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OUT.FEST: Um encontro mais do que familiar

12 Outubro, 2023 - 15:18

Outubro começou com a 19ª edição de OUT.FEST e João Antunes esteve por lá para nos contar o que viu e ouviu. As fotografias são de Vera Marmelo.

São 21h30 numa noite (teoricamente) de Outono e fazem-se sentir temperaturas acima dos 20 graus no Barreiro. A edição de 2023 de OUT.FEST está prestes a começar e o calor que se faz sentir cá fora parece uma premonição sobre as ondas sónicas que aí vêm.

A contenda começa com a performance “Beams”, de Alvin Curran. O compositor e performer de (quase) 85 anos, munido de um teclado Midi e de uma destreza invejável para alguém da sua idade, comanda uma banda composta maioritariamente por intérpretes de escolas barreirenses. Com um foco claro no improviso e experimentação, Curran usa os sons do seu teclado em conjunção com os instrumentos clássicos da banda, para criar uma atmosfera sónica com uma frescura que contrasta de forma irónica com o calor que se faz sentir nos PADA Studios.

Ao fim de sensivelmente 50 minutos, aplausos efusivos para o compositor e todes es que o acompanharam nesta noite. Ainda agora começámos mas esta já é claramente uma das performances do festival.

Seguimos para o edifício A4, onde Rojin Sharafi nos aguarda com uma performance singular. A artista de Teerão intercala os beats pujantes e sujos que saem dos seus sintetizadores com secções mais atmosféricas, auxiliada por um instrumento que não conseguimos identificar (parecia um xilofone, mas também podia ser um santoor). Uma combinação improvável mas que é claramente vencedora.

A primeira noite termina com Novo Major atrás dos pratos. Um set coerente que começou por soar a uma continuação da performance de Sharafi, mas rapidamente se tornou numa proposta clubbing que nos colocou a dançar efusivamente. Ao longo de sensivelmente 2h, ouviram-se nomes tão distintos como Gunnar Haslam, Phuture The Next Generation ou Autechre.

Chegamos um pouco atrasados ao dia 2 e com escolhas difíceis para fazer. O cenário da Igreja de Nossa Srª do Rosário acaba por levar a melhor e leva-nos até ao concerto de Brìghde Chaimbeul e ao som da sua gaita de foles. A jovem escocesa, originária da Ilha de Skye, presenteia-nos com uma harmoniosa interpretação de canções tradicionais celtas que assentam que nem uma luva no ambiente proporcionado pela “sala” escolhida.

Seguimos então para a famosa Gasoline, primeiro contacto com a familiaridade que mencionamos no título da reportagem. Vive-se um ambiente contagiante à porta desta associação, onde as conversas fluem entre caras conhecidas e outras que acabaram de se conhecer, todes unides pela vontade maior de desfrutar de mais 3 dias de música exploratória.

Entretanto, o calor que se continuava a viver no Barreiro parecia já fazer prever o absoluto inferno sónico que NZE NZE estavam prestes a proporcionar-nos. Uma combinação de ritmos industriais com a vociferação imponente do seu vocalista, som em apoteose constante que colocou a Gasoline em ponto de ebulição do princípio ao fim. No final, ouve-se entre o público a analogia “dub Giant Swan”. Aceita-se, mais não seja pelo poderio de ambos os grupos nas performances ao vivo e pelas semelhanças no seu setup.

Pausa para comer concluída e já estamos sentados no auditório da SIRB “Os Penicheiros” para ver Sven-Ake Johansson e Jan Jelinek. O cenário é bonito e apropriado ao casamento da bateria do lendário (e também octagenário) Johansson com a electrónica de Jelinek, mas esta é uma performance que, mesmo sendo segura, acaba por não nos conquistar.

A acabar a noite, Nok Cultural Ensemble, projecto de Edward Wakili-Hick (Sons of Kemet ou Kokoroko, entre outros) que prometia trazer um afro-futurismo assente nos ritmos percussivos para nos pôr a todos a dançar até ao final da noite. Se a qualidade dos artistas em palco não merece ser posta em causa, ficou-nos na cabeça um sentimento de alguma desilusão em relação à criatividade e à própria audácia do projecto. Gostámos do que ouvimos, mas queríamos mais.

É importante ressalvar que o sentimento sobre os dois concertos desta noite é, provavelmente, muito influenciado pela avalanche sónica que tinha sido vivida horas antes em NZE NZE. A pausa para jantar não foi suficiente para nos preparar para uma queda abrupta no nível de energia dos concertos. Mais mérito dos primeiros do que demérito dos segundos.

