AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Semibreve: eletrónica, partilha e irreverência até mais não

5 Novembro, 2021 - 17:05

O Semibreve regressou a Braga para provar por que razão é um dos eventos mais importantes do ano. Daniel Duque esteve lá para ver e ouvir tudo.

A partilha é uma das ações mais enriquecedoras para nós enquanto humanos, enquanto seres que precisam de comunicar para chegar mais longe, para ir para além do óbvio e do nosso tão ínfimo lugar no mundo. E é por isso que viajar no Semibreve, em Braga, é igualmente enriquecedor. Trata-se de um festival de partilha sem igual: entre os artistas que se juntam em palco ou até entre as centenas de espetadores que partilham a mesma paixão.

No primeiro dia de Semibreve, aconteceu pela primeira vez um concerto de abertura no festival. O local foi nada mais nada menos do que a Basílica do Bom Jesus do Monte, onde a dupla CV & JAB (Christina Vantzou e John Also Bennett) se estreou em solo nacional num sítio que, só por si, revela desde logo o tacto sério e preocupado da organização. E verdade seja dita: entrar numa igreja deste tamanho é algo assombroso.

Com o público sentado e mascarado, à imagem de outros eventos culturais deste género, os minutos que antecederam o concerto serviram para ouvir nomes como Rabih Beaini ou Zeena Parkins a exprimirem a sua admiração pela colossalidade de um espaço destes. E igualmente colossal foi ter a dupla norte-americana a tomar conta deste santuário como se da sua própria casa se tratasse.

O concerto começou com John Also Bennett no piano de cauda e Christina Vantzou na maquinaria. O primeiro tocava nas teclas enquanto utilizava o microfone para fazer ouvir a sua voz modificada, qual monstro a assombrar o espaço, mas a semiótica ali presente ia muito para além do som, embora este também fosse altamente envolvente, fosse pelas teclas (que ambos tocaram), pela flauta de Bennett ou por field recordings de chuva ou do chiar de um jogo de basquetebol. Ali, éramos também envolvidos pelas sombras dos dois músicos nas paredes ou até pela arte sacra, que parecia contar uma história através da banda-sonora que se ouvia. Foi, no fundo, um momento tão único quanto espetacular.

No segundo dia, a chuva continuava a tomar conta de Braga. Nessa sexta-feira, também só houve concertos à noite, desta feita no Theatro Circo. Tudo começou com uma brilhante colaboração entre Zeena Parkins e o nome forte da ADDAC System, André Gonçalves. Durante essa hora, a primeira enaltecia os nossos corpos e ouvidos com, entre outro equipamento, a sua habitual irreverência na harpa, instrumento que a música toca de todas as formas e feitios, enquanto Gonçalves, sentado no chão, ia desenhando paisagens com um sintetizador modular. Por entre momentos mais caóticos ou outros mais introspetivos, o mais certo era o ouvinte deixar-se levar por uma relação musical e interpessoal que ainda hoje ressoa nos recantos de nossos cérebros.

Depois, para terminar essa noite, um dos momentos mais intensos e sérios de todo o festival. A sueca Klara Lewis e a britânica Nik Void, acompanhadas pelo cineasta e artista experimental Pedro Maia, abriram essa última hora com um contraste absoluto daquilo que se ouvira até então. A distorção tomou conta de todos por completo, com luzes strobes brancas e intensas a obrigarem-nos a desviar o olhar do palco.

As imagens de Pedro Maia só entraram poucos minutos após o intenso arranque, mais ou menos na mesma altura em que uma melodia mais calma assumia o papel principal. Mas um lado bem brutal acabava por ser a constante que cegava tanto quanto a luz e as imagens que acompanhavam o concerto. Por entre cores frias e quentes, uma tela com linhas rápidas e alucinantes ou pinturas abstratas, a música que se ouvia era violenta mas bela.

