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Reportagem

ID: A irreverência de um festival de cara lavada

3 Abril, 2019 - 13:25

A primeira edição de ID_No Limits aconteceu a 29 e 30 de março no Centro de Congressos do Estoril.

A ruptura da identidade do Lisboa Dance Festival trouxe a bonança e o entusiasmo de um novo festival. O ID_No Limits apontou para várias direcções e poucas foram as balas perdidas. A organização manteve-se exímia na qualidade e na audacidade de romper com os conformes de uma sociedade digital onde a novidade sobrepõe-se, muitas vezes, ao que realmente merece um holofote.

Abrem-se as portas de um espaço novo. À direita da entrada, a instalação artística Cast//50 do coletivo 00:NEKYIA invade o campo de visão dos festivaleiros. Uma projeção sobre uma tela holográfica de seis metros de altura, onde está uma figura humana feminina, com Inteligência Artificial, que responde a qualquer pergunta através de um chat num tablet. Tanto a instalação como os sons excruciantes e tensos que se aconchegaram no canto do recinto foram da autoria do coletivo com a ajuda do Software.2050, kshksh.design e Afonso de Matos.

Também junto ao palco ROOM 002 Eristoff, uma outra exposição videográfica e sonora promovia a nova identidade do festival. Experience ID_No Limits Virtual Birth – com autoria de Sara Pinto, edição de vídeo de Caetana Serra e João Felgueira, e a edição de som de wirefelt – procura mostrar a perpetuidade da era digital através da mostra de loops audiovisuais glitchy e claustrofóbicos – “ID_No limits does not know and isn’t any definable identity, it just is a limitless transformation”.

Pelas 20h30 do primeiro dia, o coletivo distópico português Colónia Calúnia abria as hostilidades do festival. Metamorfiko, Secta, L-Ali, Vulto, Caronte, Jota, NERVE e Tilt mostram todo o potencial deste grupo focado em (des)construir uma narrativa fora da [caixa]. Entre os beats cavernosos e as rimas que se entrelaçam em vários significados, o público manteve-se pelo palco até o concerto acabar.

O britânico Vessel apresentava, no Auditorium do CCE, a partir das 21h40, o ato que expôs o seu mais recente trabalho, Queen of Golden Ages. Com o auxílio do cineasta português Pedro Maia na projeção ao vivo, Bristolian Gainsborough mostrou que é possível misturar influências da música lírica clássica com o poema ‘Não sei quantas almas tenho’ de Fernando Pessoa através de elementos eletrónicos. Sons brilhantemente manipulados e modelados para estimular a sensibilidade emocional do pouco público que, infelizmente, esteve presente no concerto.

Às 22h, o Grand Hall Cascais já aglomerava um grande número de pessoas. O responsável? Otis Jackson Jr.. Encheu a sala, tanto em termos de público como sónicos. Apontando para o céu enquanto tocava o mítico The Red do seu projecto Jaylib (que teve no passado com a lenda J Dilla), Madlib esteve constantemente a saciar os fãs de hip-hop com um boom bap saboroso e sonoridades à Quasimoto, outro dos projetos do norte-americano. A experiência de mistura do Beat Konducta foi bem ouvida, enquanto o lado mais brincalhão do beatmaker era nítido aos nossos olhos.

Ao mesmo tempo, no palco Cascais Silent Disco, Núria e Sheri Vari já estavam à mesa e de headphones postos. Apenas se ouviam as reverberações de Madlib no Grand Hall. Mas após os produtores do evento facultarem uns fones wireless que recebiam o sinal das djs portuguesas, percebe-se que a grande diversão era reparar quem dançava house e disco de Vari e quem dançava baile funk e r&b de Núria. Podem imaginar os diferentes movimentos corporais que se foram sucedendo ao longo da noite.

Quando Madlib terminou, a afluência do público seguiu em modo procissão para dentro do auditório, onde Pedro Mafama tocava os originais como Jazigo, Lacrau e Arder Contigo. O lisboeta teve uma adesão agradável ao mesmo tempo que a primeira grande enchente no ROOM 001 Super Bock foi da responsabilidade de Xinobi em b2b com a surpresa de DJ Vibe (substituindo o acto de Moulinex, que cancelou por motivos de saúde) onde já tinha tocado Varela para uma dúzia de pessoas. Excelente representação de duas sonoridades à partida dissemelhantes mas que, por casualidade, foram postas em pé de igualdade numa bela metamorfose musical.

Seguiu-se o concerto que marcou certamente o ID para muitos. IAMDDB sugou a energia de todos os festivaleiros que encheram o palco principal. Carácter, personalidade, talento (mais do que suficiente para não ter de cantar sobre playback) e humildade foi o que Diana de Brito, nascida em Cascais, demonstrou durante a atuação.

Bastante emotiva, nos interlúdios aproveitou para (sempre em português) pedir que todo o público que tivesse uns charros para os ir acendendo. Até que Caetana – uma festivaleira comum – fez a gentileza de lhe atirar um “doobie” e Diana não hesitou em acender e agradecer-lhe, ecoando o nome da nova protagonista do concerto. Em Shade, não hesitou em descer do palco para o meio da plateia, balizada pelos seguranças, culminando o concerto que mais marcou os presentes neste primeiro dia do festival.

