AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

FORTE: o techno embrenhado em muralhas

3 Outubro, 2018 - 19:52

Um mês volvido após a quinta edição de Festival Forte, chegou a altura de refletir sobre os quatro dias de pura rave.

Subir Montemor-o-Velho em direção ao castelo da vila na primeira noite, acompanhados por dezenas de pessoas, provocou reminiscência. Mesmo sabendo que estávamos prestes a voltar a pisar aquela mítica pista. Depois de passar a entrada, deparamo-nos com muralhas que envolvem, jardins que nos aturam, e até a igreja de Santa Maria da Alcáçova em direção ao palco. Antes do espetáculo de abertura, houve tempo para carregar cartões, ir buscar bebidas, enfim, acomodar o corpo em jeito de preparação.

Pantha Du Prince e o Bendik HK subiram a palco pouco depois da hora marcada. Num ambiente sereno, os presentes ficaram altamente focados no alemão, responsável pelo lado eletrónico do espetáculo, e no baterista norueguês, que não parou de suar dada a intensidade que investia nas baquetas. A percorrer estilos e ideologias, o concerto chegou a um ponto incrivelmente melódico, provocando ainda mais os olhos e ouvidos atentos do público.

Pouco depois da meia-noite, chegou a vez de Electric Indigo, austríaca que trouxe um lado mais clubbing ao recinto, marcando o passo da rave que se viria a viver nessa e nas outras noites – não na mesma escala, ainda assim. Em certa medida, tudo acalmou com Robert Henke, um dos responsáveis pela criação do Ableton, que levou o seu live surround até Montemor-o-Velho. À hora em causa, perto das 2h, a maioria já pouco se importava com detalhes técnicos, mas é certo que, mesmo inconscientemente, os cérebros eram equilibrados numa viagem entre pólos conduzida por Monolake, que ia unindo sonoridades profundas para estímulo das nossas sinapses.

Depois de Henke, no entanto, é impossível não afirmar que foi aí que a verdadeira festa começou para a maioria. Afinal, repleto de maquinaria, Stanislav Tolkachev atuou durante uma hora em formato live, que é, só por si, destruidor. A sonoridade de Stanislav já é suficientemente avassaladora, e ninguém se queixou – ainda que se ouvissem alguns berros, eram em sinal de excitação e ebriez – durante a intensa e bela hora de Tolkachev. O próprio Umwelt, que entrou depois, mostrou apreço pela sonoridade do ucraniano ao selecionar, ao longo do set, a absurda Yes, Today.

E não se pode dizer menos do francês. É certo que o espanhol Oscar Mulero, responsável por fechar a primeira noite no castelo a partir das 6h, também é e foi mestre, cumprindo a missão como poucos – o habitual do fundador da Pole Group. Mas a abrangência de Umwelt marcou a noite, sendo possivelmente o dj mais notável de quinta-feira, viajando, com grande técnica, por entre sonoridades e bpm relativamente díspares ao longo das duas intensas horas de set.

O opening act deste ano ficou a cargo de Pantha du Prince e Bendik HK (na foto)

Uma noite de sexta-feira num festival como o Forte é sempre outro encanto. Melhor ainda, imaginem autênticos espetáculos como entrada: Apart e Amnesiac a apresentar Parts of Everyday Nature, e Drew McDowall, ao lado de Florence To, num audiovisual, em estreia mundial em Montemor-o-Velho, à volta do disco Time Machines dos míticos Coil. Cada um à sua maneira, estar pouca gente no recinto não é problema. Quem está por lá deixa-se levar por música ligeiramente afastada do mundo das raves, mas que acaba por ser uma inigualável preparação para a noite que se segue.

Nesse sentido, escolheríamos Alva Noto para dar seguimento a McDowall, mas primeiro atuou Anastasia Kristensen. A dinamarquesa, uma das nossas sugestões para o festival, alimentou-nos com um vasto leque de estilos, sempre com uma coesão que coordenava as danças do recinto. Já Noto, monstro de bandas sonoras, continuava a dar música afastada do 4/4 que muitas das vezes se espera neste tipo de ocasião, mas isso não tira credibilidade ao grande espetáculo que deu em Montemor-o-Velho. Um autêntico filme de cinema provido pelo sistema de som e, claro, pelo lado visual.

Numa noite marcada também pelo cancelamento de Planetary Assault Systems, o “nosso” marum ficou responsável por cobrir a hora do britânico e fazer o público esquecer a ausência de Luke Slater. Por entre loucuras como Work de James Ruskin (o clássico remix de Steve Rachmad), Pedro foi impressionante, afirmando a grande rave que se vivia no Festival Forte naqueles dias. O membro da mina deu lugar a Surgeon, veterano dos British Murder Boys que não fez as pazes com ninguém: altamente intenso, Anthony Child fez maravilhas com as máquinas.