Autênticos riffs que faziam endoidecer qualquer um. Rasgos sónicos, que iam fazendo lembrar o movimento metal, industrial ou techno, sentiam-se nos contrastes minuciosamente pensados para nos levar a um êxtase único. A certo ponto, aliás, era praticamente impossível estar atento às imagens que corriam, tal era loucura da exploração que se vivia ali. Só mesmo os samples de vozes, num autêntico contraste, davam algum fôlego. Mas ninguém queria respirar assim tanto quanto isso durante aquela hora, tamanho era o vício provocado por aquela intensidade vibrante.

Nesta edição não houve clubbing, mas a maioria dos presentes dirigia-se a outros locais da cidade depois de cada noite. Talvez por isso, ao chegar à belíssima Capela Imaculada do Seminário Menor no sábado, vimos tanta gente de olhos fechados, como que a descansar. Por isso ou pelo encanto que tomou conta de cada canto do espaço durante a performance duracional de Flora Yin-Wong.

Certa vez, o músico Vasco Completo perguntou se seria possível descrever música ambiente com outro adjetivo senão etéreo. Durante os cerca de 40 minutos que estivemos pela capela, não conseguíamos pensar noutra descrição senão essa. Num momento algo inigualável e único, Flora Yin-Wong apresentou “Sea of Fertility”, uma peça que utilizava os quatro cantos da sala para nos devorar por completo – e, de facto, fechar os olhos era mesmo a melhor opção. A vontade era ficarmos emergidos naquela peça, mas ao mesmo tempo havia o primeiro “Foco” do festival noutro espaço.

Na ‘Blackbox’ do gnration, que recebeu também instalações e conversas noutras salas, os portuenses da Mera assumiam o controlo daquela imersiva sala. Com muito fumo e calor à mistura, três figuras conduziram um dos momentos mais dançáveis do festival, possivelmente a exploração mais clubbing do evento. Nos cerca de 45 minutos que vimos e ouvimos, os corpos do público iam sendo movidos por João Soares (Otsoa), João Dinis e Cláudio Oliveira (Dust Devices), trio que assinou uma viagem tão alucinante quanto desconcertante, provida por imagens praticamente indecifráveis na tela, luzes com o símbolo da Mera e, por entre tantos pormenores, um estudo sonoro sem um paradigma fechado, mas antes com uma visão aberta e enfeitiçante. Um ato cheio de poder e vigor.

À noite, seguimos para um dos momentos mais tocantes desta odisseia chamada Semibreve. Falamos de Rafael Toral, que subiu ao palco para apresentar “Time Bridges”, uma peça encomendada pelo festival que nos levou para passado e futuro durante cerca de uma hora. Inicialmente sentado com uma Les Paul azul nas mãos e pedais de efeitos nos pés, Toral hipnotizou o público por completo. Ouviu-se a reverberação das notas, a calma, pássaros e até sons vindos das máquinas tão próprias e características deste músico.

Criaram-se ali paisagens que provaram, pelo menos por instantes, o quanto o tempo é subjetivo e o quanto um mago como este consegue derreter o público durante a sua atuação. De tal forma, aliás, que no fim ouvimos inúmeros e rasgados elogios de todo o público, incluindo os de uma espetadora que admitiu ter chorado ao longo desse momento.

“Vocês têm um tesouro chamado Luís Fernandes [diretor do festival]”, referiu Rafael Toral ao microfone, ainda em palco, tecendo louvores àquilo que se vive em Braga durante estes dias. E parte desse tesouro chegou no último ato desse dia, concretamente uma colaboração entre Laurel Halo e Oliver Coates.