Entre a forte movimentação aos palcos secundários para ouvir Progressivu, Shaka Lion e Dj Nigga Fox – todos eles com ritmos africanos do kuduro misturados com house – e Jacques Green, quem saiu prejudicado foi Pearson Sound, que apanhou com um público residual e já um pouco esgotado para se deslumbrar com as sonoridades mais fiéis ao garage e ao house londrino. De facto, esteve à altura da slot que preencheu. Timbres próprios e originalidade foram as características de David Kennedy, pena não ter tido a atenção que merecia.

O cartaz do segundo dia trouxe um público diferente pois se na noite anterior reinou a cultura urbana e a electrónica mais suave, neste o oposto sobrepôs-se. Kerox, produtor e dj português que já editou música na suspension ou Intera, desencadeou um electro bem robusto na ROOM 002 Eristoff pelas 20h30. Ao mesmo tempo, o Auditorium recebia a música mais pop de Meera. No ROOM 001 Superbock, a partir das 21h até praticamente ao fecho do festival, a curadoria de Parkbeat com FABZ, Kwan + Kronic, Glue e Riot fez a representação do hip-hop e trap que se podia ouvir também, a partir das 22h, na Silent Disco Cascais, através da ligação ao sinal da mesa do DJ Respeito, que dividiu a cabine com os ritmos africanos de Progressivu, que também tinha tocado no dia anterior.

Viramos a atenção por completo para a atuação de Arca. A comunidade queer lisboeta, fiéis a identidade audaz, própria e hedonista, encheram a fila da frente do palco principal. O músico deu início ao ato com um loop vocal que ainda hoje perdura, certamente, sobre o público que presenciou vários momentos onde Alejandra Ghersi fazia de si arte ambulante. Recitou um poema sobre a atual sociedade cíclica e ainda atravessou literalmente todo o Grand Hall Cascais até uma plataforma elevatória, onde mostrou as suas habilidades de canto lírico. Enquanto o seu VJ filmava e distorcia as imagens que expunham Arca, este preocupou-se em preencher a sala com todo o tipo de tonalidades sonoras como drones agressivos, batidas industriais e sons absolutamente aterrorizantes. Até que, sensivelmente a meio do concerto, Alejandra pergunta o tempo que lhe restava e, quando lhe dizem que tinha cerca de 20 minutos, esmiuçou-os com música rave, com Hollyhood de Madonna, entre outros.

Este ato em particular, através da cultura da música eletrónica, rompe por completo o preconceito e escárnio que se associa a estes artistas totalmente irreverentes e corajosos. Antes, Photonz – do coletivo mina e outros projetos – apresentava um techno bem agradável para o pouco público que foi ao ROOM 002 Eristoff – afinal, à mesma hora, o jazz, o improviso e a quase perfeição na sintonia entre três músicos habilidosos enchiam por completo o Auditorium. Kamaal Williams emitia os osciladores do mítico Roland Juno-60 que atravessavam a alma do público sorridente e parvo com a qualidade de música que invadia os seus ouvidos. Poucos foram os que se sentaram nas cadeiras do auditório pois a energia era extremamente contagiante.

HAAi sucedia a Photonz pelas 22h45. A londrina explodiu (não literalmente) com as Funktion One do palco Eristoff (também presente no palco Super Bock) através de bpms acelerados por um género musical próprio que funde rave, hardcore, techno e garage londrino. Dino D’Santiago, após o concerto de Kamaal, trouxe toda a sua ginga com o funaná cabo verdiano. A energia que se fez sentir no Auditorium fez deste o palco principal da noite.

Independentemente da dificuldade que se notou no concerto da banda sueca Little Dragon em preencher o Grand Hall às 23h40 pela pouca adesão de público e por suceder-se a Arca, a vocalista Yukimi Nagano foi aconchegando os fãs com a sua voz doce ao som de um óptimo synthpop e trip hop que se materializou no momento mais marcante da atuação quando tocaram a Wildfire do britânico SBTRKT.

A experiência de um festival renovado estava a chegar ao fim. No ROOM 002 Eristoff, Rui Maia fez soar novamente o techno antecedendo o ato que encerraria esta sala, novamente com Xinobi, mas desta vez acompanhado de Anna Prior dos Metronomy. Hunee, que já tinha passado pelo Lisboa Dance Festival em 2017, incumbiu-se de fechar o festival com o seu house e disco contagiantes e agradavelmente dançáveis. Hun Choi foi talvez a cola que não desasussiou o core que o ID_No Limits manteve do Lisboa Dance Festival.

A música eletrónica foi, sem sombra de dúvidas, valorizada e respeitada, sempre ligada a uma forte cultura visual que o festival proporcionou. Ao longo dos dois dias de ID, 6000 pessoas passaram pelo Centro De Congressos do Estoril, um número que aponta para uma prosperidade que deverá continuar nos próximos anos.


Fotografia por Rita Duarte

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