quase uma banda, sabes? Porque eu lembrava-me de em puto acompanhar as bandas. O pessoal ia escrever durante quase um ano. Eles faziam interregnos grandes a escrever. E agora que olho para trás…

Deixa-me só pôr um parênteses. Nós vivemos numa era na música eletrónica em que há muita pressão. Tens que estar a pôr sempre qualquer coisa cá fora, tu queres sempre chamar a atenção. Atenção, eu falo por mim e eu sei que os meus colegas passam por isso também. Queres pôr qualquer coisa cá fora, queres pôr um EP fora em janeiro, queres ter outro em abril, e queres já ter um em junho e um em novembro… Há sempre esta cena um bocado fabril, fruto um bocado do consumo mais rápido e de toda esta conjuntura de redes sociais também. Eu acho que qualquer DJ sabe o que é que mais ou menos eu estou a falar, esta necessidade de pôr coisas cá fora.

Se calhar, fruto destes acidentes da Klockworks e de tudo isto que eu expliquei, acabei por deixar este pack respirar. Então, para mim, este respirar foi bom porque depois permitiu-me fazer um álbum coeso. Por exemplo, eu não sei se agora teria a coragem de dizer que vou respirar um ano e lançar um álbum. Eu próprio já estou naquela de querer ter um EP em breve. Só que isto é quase uma ratoeira que eu estou a criar para mim mesmo ou que um artista cria a si mesmo. Imagina, às vezes também olho – e claro que saem EPs brutais – mas às vezes há casos que eu olho e se calhar, até mesmo para mim, se tivesse feito um interregno entre estes dois ou três releases, teria tido um trabalho que talvez ilustrasse mais aquilo que eu sou. Seria um bocadinho mais perto da genialidade que um artista quer chegar.

Portanto, sim, já me senti um bocado como uma banda no sentido em que recolhi material de muitos meses e questionei-me se este não seria um processo um bocadinho melhor: tirar o pé do acelerador para que consiga ter uma cena criativamente mais coesa e uma coisa que não seja feita tanto sobre a pressão do mercado ou sobre um lifestyle. Acho que me fiz entender.

Mas esta decisão do “Shapeless”, as faixas em si que estão lá, contas com o input da malta ou foi mesmo tudo escolha tua?
Não, foi um episódio giro porque eu tinha esta demo para a HAYES. O pessoal disse que gostava de tudo e que íamos lançar tudo. Eu não contava com isso. Fiquei um bocado surpreso porque nós nunca tínhamos dado este passo de fazer dois discos. Fazer um disco já é caro, fazer dois é praticamente o dobro. Não ficou nada de fora.

Se olharmos, este aqui é mais um disco duplo. Não sei, corrige-me se eu estiver enganado: é mais um LP duplo do que um álbum propriamente dito. Ou não concordas?
É assim, eu já tive inúmeras conversas sobre o tema. Eu acho que isto vai mesmo de uma interpretação de cada um. Imagina, os Metallica também tinham álbuns curtos, também com sete, oito músicas, diria eu. E não são os primeiros. Ok, não é um álbum de conceito…

Pois, pois, até era mais essa a lógica.
Mas eu acho que não tem de ser. Há aqueles álbuns de conceito em que quase que tens certas melodias, que ouves numa track, ouves noutra, que é super conceito igual. Mas eu acho que não tem necessariamente de ser assim. Daí eu achar que tenho aqui um LP e não um EP. Agora, eu sei que não é uma cena tipo ópera, não é? Claro. Não é aquele conceito. Mas que tenho aqui um LP de música de dança, por assim dizer, porque as músicas vivem todas naquele contexto. E eu sinceramente, com este projeto que tenho, pelo menos posso afirmar isto em 2024, o meu interesse é fazer música para ser ouvida num contexto dançável. Talvez um dia eu possa criar um projeto para fazer música que não tenha como foco principal a ser ouvida neste contexto. E sem vergonha nenhuma de dizer isto.

