AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

De eletrónica introspetiva até à tempestade clubbing com Mucho Flow

12 Novembro, 2021 - 19:15

Guimarães voltou a receber uma edição de Mucho Flow para delícia de todos. E que edição.

Viajar até à cidade berço pode ser uma viagem demorosa e chata para quem não é de Guimarães, mas o cardápio do Mucho Flow torna esse caminho num momento de excitação e ansiedade. Afinal, estamos a falar de uma programação bem cuidada, estimulante e atenta, que traz atos pouco típicos nas salas portuguesas ou, mesmo que sejam mais habituais, atos simplesmente cativantes e sedutores.

Dúvidas houvesse, essas acabavam pouco depois de entrar no Centro Internacional das Artes José Guimarães (CIAJG) para descer à “Blackbox” do espaço para ouvir o tão excitante sexteto Chão Maior. Em palco como quinteto – João Almeida não esteve em Guimarães – os nomes por trás do álbum “Drawing Circles” mostraram por que razão são um dos projetos nacionais a ter mais em conta em 2021.

De máscara na cara, o público poderia estar em pé, mas preferiu estar sentado para apreciar toda a formosura jazzística que rapidamente tomaria conta do espaço, sim, mas também das mentes abertas e dos olhos fechados. Com vários chocalhos a marcarem o arranque do concerto e desta edição de Mucho Flow, foi o trompetista Yaw Tembe a soltar o primeiro sopro no seu trompete, cuja nota sustentada abriu caminho para todos aqueles músicos em palco.

Ricardo Martins foi um dos nomes que chamou mais a atenção, não fosse ele a marcar o passo com a sua perícia na bateria, mas bastava observar e ouvir cada um dos músicos para perceber a sua aptidão – Leonor Arnaut usou a voz e alguns efeitos para ajudar naquela jornada de forma excecional, por exemplo, ou até Norberto Lobo, que mostrou enorme destreza na guitarra.

Para os mais desatentos, como eu, que não sabiam que era Lobo nessas cordas, Yaw Tembe apresentou a banda antes do último tema. “Na guitarra, Norberto Lobo”, disse o líder e compositor do projeto, motivo suficiente para me envergonhar e voltar a concluir que, sim, estava perante irrepreensíveis músicos. Tão irrepreensíveis quanto toda a envoltura daquela hora de jazz algo experimental, que terminou com os tais chocalhos para completar o ciclo daquela viagem.

O Mucho Flow decorreu em três espaços da cidade de Guimarães e foi para o segundo que seguimos após esse concerto. No Centro Cultural Vila Flor (CCVF), tínhamos dois duos à nossa espera e o primeiro a subir a palco foi Space Afrika. Apesar de ser de Manchester, esta dupla tem uma forte inspiração em movimentos taciturnos de Bristol – a própria refere Tricky como uma das suas grandes referências – e foi essa calmaria introspetiva que tomou conta de nós durante a atuação.

Admitimos que estávamos à espera de lugares sentados no CCVF, mas, apesar das máscaras, também este local dava para estar em pé. Na realidade, embora deixar o corpo deambular fosse uma boa opção, Space Afrika assinaram uma hora que servia perfeitamente para estar sentado. Com um ecrã atrás a passar imagens com uma semiótica soturna ou com luzes a darem o toque extra à atuação, a dupla levou-nos por ambiências criadas a partir de chuva e outras texturas, ocasionais graves bem potentes, vozes que nos relembravam faixas de compatriotas como Burial ou até pormenores como uma sirene de polícia.

Foi uma hora em que o duo foi criando um ambiente altamente convidativo e prazeroso, em certa medida uma progressão que nos foi levando até aos minutos finais, mais virados para um ritmo clubbing que aqueceu o palco para uma aclamada dupla nórdica. Falamos do sueco Varg²™ ao lado do dinamarquês Croatian Amor, duo que acabou a noite a beber copos no São Mamede CAE com os Space Afrika.

Novamente com imagens a correr por trás, Varg e Croatian Amor subiram a palco já bem motivados para a festa que tomaria conta do CCVF. Num contraste bem vincado, dadas as atuações anteriores, os autores de discos como “Body of Content” entraram com toda a força, trabalhando vozes e graves bem corpóreos e musculados, batidas quebradas ou paradigmáticas, momentos que foram do techno ao trap, synths loucos e às vezes algo kitsch, tudo isto para meter os corpos (e o chão do espaço) a dançar como não haviam dançado até então neste Mucho Flow. Com muito vigor, o duo estava a sentir aquela experiência tanto quanto o público, algo que se notava na forma como falavam agarrados ou na efusividade com que Varg fumava cigarros. Terminada essa atuação, ouvimos público a dizer palavras como “brutal” e “incrível” – e não era para menos, diga-se.

Nome forte da Palestina e também ele ligado a diferentes sonoridades, como é caso de beats de hip-hop abstratos, Muqata’a já tinha começado a atuar há cerca de 20 minutos quando chegámos ao São Mamede CAE. A música deste palestiniano é quase intangível, tal é a complexidade que apresenta numa atuação como a do Mucho Flow – batidas confusas mas coesas tomaram conta de todos aqueles corpos que já só queriam dançar, os nossos inclusive.

Verdade seja dita: àquela hora, a música de dança é quase uma obrigatoriedade num festival com um contexto como este. E é, na realidade, algo que o público também procura: um fervor desmedido e eruptivo para esquecer tudo o que está para lá de um salão de festas como o São Mamede CAE. Talvez por isso tenha sido tão difícil tirar notas durante as três atuações nesse espaço.

