AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Agora sim, Sónar mostrou por que razão tem casa em Lisboa

29 Março, 2024 - 16:44

Depois de duas edições que deixaram algo a desejar, a sensação de que as arestas da fórmula foram limadas. O festival regressa em 2025.

As expectativas eram altas no ano de estreia, como aliás se espera do festival nascido em Barcelona. O cartaz do primeiro Sónar Lisboa era abrangente e ia de Arca a Ellen Allien b2b Dr. Rubinstein, passando por nomes como DJ Lycox, Nkisi ou Thundercat, tudo isto num itinerário que incluía vários espaços, entre os quais o Coliseu dos Recreios. No fim, a impressão de que todo esse roteiro foi demasiado ambicioso.

Em 2023, a edição foi também pouco elogiada pelo público e pela imprensa, particularmente por fatores de logística e programação. Este ano, momento de provar as razões pelas quais merece fazer parte do roteiro de festivais dos fãs de eletrónica. Mais modesto, com a música centrada em três palcos no Pavilhão Carlos Lopes, no Parque Eduardo VII, o Sónar Lisboa conseguiu cumprir melhor o papel.

O cartaz de 2024 levou-nos até diferentes coordenadas de dança – do afro ao techno, da música bass ao house, do electro ao baile funk –, como se espera desta marca, mas não só. Houve concertos de hip-hop, hyperpop ou punk e até uma brilhante instalação (e performance na noite de sábado) da lisboeta ZABRA na Estufa Fria, onde se desenrolou também a programação do Sónar+D. Espaço idílico, muito perto do recinto principal, ideal para abrir bem os olhos (ou fechá-los, se preferirmos) e deambular por entre a natureza (e, neste caso, por entre a mão do humano), especialmente durante a noite. Ficamos com pena de não o termos aproveitado mais.

Chegados ao Pavilhão Carlos Lopes na sexta-feira, poucas diferenças, embora estas tenham servido para melhorar a experiência, como a nova e melhorada área de alimentação. Os palcos estavam nos mesmos sítios, os vários espaços verdes continuavam a saltar à vista – refúgio ideal para descansar o corpo de tanta dança –, o interior era servido por muitos postos de carregamento de pulseira e até por uma banca da Kosmicare, com informações, análises a drogas, tampões de espuma ou outra parafernália importante em festivais como este. Lá dentro, no chamado SonarClub, depois de infelizmente perdermos Chima Isaaro, esperava-nos aquele que se revelaria como um dos nomes mais esperados por muitos dos presentes.

Nasceu no Teerão e a sua música faz fervilhar corpos e mentes desde 2015, quando lançou o primeiro EP, ou até 2017, altura do álbum de estreia “ISON”. Que o diga Björk, que esteve bem perto do palco a ouvir este fenómeno chamado Sevdaliza. Concerto perfeito para fãs, mas não só, já que grande do reportório passou por músicas novas, como uma colaboração com Pabllo Vittar e Yseult, um remix de Tokischa ao hit Ride Or Die e até um tema que gravara há apenas três semanas. Presença no palco, voz, dança, música hyperpop que nos pode levar a beats de América Latina ou da Europa. Tudo no ponto.

Depois, muito clubbing pela noite dentro. Primeiro, com Helena Hauff e IMOGEN, imperdível b2b que gostaríamos de ter ouvido num horário mais tardio, naquela ou noutra noite. Lição séria de electro (e não só, especialmente na parte final, mais direta) que passou por Nu Jack, de Cotton Club, Synth Of Hearts, de Ben Pest e IMOGEN, ou a sempre reconhecível When I Rock, de Thomas Schumacher. Que prazer.

Pouco depois da 1h, Tiga e Hudson Mohawke, dupla com o recente e aplaudido “L’Ecstasy” na bagagem. E que êxtase, mesmo. DJ set variado, de apontamentos nostálgicos, com direito a temas do referido álbum, como as arrepiantes Ascending Into The Clouds e TR Smooth, ou pixel hunting, de Vladimir Dubyshkin, para dar uma ideia. Muito calor – até mesmo lá fora –, beats enérgicos, visão já algo embaciada e dois DJs a cumprirem a missão de forma tão certeira quanto possível. Seguir-se-iam DJ Gigola, que tocou rápido e repleta de groove, e Jennifer Loveless, mais house, às 2h30 e 4h15, respetivamente. Àquelas horas, na verdade, já nos começamos a perder por entre a pista efusiva e saímos pouco depois da 5h – afinal, no sábado, a música arrancaria às 13h30.

