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O lugar da mulher também é na cabine

8 Março, 2021 - 20:55

Desde as pioneiras da música eletrónica até aos dias de hoje, fez-se e continua a fazer-se vista grossa ao papel da mulher. Com isso em mente, Carina Fernandes e David Rodrigues ouviram algumas vozes de artistas ativas no cenário musical português.

Ao pensar nos primórdios da música eletrónica, um dos nomes que frequentemente salta à vista é Bob Moog, músico, engenheiro e inventor do sintetizador Moog. Embora outros contributos tenham sido fulcrais no desenvolvimento do património da música eletrónica, desde os softwares Music Mouse ou Concerto Generator até ao tema de abertura do célebre disco dourado enviado para o espaço “Voyager”, a sua autoria passa despercebida.

Laurie Spiegel, responsável por estes três feitos, não é tão frequentemente recordada na história quanto homens como Moog, e não é por acaso. A verdade é que Spiegel não está sozinha: a ela, juntam-se nomes como Delia Derbyshire, precursora de homens bastante aclamados, como Aphex Twin, mas privada de reconhecimento pelo seu trabalho durante grande parte da carreira pelo sexismo da época.

Lembremos ainda Daphne Oram, co-fundadora do BBC Radiophonic Workshop, no qual Delia Derbyshire produziu uma porção considerável do seu trabalho, pioneira da música concreta e também a primeira mulher a desenhar e construir um instrumento eletrónico – a Oramics Machine, que moldava sons através da manipulação direta de rolos de filme com tinta e que, mais tarde, foi convertida para software.

Wendy Carlos, outro dos grandes nomes da música eletrónica, foi não só uma das primeiras e principais difusoras do uso do sintetizador enquanto instrumento musical como também compositora de interpretações de música clássica como “Switched-On Bach”, que foi premiado com três Grammys. Para além disso, compôs as bandas-sonoras de dois célebres filmes de Stanley Kubrick, “A Clockwork Orange” e “The Shining”, bem como do Tron.

Todas estas e muitas outras personalidades pavimentaram o caminho para aquilo que é hoje o império da música eletrónica. Entre elas está Suzanne Ciani, que criou a sua própria empresa de música para televisão e, entre jogos de arcada e efeitos especiais para Star Wars, desenhou também o som da garrafa de Coca-Cola a abrir nos anúncios dos anos 70 e 80. Outro exemplo é Pauline Oliveros, que desenvolveu o conceito de deep listening e é, ainda hoje, ativa na militância pelos direitos humanos e a causa feminista.

Décadas depois, a expressão artística da mulher tornou-se mais desenvolta, mas não totalmente livre de amarras. Tal como Johanna M. Beyer, autora daquela que é considerada a primeira peça de música eletrónica escrita por uma mulher e que mascarava a autoria das suas obras por não ser levada a sério no meio de trabalho, também Charlotte De Witte iniciou a sua carreira como Ravin’ George para evitar ver o seu trabalho descredibilizado.

O progresso feito é inegável. Foram criados coletivos de apoio a artistas femininas como No Shade e Technofeminists. Movimentos como o #MeToo potenciaram não só o julgamento de casos de violência sexual como também suscitaram dúvidas acerca da visibilidade feminina nas mais variadas áreas do mundo artístico. A aclamada produtora e DJ de techno Rebekah tem sido uma das porta-vozes nesse sentido.

É certo que a mulher ganhou mais presença nos palcos: entre 2012 e 2019, a proporção de atuações femininas em festivais de música eletrónica aumentou de 9,2% para 24,6%. Esta disparidade é também visível em solo nacional. Em 2019, o festival BPM contava com um total de 146 atos. Feitas as contas, 85,6% dos artistas eram masculinos, reservando 10,3% para artistas femininas, 1,4% para atos mistos e 2,7% para atuações de género não especificado, de acordo com o estudo FACTS, conduzido por membros voluntários do coletivo female:pressure.

Diana Oliveira, DJ e produtora que integra a equipa da RDZ, atenta que, “numericamente, ainda há menos mulheres DJs do que homens, logo, o número, pelo menos para já, não é equilibrado desde o ponto de partida”. Segundo a artista, isto poderia ajudar a explicar o desfasamento entre o número de atuações femininas e masculinas. E existem já mecanismos de resposta a este facto: destaque-se o Keychange 50:50 by 2022, uma iniciativa criada pela PRS Foundation, com o objetivo de alcançar a paridade de género em festivais até ao próximo ano. Reuniu já mais de 300 assinaturas por parte de festivais e organizações musicais.

Contudo, a igualdade de género ainda está longe de se tornar norma e Portugal não é exceção. Alguns dos testemunhos que recolhemos, ao entrevistar várias artistas com carreira ativa no panorama da música eletrónica nacional, demonstram precisamente isso. Embora longe de serem homogéneos, os testemunhos mencionam recorrentemente o assédio, preconceito e desequilíbrio no tratamento e valorização do trabalho das mulheres deste setor, as “normas ocultas” por trás de tantas pistas de dança e estúdios de gravação.