Começamos o terceiro dia já na ADAO, entusiasmados para ver pela primeira vez o novo super-grupo da música independente portuguesa FARPAS a tocar ao vivo. O trio, liderado pela voz e escrita icónica de Miguel Abras, não desiludiu. A bateria de António Feiteira e o saxofone de Guilherme Rodrigues revelaram-se os pares perfeitos para o baixo e voz de Abras e, em palco, os três estiveram em perfeita sintonia sem perder o espaço para a improvisação.

Seguiram-se os ritmos progressivos dos sintetizadores modulares de Afrorack e a progressão foi mesmo a palavra-chave. O músico ugandês ofereceu-nos uma atmosfera sónica que começou por fazer os nossos corpos balancear suavemente através do som dos seus beats, antes de uma explosão rítmica que pôs o público inteiro a dançar. Entre sons mais techno e outros mais dub, não houve indiferença a uma única batida de deste nome, naquela que foi uma das performances live mais impressionantes do ano até ao momento.

Saltámos o concerto de Sirom para um merecido descanso e para colocar a conversa em dia, sempre com o foco nas performances vistas até ao momento, antes de regressar à sala das colunas da ADAO para ouvir J. Zunz. A artista mexicana, aqui em formato duo, apresentou-nos uma performance tão versátil quanto seria de esperar da sua parte. Capaz de nos fazer dançar, abanar a cabeça ou simplesmente navegar no psicadelismo dos seus drones, este foi mais um concerto onde o noise triunfou.

De regresso à sala das oficinas, o quarteto americano Horse Lords apresenta-nos talvez o mais próximo de uma formação clássica de rock que acabaríamos por ver no primeiro dia. Ainda assim, foi no seu experimentalismo, a fazer lembrar bandas tão distintas quanto Battles, que o grupo conseguiu manter entretido um público que, àquela hora, claramente já pedia outro tipo de energia.

E que energia que estava para vir! Os HiTech terminaram os concertos da noite na sala das colunas com uma performance absolutamente triunfante. O trio de hip-hop de Detroit chegou, viu e venceu através dos beats ghettotech irrepreensíveis de 47Chops e a energia contagiante de King Milo e Milf Melly.

A performance foi marcada por momentos tão caricatos como emblemáticos, com o grupo a distribuir Hennessy para bel prazer do público, a incitar ao moshe, começado pelos próprios, e surfando por cima de uma plateia que alinhou em todos as extravagâncias dos HiTech. O concerto acabou com o palco totalmente ocupado entre artistas e fãs, num momento de euforia e simbiose que não esqueceremos tão cedo, ou não fosse parte desse mesmo palco ter desabado! Nada que tenha impedido as dezenas em cima do mesmo de continuarem a dançar.

A noite terminou com um set de DJ Lynce. O incontornável DJ portuense, num set totalmente de vinil, não deixou os seus créditos por mãos alheias e presenteou-nos com ritmos dub, jungle ou drum’n’bass que mantiveram uma boa parte do público a dançar até ao último beat.

O último dia do OUT.FEST era também o mais completo e, consequentemente, o que implicava mais energia e escolhas difíceis.

O cansaço acumulado da aventura não nos demoveu e começamos logo às 16h a escutar Voice Actor na Biblioteca Municipal do Barreiro. Atrás de uma cortina que tapava todo o palco, Noa Kurzweil começava a curar-nos a ressaca através da suavidade da sua voz e dos sons hipnóticos que produzia, com um setup que não conseguimos discernir, como nos pareceu ser o objectivo da intérprete.

A mesma cortina já mencionada recebia a projecção de filmagens de transeuntes a passarem em ruas que, mais uma vez, não conseguimos identificar. O mistério é parte da identidade de Voice Actor, mas algumas das melodias foram certamente reconhecíveis a quem já ouviu as 4h30 de música em “Sent From My Telephone”.

Abandonamos a Biblioteca em direcção ao Teatro Municipal onde nos deparamos com mais um destaque do festival: a conjugação perfeita entre os sintetizadores de Clothilde e o trompete de João Silva resultam numa performance magnífica que certamente gostaríamos de presenciar novamente.

A esta hora há concertos em três salas em simultâneo e, pelo centro do Barreiro, vamo-nos cruzando com amigues em constante rodopio de uma sala para a outra. Há muitas decisões a tomar, mas, como o festival já provou ao longo dos últimos três dias, dificilmente vamos escolher mal.