Se calhar estou enganado, mas o que lançaste pela AWRY não tinha só um lado de dança, ou não?
Sim, mas o da AWRY… Talvez fosse um álbum ligeiramente mais de conceito porque as músicas foram feitas mais próximas umas das outras. E sim, na primeira e na última música conseguias ver mesmo ali que uma vivia dentro da outra.

Mas isto sem negar o que estás a dizer. Estou a comparar e, como disseste, neste momento estás virado para a música da dança.
Sim. Mas sempre estive.

Começaste como Médio, entretanto estamos a falar de uma pessoa que vai lá fora, lançou por algumas das labels techno mais reconhecidas… Isto passa-te pela cabeça?
Como é que eu digo isto… Eu não me quero nada vitimizar. Para já, sou um privilegiado pelo sítio em que estou. Sou um privilegiado pelo sítio em que vivo, sou um privilegiado por ter saúde… Não que eu queira dar uma de gratidão.

Sou um privilegiado, mas imagina… Isto saiu-me tudo do pêlo. Saiu-me do pêlo no sentido em que eu sou grande nerd de Ableton, estás a ver? Sou um grande nerd de áudio. Felizmente, em puto soube que queria fazer música e decidi logo ir estudar. Há certo conhecimento, certas técnicas que desenvolvi já em 2009 ou 2010. Já é muito tempo. Fico grato pelas coisas que alcancei, mas nós vivemos numa altura em que – e isto é um bocado ratoeira, tenho que ter cuidado com as palavras que uso – mas o Instagram e as redes sociais, e às vezes certos clubes que tu tocas, conseguem ampliar-te de repente. Há muitos fatores, para além da música hoje em dia, que catapultam um artista… E isto não era assim tanto…

Mas não é o teu caso.
Não é, não é o meu caso de todo. Eu fico grato por tudo, mas… O meu primeiro gig foi na tasca de uma aldeia perto aqui de Torres Vedras em que eu levei o meu material. Isto foi o meu primeiro ou segundo gig. E o terceiro foi também neste café. Eu comecei mesmo, mesmo por baixo. Fiz raves, fiz eventos de Carnaval, por onde quase todos os DJs de drum’n’bass passaram. Em Torres Vedras, onde eu, o Arkanoid e a Kick Snare organizamos eventos. Fiz uma editora, fiz uma segunda editora, que foi a HAYES. Já escavei tanto com a enxada. A escada foi tão longa. Foi um processo muito natural e nada me caiu de repente. Fico agradecido, mas é fruto de anos e anos de trabalho.

Tenho curiosidade em saber como olhas para o cenário nacional? E eu vou-te perguntar isto porque sinto que não tocas assim tanto por cá. Se calhar vejo-te nas noites da HAYES no Gare, em festivais, mas sinto que não tocas assim tanto por cá. E querendo responder a estes exemplos ou não, a pergunta no seu todo é mesmo perceber a tua visão sobre o cenário nacional.
Sabes, a escolha de tocar mais ou menos prende-se também um bocado à gestão de carreira e ao facto de eu ter um calendário internacional.

Quando me perguntam para olhar, há toda uma bigger picture e para mim há sempre um bocado de divisão entre o que é um circuito musical de um país ou de uma cena e o que é que ela representa ou o que está a atravessar artisticamente. Artisticamente, Portugal está a arrasar. Nós temos artistas a fazer muito boa música… Não tenho dúvidas. Às vezes custa-me estar aqui a mencionar nomes porque há sempre alguém que se esquece de dizer, mas temos muitos artistas.

No outro dia, estava o treinador do Liverpool, acho que era o Liverpool, a falar da quantidade ridícula de bons futebolistas que Portugal exporta. Pá, e eu acho que no techno nós estamos quase a chegar ao mesmo. Pronto, para o tamanho e para a dimensão, temos uma comunidade artística fortíssima. Em Portugal há união e é algo com que fico contente. Nunca haverá uma união a 100% porque há crews que fazem as suas coisas e outras a seguir caminhos paralelos, mas as pessoas dão suporte. Sei lá, eu às vezes ouço o pessoal a falar do antigamente aqui, que não havia assim uma grande união e era um bocado aquela luta pela própria carreira, olhar para o umbigo. Eu não vejo mesmo as coisas assim.