Nesse primeiro dia, demoras na transição entre os três últimos atos foram chatas, mas isso esqueceu-se rapidamente. Afinal, por um lado tivemos o ecleticismo de Loraine James a levar-nos por uma autêntica viagem às sonoridades clubbing do Reino Unido, como breaks e até produções suas, e por outro tivemos um dos patrões da Ácida, Arrogance Arrogance, com uma mala carregada de discos únicos, dos quais a memória me faz recordar de possíveis malhas synth punk antes de autênticas pérolas techno. Talvez esteja enganado, tal era a forma como aquele clube me envolvia e abstraía, mas de um pormenor tenho certeza: foi festa séria até mais não.

De volta a Guimarães para o segundo e último dia – e ainda com a efervescência eletrónica do dia anterior nos nossos cérebros – voltamos a ver Ricardo Martins no CIAJG, mas desta feita a solo e pelo final da tarde. Com “Incerteza Absoluta” na bagagem, o homem de projetos como Pop Dell’Arte mostrou que um baterista não é só alguém que usa a percussão: conhece mais do que isso, conseguindo estender, moldar e prolongar o som à sua mercê.

Se há um contraste que descreve Ricardo Martins pode ser o contraste entre delicadeza e vigor. Munido da sua bateria e de um sintetizador modular para acompanhar a voz – com cânticos ou súplicas de outrora – Martins conduziu uma plateia atenta, sossegada e imersa num estado de sonambulismo catártico e guiado pelas coordenadas sonoras de um dos mais versados bateristas portugueses. Com pouca luz, viam-se apenas os realces dos aplausos demorados e, sem que déssemos por isso, já tinha acabado. Há momentos que parecem eternos, infindáveis de tão longos (como se uma vida coubesse neles) e passam assim: mais rápido do que conseguimos perceber.

No CIAJG ainda houve tempo para Anna B Savage, mas as nossas atenções estavam todas centradas para os atos que teriam lugar à noite no CCVF. Por lá, a dupla Fura Olhos, que junta a jovem Inês Malheiro ao mui experiente Miguel Pedro, serviu ao público a primeira apresentação do disco homónimo.

Ao longo dos temas do disco e de um ou outro momento improvisado, Fura Olhos presentearam-nos com um dos concertos mais afáveis e sedutores de todo o festival. Fosse com a guitarra ou o portátil de Miguel Pedro ou até com a voz que Inês Malheiro, que também tinha recursos diante si para a modificar, víamos nos dois uma concentração sem par – em Inês, por exemplo, via-se olhos fechados num estado de absoluta absorção contagiosa. Tão contagiosa quanto as ambiências, os poemas, as cordas e as vozes que se iam ouvindo durante aquela hora.

Já a música de Lorenzo Senni, nome que se sucedeu no mesmo palco, é muito mais difícil de compreender, o que não quer dizer, no entanto, que não seja igualmente contagioso. Aliás, o próprio era de tal forma contagiante que foi possivelmente um dos atos mais aplaudidos do dia e, mais ainda, um dos nomes que mais se mexeu em palco, provando que ele mesmo vibra com as suas produções e temas. A passar por temas do álbum “Scacco Matto”, lançado em 2020 pela Warp, o italiano mostrou todo o seu abstracionismo, as suas inspirações que possivelmente incluem videojogos e uma irreverência notável. Não é para todos – não é para mim – mas a sua peculiaridade é incontornável.

Do CCVF seguimos para a última paragem desta viagem, no São Mamede CAE, onde, sejamos sinceros, nem sequer tirámos notas, mas onde já não tivemos as esperas do primeiro dia. Afinal, quando chegámos ao clube, ainda estivemos uns poucos minutos na fila e, ao entrar, já Giant Swan tinha começado. E mais do que isso, a dupla britânica, num frente-a-frente formado por uma relação homem-máquina, não nos deixou sequer pensar em apontar pormenores daquela tão fervilhante atuação.

Com uma atitude altamente punk que bebe de mundos como techno ou industrial, o duo de Bristol não deixou ninguém arredar o pé, fosse pelos kicks pujantes ou pelas vozes modificadas por pedais e outros efeitos. No fundo, foi uma atuação tão intensa, encantadora e viciante que ainda hoje queremos encontrar uma máquina de tempo para voltar a ouvir este momento vezes sem conta.

Daí, e tal como no dia anterior, dois DJs encheram-nos as medidas por completo e, a par de Giant Swan, não deram sequer espaço para respirar. Por ali, vivia-se uma intensidade de clube bem séria, movida por batidas aditivas e elegantes. O primeiro a subir à cabine foi Lee Gamble, que por entre dubstep e techno assinou um set irrepreensível – isto se a minha memória envolvida pela escuridão e pelos passos de dança não falha. Depois, DJ Lynce foi também ele exemplar, viajando por discos sérios de movimentos como jungle e drum’n’bass – quem sabe até UK hardcore, é possível, mas não me lembro, tal era a intensidade deste nome forte do cenário portuense.

Repare-se: o Mucho Flow é festival extremamente rico, quer pelo cartaz, quer pela forma como põe Guimarães a acolher um evento que atrai melómanos destes campos da eletrónica. Mas mais do que isso, é um festival que sabe o sítio e a hora para cada uma das atuações, provendo o público com concertos introspetivos (e não só) ou, por outro lado, com DJ sets altamente estimulantes. E sempre com muito, muito flow.

Fotografias por Carina Fernandes

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