Até mesmo durante a noite, esteve sempre bom tempo durante este Sónar e sábado não foi exceção. Atrasados para a festa, perdemos Supa b2b Ghetthoven e Ikram Bouloum b2b Odete e, ao entrar no recinto, ainda ouvimos a dupla Ruuar a passar uns breaks dub de tal forma apetitosos que ficamos com vontade de sentar na relva do SonarPark.

Mas no SonarVillage, depois de Rita Maomenos, estava Conferência Inferno à espera. O trio do Porto, de música pós-punk e atitude idêntica, não desiludiu. Muito à volta do último disco “Pós-Esmeralda”, apesar de o concerto ter arrancado com Radiação, a banda passou por temas como Mayday, Auto-Pânico ou Distopia, música com que rematou o concerto. Energia e coração em comunhão com algum público que, notava-se, conhecia bem o que se estava ali a passar. Zé Miguel Silva, nas teclas, puxou persistentemente por todas e todos, evocando gritos pela Palestina ou contra o corporativismo, precisamente a atitude que se espera deste trio. Nota 10, pois claro.

“Vamos todos ouvir Oneohtrix Point Never”, ainda se ouviu nesse concerto. E fomos. Difícil não olhar para o espetáculo de Daniel Lopatin ao lado de Freeka Tet como um dos destaques, senão o grande destaque, de todo o Sónar. Um brilhante e envolvente momento tocado ao vivo que passou por diferentes discos do músico – ouviu-se Problem Areas, Plastic Antique, Krumville e tantas outras – marcado por contrastes, mas sempre coesos, bom som e absurda manipulação de imagens (e de plasticina dentro de uma caixa, que representava Oneohtrix Point Never e a maquinaria, manuseada de forma cuidada e surpreendente) pelo referido artista visual. Espetáculo que certamente ainda há de residir na memória de muitas pessoas, como é o nosso caso.

Pelo caminho, fomos perdendo alguns atos, tal o modo como aquele recinto puxa pelo convívio. MaguPi’nliquid bass ou Mona Yim, que ainda ouvimos a passar Marie Davidson, são alguns exemplos, assim como os muito elogiados Tommy Cash e Perel. Apesar de o som não estar no ponto, fomos ouvir a assinatura techno do nipónico Wata Igarashi em formato live – e não nos arrependemos.

Ao longo dessa tarde, a intenção de boa parte do público era clara, tendo em conta a quantidade de t-shirts da seleção alemã: Paul Kalkbrenner em live, ele que entrou no SonarClub às 20h. Sala completamente cheia, com pouco espaço para circular, mas nada que fizesse arredar o pé de toda aquela gente que elogiou a atuação. No nosso caso, ainda ouvimos temas como No Goodbye e Eyes Open na parte inicial, mas o tempo lá fora era tão convidativo quanto Dresden (Ivan Smagghe e Manfredas) num lado, mais housey, e Laura BCR no outro, com techno de inclinação mental e hipnótica.

Uma das grandes queixas em 2023 aconteceu na transição para a noite no sábado, quando o último concerto do dia levou a que seguranças expulsassem os presentes, uma vez que existem pulseiras diferentes. Este ano, a mudança foi bem-vinda: quem tivesse entrada para o Sónar by Day poderia manter-se no recinto pois, nessa troca, passava apenas a haver controlo nas portas do SonarClub, no interior do Pavilhão Carlos Lopes.

O recinto e os espaços verdes são acolhedores. Alie-se isso ao cansaço e acabamos por ficar um bom bocado sentados na relva, pelo que, por muita pena, perdemos o set house dos “nossos” Yen Sung b2b Photonz – mas pelo menos sabemos que tocaram Passing, de KAKAF, e outros temas nacionais, pelo que nos disseram. Para nós, o regresso à pista foi em Nia Archives, imperdível nome da nova cena jungle do Reino Unido. Foi especial ver aquele grande número de pessoas a dançar ritmos quebrados, incluindo footwork e edits de temas tão reconhecidos quanto Hollaback Girl ou, perto do fim, Murder On The Dancefloor. E atenção: Dehaney Hunt não dispensou passar por faixas suas, como Forbidden Feelingz, nem o microfone, mesmo estando ali enquanto DJ. Estreia em grande em solo português.