O aguardado regresso de Function ao Forte aconteceu às 6h, e, tal como Surgeon, atuou durante uma hora em formato live. David Sumner terminou com uma bela melodia que trouxe sentimentos de nostalgia, e, no final, acabou por ser o mais aplaudido da noite. Antigone b2b François X foi o ato que se seguiu. Apesar de não decepcionar completamente, o set da dupla francesa não conseguiu atingir as proporções de Surgeon e Function, nomes que não nos saíram da memória depois das suas monstruosas atuações.

I Hate Models foi um dos responsáveis por embelezar a manhã de domingo

Duas noites (e dias) depois, a manhã e a tarde de sábado tinham de ser para descansar e recarregar energias obrigatoriamente. Afinal, já há três anos que o último dia de Festival Forte o é literalmente. 24 horas de pura rave. Enkō abriu a pista às 22h, duas horas antes do esquisito live de Robert Lippok. Lena Willikens inverteu os papéis à sonoridade de Lippok, selecionando breaks e electro por entre techno no Castelo de Montemor-o-Velho.

Os atos seguintes não eram para todos, mas todos foram levados pelo poder de Blush Response, às 3h, e Adam X, às 4h. Vindos de uma escola muito mais industrial e EBM do que se tinha ouvido até então, ambos em formato live, deram início a uma autêntica revolução – Adam X, por exemplo, agarrou no microfone e, com uma voz monocórdica, afirmou o lado punk da questão. Também com uma live de uma hora esteve The Hacker, que deu a ideia de apreciar linhas de baixo em particular, daquelas que fazem o corpo relaxar completamente os músculos.

Já Helena Hauff, que nos acompanhou entre a aurora e o amanhecer, é um exemplo de dj. Altamente precisa e criativa, foi possivelmente um dos destaques de todo o festival, fazendo jus à fama que tem de misturar techno e electro (e outros) como ninguém. Depois atuaram, em formato live, os Extrawelt, dupla alemã que, apesar de abrandar o ritmo e a intensidade em certa medida, tocou músicas como Soopertrack ou Titelheld para apreço de todos.

Às 9h30 de domingo, o jovem francês I Hate Models trouxe uma mistura muito solta e devassadora, com trocas inesperadas e repentinas que estonteavam tudo e todos. Aliada a um techno cru e preciso, por exemplo, Wouldn’t You Like To Be a Hoe Too de DJ Slugo arrebatou-nos completamente, e o mesmo se pode dizer de faixas como All This Was Fire de Héctor Oaks. Para nós, apesar de se seguirem Mumdance, Shlømo (live), Hedonic 2, Svreca e Neel (live) – atos bastante elogiados por quem lá esteve – tinha chegado a hora de ir recuperar a energia necessária para o grand finale com Donato Dozzy. O italiano foi ácido, hipnótico, uma autêntica chama repleta de mestria que deliciou todos os ouvidos, guiando-nos, entre as 19 e as 22h, com músicas originais ou faixas tão saborosas quanto Final Network de BNJMN. Dozzy é mestre e, em Montemor-o-Velho, foi maestro na nossa despedida do castelo.

O palco do Camping Is Love é construído e idealizado por membros da equipa do festival

Perder aquelas horas de castelo durante a tarde de domingo não é necessariamente má ideia, especialmente tendo em conta aquilo que é o Camping Is Love, o incomparável campismo do Festival Forte. Para dar uma ideia, é possível chegar a este palco depois de uma noite, agarrar em colchões, deitar, ficar a ouvir música (sim, há lá música constantemente) e esquecer a intensidade que se vive no cimo da vila para, só assim, tentar descansar. É o lado mau do festival, esse de ter de descansar. O mesmo acontece com os eventos que acontecem no Teatro Esther de Carvalho – recebeu performances de !..!.Art.Attack.!..!, José Macabra e Rotten Sun esta edição – que, para os mais preguiçosos, é difícil visitar. Mas é esta arte, a qualidade da música do cartaz, fatores como o generative garden ou o lado visual de artistas como Malo Lacroix e Henry Driver – além do impetuoso castelo, que tem um enorme espaço para alojar os nossos corpos – que fazem o Festival Forte aquilo que é. Comparando com outros festivais do género, é uma rave onde há mais expressão sexual, por exemplo. Além de forte, é refúgio.


Caroline Lethô ou Tone Hettmann ainda nos deliciaram no Camping is Love, até às 4h, depois de Donato Dozzy no castelo. O único problema é que no dia seguinte é segunda-feira, e regressar à vida secular pode ser um transtorno. Especialmente tendo em conta a odisseia que o Festival Forte é.

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