AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

O confortável mundo de Rafael Toral no gnration

7 Maio, 2024 - 14:47

Rafael Toral passou por gnration e Teatro Ibérico para apresentar “Spectral Evolution” no último fim-de-semana.

Rafael Toral sonhava em pilotar aviões em criança. Hoje não é piloto, mas conduz: os nossos ouvidos e mentes, com a sua música, ou a guitarra em que se centra para o caminho especial que é “Spectral Evolution”. Ao vivo, o novo e aclamado disco parece ganhar ainda mais peso, como pudemos comprovar no gnration, em Braga, na sexta-feira passada.

Note-se que este álbum é um “reencontro emocional” que o experienciado músico português considera como o seu melhor trabalho até à data, como notou em entrevista à A Cabine. E isso vê-se (e ouve-se) neste concerto. Circundado por maquinaria – dois pedais wah-wah ou instrumentos do Space Program, como um “pequeno sistema modular de feedback eletrónico com uma antena de theremin”, explicou na referida conversa – e com uma Squier Jazzmaster ao colo, Rafael Toral mostrou desde o primeiro dos cerca de 50 minutos por que razão faz do som a sua vida.

Os olhos fechados, as frequências traduzidas nos movimentos dos dedos e do corpo, a concentração evidente. Tudo isso nos fazia querer fechar os olhos, mas a vontade de ver (e não apenas ouvir) este nome a tocar “Spectral Evolution” era maior. Afinal, diante nós é mais fácil perceber como é feito tudo aquilo que ouvimos no disco – e mesmo assim é complexo, quase indecifrável para quem, como eu, não tem plena noção de tudo que se passa ali.

“Spectral Evolution” é um regresso à guitarra. Mas não é um regresso qualquer, é um tornar repleto de trabalho. Muitos acordes, por exemplo, chegaram a soar-lhe pouco convincentes. Toral nunca duvidou de que conseguiria chegar à relação que procurara com essas notas. E assim foi.

Luz baixa e a capa do álbum projetada na tela. Contraste semiótico logo no arranque: o verde de “Spectral Evolution” a fazer contraponto com o vermelho da camisa de Toral. Natureza e esperança, sim, mas também paixão, amor, vontade. Embora possa não ter sido propositado, todo o pequeno detalhe teve impacto naquela receita tão confortável quanto emocionante.

O concerto é uma performance integral do álbum. Tudo começa com um acorde aconchegante, passa por chilrear de pássaros – que não são pássaros, mas antes o já referido instrumento eletrónico – e quando damos por nós estamos envolvidos num mundo de feedback e drone sideral que nos leva até uma qualquer floresta, deitados a ver raios de sol por entre ramos, numa tentativa de alienação da secularidade.

Esta é uma atuação introspetiva e meditativa, tanto para o músico como para a plateia. Mesmo nos momentos mais agitados – aqui há muito jazz – há uma calma sempre presente, como num jogo de dedos e pés rápido e cheio de destreza que se vê ali. Para lá de metade, antes do segmento final, o músico pousa a guitarra nas pernas e deixa o som viver. Fechamos os olhos, qual mímica. Absorvemos. Arrepiamos. Quando Toral volta a agarrar na Jazzmaster, já estamos completamente absortos. No fim, o músico levanta-se e dirige-se ao instrumento com antena de theremin para o remate final. Eleva-nos ainda mais. Não queremos sair dali. E na verdade, mesmo depois do concerto, dormimos enrolados naquele mundo.

Não esqueçamos que este “não é um disco de género musical definido, é uma síntese que [Rafael Toral inventou]”, como referia à A Cabine em março passado. E “Spectral Evolution” é também, em parte, uma síntese de muita da música de Toral: exploratória, sim, mas sentida e convidativa. Disco e concerto imperdíveis.

Fotografia por Hugo Sousa (cedida pelo gnration)

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