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Ghost Hunt nos Maus Hábitos: depois da viagem no tempo, o sentimento agridoce

21 Maio, 2021 - 10:14

No início do mês, fomos à caça. Aos fantasmas, não os apanhámos, mas pudemos senti-los a dançar entre nós como o fazíamos há uns tempos.

Eram 20h15 quando entrámos para o que foi outrora a pista de dança de um dos mais icónicos e irreverentes espaços culturais da Invicta, agora transformada em sala de jantar e espetáculo. Pequenas e médias mesas compunham o recinto, sempre espaçadas em função das normas sanitárias em vigor. Experiencia-se, agora, um Maus Hábitos despido do frenesim que nele tinha lugar diariamente: as festas, os corredores cheios, as esplanadas efervescentes. Em vez disso, flutua pelo local uma aragem ainda estranha, um certo frio como efeito colateral da impossibilidade das multidões em ebulição. Por isso, esta peça não é apenas um testemunho de um concerto, mas também da evidência da saudade e de uma espera que tarda em terminar.

O azul do céu ainda cintilava com aquela tonalidade ambígua e característica do anoitecer quando, em cima da mesa, recebemos uma mini-pizza de salmão, uma piadina vegetariana e uma mousse de chocolate branco. Ao fundo da sala, estendia-se um pano preto tingido com cinco arranhões brancos que deixavam a descoberto um logótipo bem conhecido da cidade. À frente dele, um encapuzado de vestes pretas e um baixista de camisa axadrezada convidavam a um serão imerso na melódica fusão entre a eletrónica e as cordas de um baixo. Respondem por Ghost Hunt e são eles Pedro Chau, baixista dos The Parkinsons, e Pedro Oliveira, synthman experiente do circuito noise onde atuou enquanto Monomoy.

Os sintetizadores de Oliveira pintaram as primeiras aguarelas da noite com Numbers Station. Marcavam um tempo que, mais do que rítmico, era também histórico, na medida em que viajava por entre estilos e sonoridades sem fronteiras ou qualquer tipo de limites espácio-temporais. Depois das frequências sonoras em volúpia, entrou o baixo cúmplice de Chau e assim teve início uma travessia cósmica e espectral, levada a cabo por dois músicos de backgrounds completamente diferentes, numa completa e enérgica sintonia.

Entrávamos em Shadow Factory e a pulsão instalava-se. Era inegável, e aliciante, a irreverência com que Pedro Oliveira e Pedro Chau se uniam para uma combinação ousada entre um baixo insigne e eletrónica complexa e imparável. Sob a luz púrpura, tiveram ainda lugar clássicos como Red Zone, do álbum homónimo de estreia, composições mais recentes e até uma cover de Karussell, de Michael Rother, que fechou a setlist.

Na inviabilidade de dançar, a experiência deste concerto transfigurou-se para uma dimensão interior, que não se exprime pela agitação corpórea, mas sim pelo sonho. Temas como October e Naabsat cultivaram a imaginação e abriram o caminho para realidades paralelas, nas quais ou bailávamos dentro de um clube escuro e abafado onde os vigorosos encontrões e as luzes irrequietas realçavam os contornos das pessoas em festa connosco, ou corríamos numa ampla floresta à luz da lua, depois de uma aventura Urbex num qualquer edifício abandonado. As possibilidades são inúmeras, e todas elas partem da sonoridade colorida, vívida e cósmica de Ghost Hunt, que conjuram a cada faixa uma fértil banda-sonora para qualquer tipo de cenário.

Além dos dois Pedros, também o público estava em sintonia com a performance musical, e as palmas que ressoavam no final de cada tema pela pista de dança, ainda que disfarçada de sala de jantar, comprovavam-no. A missão de agradar a um novo público, de uma “geração que janta fora”, como Daniel Pires, diretor do espaço, o pôs, foi um sucesso. É verdade: a “noite” no Maus mudou. Mas, no Maus, o que é que não muda? Localizado no âmago do coração portuense, o Maus Hábitos é, também ele, um órgão vivo, que palpita e se altera em função das adversidades.

No fim do concerto, elevou-se o travo agridoce, uma sensação latente até agora. Foi tão bom sair de casa e, por momentos, esquecer o bravo mundo lá fora. Se, por um lado, o modelo jantar-concerto é uma boa alternativa ao contexto que se impõe, por outro, permanece a vontade (necessidade?) de, mais do que assistir a um concerto, vivê-lo e senti-lo – poder expressá-lo através da dança, de um corpo em êxtase que quer vibrar. As saudades são muitas, e aguardamos, irrequietos, o momento em que possamos matá-las. Até lá, pelo menos podemos ir afogando as mágoas num pequeno banquete ao som de boa música.

Artigo de Carina Fernandes e David Rodrigues

Fotografia por Carina Fernandes

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