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Previamente à pandemia, quando caía a noite e se enchiam as pistas de cor, dança, euforia e música, nem tudo se resumia a festa e talento. Muitas vezes, para as DJs, as oportunidades de trabalho não surgiam exclusivamente com esse tipo de propósito. “Quase sempre que estou a tocar e está a correr bem, aparece alguém a querer falar comigo enquanto estou a misturar, dizendo que me quer contratar e a pedir-me um contacto que, no fim, acaba por ser um convite muito pouco profissional”, relata Sheri Vari, DJ e produtora covilhense.

Embora atualmente esteja já “mais relaxada e confortável”, Carlota Correia Neves, ou ØTTA, costumava impor limitações a nível de vestuário e aparência para que o foco se mantivesse no seu trabalho. “Lembro-me que no início da minha carreira não queria vestir decotes ou ir com partes do corpo extremamente descobertas porque queria que as pessoas, maioritariamente homens, ouvissem e olhassem para o meu trabalho e não para mim”.

Surma revela ter passado por “várias situações de homens bêbedos que vão ao teu encontro, agarram-te sem te conhecer de lado algum, sem ter noção do seu próprio espaço, na sua cabeça podem fazer tudo sem ter qualquer consequência para o seu lado”. Além disso, “quando dás uma opinião em relação a alguma questão técnica que vai ao encontro da tua estética de som e/ou ao teu gosto pessoal, essa tua mesmo opinião é descredibilizada ou ignorada pois és mulher. (…) És subestimada todos os dias”.

Já Ganeisha, nome artístico de Raquel Espanhol sob o qual é DJ de trance, diz não se recordar de muitos episódios, mas relembra, com humor, a circulação do rumor de que era o namorado a fazer os sets dela. Acrescenta ainda o boato de que levava os sets já preparados e os tocava no Windows Media Player, apesar de sempre ter usado CDJs e nunca computador nas atuações.

Miss Sheila, DJ há mais de vinte anos, menciona que o tratamento desigual entre homens e mulheres no contexto musical noturno era mais acentuado no início da sua carreira. “Precisava de trabalhar o dobro para ter metade do respeito em relação aos homens, o que era lamentável”.

Trafulha, produtora de hip-hop há cerca de cinco anos, sente o mesmo em relação ao panorama atual. “Sinto que, no início, para manter um certo nível de respeito, fui obrigada a separar o meu trabalho da minha pessoa”, confessa. E, embora agora já se sinta “confortável o suficiente” dentro do seu meio, a verdade é que deixou de lado o desejo de ser MC. “Os produtores a que pedia instrumentais e estúdio, muitas vezes, tinham segundas intenções, não levando a sério o que pretendia fazer”. Tomou então a decisão de fazer por si mesma os instrumentais e centrou-se apenas na produção.

Rita Maomenos, integrante do coletivo feminino The North Sea Wolf Pack e também DJ e produtora, reconhece estar a “haver uma mudança”. E isso não se deve ao crescente respeito pelas mulheres, mas sim porque “os bookers estão a perceber que há muito interesse em ver raparigas a tocar e conseguem vender muitos bilhetes assim”. Um dos episódios mencionados por Sheri Vari enquadra-se nesta narrativa. “Já fiz parte de um projecto em que todos os DJs masculinos foram despedidos porque a direcção entendeu que só precisavam de, passo a citar: ‘um par de pernas que saiba carregar no play’”.

Meta defende que “a mulher na cena eletrónica teve e continua a ter, sem dúvida, um papel importante no desenvolvimento da mesma”, não deixando de frisar a existência do “preconceito de que a mulher tem apenas, ou mais predominantemente, o papel performático e visual”. E é este pensamento que “descredibiliza o potencial da mulher como ser individual criador e foca o seu valor como se fosse maioritariamente estético”, ressalvando que fala apenas da sua “experiência pessoal”.

Por sua vez, ØTTA diz ainda ter sentido que não tinha “a mesma importância na palavra do que artistas masculinos”, levando à desvalorização do seu trabalho. Segundo a artista, “há muitas vezes o estigma de que a mulher usa o corpo ou imagem como forma de sucesso e é muito difícil lutar contra este preconceito e ser respeitada como mulher trabalhadora”. Acrescenta que “tal como há realmente mulheres que usam muito a imagem, há também homens que usam muito a imagem, mas não são julgados ou não é uma premissa generalizada que classifica o género masculino.”

Embora já existam iniciativas para combater disparidades, entre as quais a patroa da ELBEREC, Valody, destaca a Mina e a Rave Tuga da Paraíso, para a maioria das entrevistadas estas não são suficientes. Para o futuro, as expectativas convergem: o género não devia ser condicionante. Quase todas as artistas concordam haver um longo caminho a percorrer, e passa não só por tomar medidas concretas no meio como pela educação “de raiz” para não cultivar preconceitos milenares.

Afinal, o lugar da mulher é onde ela quiser: na cabine ou noutro lado qualquer.

Artigo por Carina Fernandes e David Rodrigues

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