Se falarmos em festivais, casas, pá, até posso não concordar com a forma como algumas programações são feitas, mas eu não tenho de concordar ou deixar de concordar porque são instituições privadas, com fruto do seu próprio trabalho. Eu posso não me rever em certas curadorias, mas eu tenho de aceitar. E daí eu não posso fazer nada. Mas, por exemplo, já que me permites, por exemplo, eu posso olhar para um Basilar e para um Gare, é um trabalho exímio, incrível. É uma curadoria cuidada, é um acreditar na música. É um statement artístico, um statement filosófico, um bocadinho social também. São projetos que eu tenho de apoiar.

Sei que não gostas de referir nomes, até porque vai sempre escapar alguém, mas lembrei-me que foste uma das pessoas que me mostrou a música do Salbany já há alguns anos, estava ele a lançar o primeiro EP. Queria perguntar se costumas estar atento, e até nem te vou pedir para dizer nomes, mas se é uma coisa que gostas de fazer, estar atento à cena portuguesa.
Sabes que o meu trabalho é muito internacional na medida em que a HAYES recebe demos de todo mundo e eu tenho clientes de masterização também de toda a parte. Então eu acabo por estar atento a jovens valores numa perspectiva um bocadinho mais internacional. Mas aqui em Portugal há sempre um trabalho… Por exemplo, um caso que eu posso falar, que já não vou dizer para estar atento pois está a explodir de Portugal para internacional: o Fresko. Eu estou a falar do caso dele porque é uma pessoa com que falo de música e de som e composição, falo bastante com ele também. E acabo também por estar com ele na cena em si e um bocado no terreno.

Por exemplo, no campo do house, eu também tenho de falar do Luhk (aka Zoy), mas ele já é bem conhecido. Aí sim, consigo apontar um valor que eu acho que vai explodir, que é o Saramago. Porque, lá está, são nerds, estás a ver?

Ainda há pouco tempo, a propósito de um post, que não me lembro a origem, o Quelza deu uma opinião e o Arthur Robert escreveu uma frase como esta: os nossos ídolos costumavam ser nerds. Então as pessoas que eu acabo por falar e referenciar, que vão dar cartas, acabam por ser outros nerds. Quando te falei do Salbany foi porque era outro nerd que falava comigo de música e acabei por te referenciar.

Isto para dizer o quê, que eu não sou um gajo que está sempre a sair, que eu não sou um gajo que está sempre na rave. Eu acabo por estar mais à procura de pessoas que fazem música do que novos DJs. E atenção, alguém ser DJ, só DJ, é algo completamente válido, até porque, por exemplo, possivelmente o meu DJ favorito, ou que eu possa dizer isso, é o Montero, e é também um artista que se dedica muito mais a ser só DJ do que a ser DJ e produtor.

Como não estou assim no terreno tantas vezes – também não moro em Lisboa e tenho alguns gigs, acabo por nem sempre poder sair à noite para conseguir descansar – do ponto de vista de DJing não consigo dar-te assim tantas referências. Mas, no mundo da produção, estes dois, dentro do house e do techno, são dois artistas que consigo referir. Não só por serem meus amigos, mas por saber que são pequenos diamantes em bruto pela forma como estão a abordar a composição e a tratar cuidadosamente da música que fazem.

Algumas palavras finais?
Quando falámos há bocado sobre como era a minha agenda, há sempre coisinhas para fazer e acaba por ser difícil também conjugar às vezes com a vida pessoal. Se tivesse mesmo só os gigs e mais nada, seria mais fácil, mas tendo a HAYES e a masterização a cena fica mais difícil de gerir. Mas pronto, como eu gosto do que faço, não me importa também estar sempre um bocado nessa bolha e viver um bocado debaixo dessa bolha.

Eu só quero mostrar que, se estiver alguém de fora a ver esta entrevista, sobretudo um newcomer, isto é um bocadinho mais do que um full-time, isto é um estilo de vida. Já o abracei há muito e é mesmo um estilo de vida porque acabas por estar sempre a pensar nas coisas.

Fotografias por Rúben Marrocos

relacionados

Deixa um comentário







t

o

p