Os mais desatentos talvez associem Laurel Halo ao seu lado mais clubbing – ouça-se o seu DJ Kicks, por exemplo – mas a verdade é que é uma música de excelência que, no Semibreve, acompanhou o violoncelo de Oliver Coates com um piano de cauda. Mais uma vez, neste ato provou-se uma das grandes belezas deste festival: juntar diferentes génios criativos num só palco. Neste caso, numa atuação dividida em pelo menos duas partes, a dupla foi irrepreensível. Fosse Halo a dar espaço a Coates ou Coates a tocar violoncelo e a desenhar loops, a dupla foi a cereja no topo do bolo para este penúltimo dia – um dia emotivo e introspetivo, cuja elegância e gentileza ficou marcada nos corações de todos.

Já no último dia, entrar na performance duracional de Yvette Janine Jackson e Judith Hamann, no Salão Medieval da Universidade do Minho, foi sinónimo de entrar num convento íntimo e único. À hora que chegamos, o espaço era explorado por um violoncelo, acompanhado por ambiências que davam ênfase àquelas cordas. Poderíamos, aliás, usar tamanha introspeção para fazer o que bem nos apetecesse: tal como em Flora Yin-Wong, havia quem fechasse os olhos e apontasse a cabeça para o chão para viajar.

Perdidos por essa beleza, não apanhámos o segundo “Foco” do festival, a cargo da turva – sabemos, no entanto, que tem sido alvo de inúmeros elogios. Aproveitámos esse momento para ver as inúmeras instalações que estavam pelo gnration, onde aconteceu nesse dia a terceira e última conversa do festival – a primeira aconteceu no ciberespaço.

Em mais um dia chuvoso, fomos até ao Theatro Circo para as duas últimas atuações desta edição. Às 21h30, um prepotente momento que juntou Rabih Beaini às harpistas Angélica Salvi e Eleonor Picas. Numa fase inicial, as duas mestres da harpa “falaram” entre si antes de o libanês começar a usar a sua voz para dar corpo àquele passeio físico e mental. Depois, Beaini começou a manusear o seu instrumento único e customizado de várias formas e feitios, provocando um convidativo contraste que chega a ser indescritível – tanto começamos com delicadeza como passamos para rispidez. Mais uma vez, a partilha inesperada tomou conta de nós por completo, isto antes de as harpistas voltarem a assumir o papel principal desta tocante peça.

Para fechar esta edição com chave de ouro, a organização convidou Supersilent para a sua estreia em Portugal, este que é trio composto por Deathprod (Helge Sten), Arve Henriksen e Ståle Storløkken. Ao longo de pelo menos três momentos, o coletivo entrou com toda a força em palco para um concerto altamente intenso e alucinante, feito através do vasto arsenal que os noruegueses tinham diante si – de synths a instrumentos de sopro, a passar por computadores com Ableton ou até o que parecia ser uma Maschine. Mas mais do que uma arrepiante atuação que nos presenteou com riffs vigorosos e até com vozes vindas de uma qualquer fonte, houve também momentos calmos e siderais, claramente arquitetados para nos levarem até para uma outra galáxia. Mesmo com o corpo no Theatro Circo, Supersilent foi mais um daqueles momentos indescritíveis – afinal, como é que se descreve algo que nos tira a atenção da secularidade da vida?

A viagem que acontece a cada ano no Semibreve é infinita, repleta de uma multitude de ofertas artísticas. E não só enquanto objeto: a partilha diária com pessoas com quem podemos socializar é enorme. Ora estamos a falar com um músico, um DJ, um radialista, um curador, um pintor ou simplesmente com um melómano. Christian Skjødt Hasselstrøm, por exemplo, foi um desses: o vencedor do Edigma Semibreve Award disse-nos que estava fascinado com o calor dos portugueses e a beleza da cidade.

Mas essa partilha não acontece só entre espetadores como nós. Na realidade, acontece também entre músicos. Em que outro mundo poderíamos ver o fundador da Morphine Records, Rabih Beaini, ao lado da conceituada harpista portuguesa Eleonor Picas? Pelo menos neste país, dificilmente encontramos outro festival que nos permita viver um mundo tão peculiar quanto este Semibreve.

Fotografias por Adriano Ferreira Borges / Semibreve

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