Difícil de digerir para uns, incrível para outros: Marie Davidson foi fogo no palco. Vigor até mais não, algo mais pesada e clubbing do que esperávamos, acima de tudo um ato que não esqueceremos tão cedo. Seguiram-se os 2manydjs, com os convidados especiais Éclair Fifi e Erol Alkan, mais dirigidos para pista mas menos irrepreensíveis do que queríamos – embora ainda tenha dado para aproveitar Pump Up The Jam ou Vamp, de Outlander, no som do Pavilhão Carlos Lopes. Para fechar a noite, duas DJs incontornáveis de Detroit: Minx e Holographic. Apesar de estarmos ansiosos por este b2b, houve alguns tons mais contemporâneos aqui e ali que dispensaríamos, mas é sempre especial ver nomes tão históricos e só foi mesmo pena Big Fun, de Inner City, ter tocado apenas alguns segundos, já o relógio batia as 6h.

Cansaço acumulado, sim, mas ainda havia muito para ouvir no domingo, dia em que o Sónar by Day se estende por mais horas. Começamos no SonarPark, palco que fica com pista vazia durante algum tempo graças ao grande jardim que tem de frente. Por lá, dois portuenses à nossa espera: primeiro, Ana Pacheco, a tocar coordenadas industriais como Fokus, de Schwefelgelb, à hora que lá chegamos; depois, DJ Lynce, altamente concentrado, com um live act pouco esperado, uma viagem acid dub tão aliciante quanto exímia.

O Sónar também é um festival de escolhas, como já referimos, e fomos perdendo nomes como Branko ou iolanda ao longo deste dia. Queríamos muito ouvir Xexa – e ouvimos – mas o jardim do SonarPark puxa o convívio e a visão afrofuturista da autora de “Vibrações de Prata” merecia mais atenção. Talvez slot no interior teria sido melhor pensado, embora tenha sido evidente o quão especial é a música de Vanessa.

Esse SonarPark continuaria com uma programação interessante, com os cada vez mais notórios Grove, nome de Bristol com incrível atitude punk, e Florentino, DJ que vai do UK ao reggaeton. No SonarVillage, no entanto, havia VHOOR e Vanyfox. Primeiro, o porta-estandarte do baile funk pôs toda a gente a descer e a fazer twerk com faixas como Se Tá Solteira, isto antes de Vanyfox, com a sua visão própria de batida, mostrar por meio de beats seus e DJing irrepreensível porque é um dos nomes a ter mais em conta no panorama afro atual. Festa garantida.

De volta ao SonarClub, e aqui voltamos a elogiar o som, houve DJ sets de Bonobo – muito elogiado, mas só o ouvimos a tocar um remix de Gypsy Woman (She’s Homeless) e pouco mais – e de Shygirl – alguma desilusão aqui, particularmente pela falta de técnica de DJing e salva apenas por trazer faixas de nomes como LSDXOXO – antes do encerramento assinado por Eliza Rose. Deste lado, a certeza de que a londrina fechou com chave de ouro, com espírito lá no alto e boa energia: Chu-ma-enga, de Dj Babatr, Get Up On This, de Isaiah, Ain’t No Mountain High Enough perto do fim e até temas como Destination Calabria ou I Feel Love. O que poderíamos pedir mais para sair com um sorriso?

Temos lido comentários pontuais com queixas sobre a música, mas não concordamos. Do Sónar, espera-se ecletismo e vanguarda na programação. Passar de Vanyfox para Eliza Rose em pouco tempo foi especial, por exemplo, bem como o facto de haver palcos direcionados para uma onda sónica durante a tarde. Ainda assim, acreditamos que poderia ter havido momentos com outro tipo de DJs durante as noites, evitando a onda mais house que se sentiu sempre a essas horas – como referimos no início, Hauff b2b IMOGEN num qualquer pico não teria sido mal pensado – ou promovendo até atos nacionais em horário nobre.

A edição de 2025 em Lisboa já está confirmada, “num formato a anunciar”, e houve boas indicações no que toca ao aprimoramento obrigatório que se esperava. Continuando nesta trajetória de evolução, mais evidente pela fluidez com que tudo decorreu, o Sónar tem todas as razões para merecer um lugar no circuito de festivais da cidade e do país. Cá estaremos para o comprovar.

Fotografias por Guillermo Vidal, Neia e Pedro Francisco / Sónar

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