Acabamos por escolher o conforto do Teatro onde a performance de Dali Muru & the Polyphonic Swarm começa pujante, com o trio a apoiar-se na voz da sua vocalista para criar cenário sónico hipnotizante e com muitas ideias certeiras. Infelizmente, não sentimos que o resto do concerto conseguisse manter a toada inicial, até que a última canção, apenas com os instrumentalistas em destaque, recuperou o entusiasmo inicial e deixou-nos curiosos por mais. Um concerto de altos e baixos, mas certamente mais uma hora bem passada.

Raja Kirik estavam ocupados de fechar a tarde no Largo do Mercado 1º de Maio e fizeram-no com um sucesso assinalável. Ao longo de cerca de uma hora de set, dançámos sem parar enquanto o duo da indonésia combinava o som de elementos tradicionais da sua ilha com electrónica moderna a velocidades estonteantes. O público que, em parte, aproveitava as infraestruturas do largo para descansar um pouco, foi-se juntando em cada vez maior número à frente do palco, numa prova clara de que Raja Kirik conquistaram este OUT.FEST.

Pausa para jantar. O Barreiro está cheio e não está fácil de encontrar mesa para um grupo que parece ficar cada vez maior. O ambiente de familiaridade vivido no festival facilita sempre mais um convite a um amigue ou conhecide para continuar a conversa e juntar-se a nós nesta pausa.

Regressamos à ADAO com a certeza de que o festival vai acabar com chave de ouro. São 21h40 e já ouvimos Rita Silva na Sala das Colunas. A esta altura já não temos dúvidas de que há uma aura mágica neste espaço.

Mais uma vez, os nossos ouvidos vão ao encontro de sintetizadores modulares, mas estes têm uma familiaridade muito própria. As texturas sónicas criadas por Rita Silva transportam-nos numa odisseia sonora que nos remete sempre para a comparação, muito elogiosa, a Caterina Barbieri. Mais um belíssimo concerto para começar a noite.

Nas Oficinas, os Holy Tongue, de Valentina Magaletti, não perdem tempo e já vão debitando sonoridades post-punk com a mestria que costuma acompanhar qualquer projecto da celebrada percussionista italiana. Também em Holy Tongue a electrónica marca presença, ajudando a oferecer uma projecção que eleva a música do trio a novos patamares. Estamos claramente na presença de três músicos exímios e os aplausos efusivos são mais que merecidos.

De volta à Sala das Colunas, já se ouve Ben Yosei, o jovem português responsável por um dos discos mais aclamados do ano, “Lagrimento”. Aqui, teremos que abrir uma pequena excepção aos elogios feitos até agora ao festival, para mencionar que a rapidez com que os concertos acabavam e começavam nesta noite não estava a permitir que os nossos ouvidos descansassem o suficiente.

Escutamos um pouco do concerto que nos ajuda a confirmar o talento de Ben Yosei, mas acabamos por nos retirar a meio para um necessário período de descanso, reflexão e preparação para o que aí vem.

Liturgy são o nome que se segue. Num festival onde usar o termo “cabeça de cartaz” não faz muito sentido, é impossível escapar à sensação de que este é o nome mais aguardado do dia. Riffs estonteantes e batidas explosivas agarram-nos do princípio ao fim. Este é um concerto diferente daquele a que o festival nos habituou até agora, mas estávamos todos preparados para a muralha de som que aí vinha, como se comprova pelos movimentos corporais da plateia.

O concerto termina com uma malha mais lenta e atmosférica que dá espaço a contemplar a formação em palco e apreciar os últimos 50 minutos de música com que nos presentearam. Se era “transcendental black metal” que o público queria, ninguém terá ficado desiludido.

Voltamos às colunas, mais uma vez em correria, e com tempo apenas para apanhar um pouco de ar até que Shackleton e Scotch Rolex comecem a trazer os beats club de volta para o festival. Foram 50 minutos de percussões experimentais com o dub sempre presente, a uma velocidade e coerência rítmica incapazes de permitirem um segundo de descanso aos nossos corpos.

A Sala das Colunas da ADAO despede-se do OUT.FEST 2023 como o espaço que mais e melhores memórias nos deixou.

Chegou a hora do último concerto e, apesar do cansaço acumulado, o entusiasmo por LustSickPuppy era palpável no ar. Directamente de Brooklyn, e artista americane apresentou-se com uma imagem imponente, vestide com caveiras metálicas, correntes e couro preto que combina na perfeição com o tom punk da sua música. Um concerto de rap mas muito mais que isso, LustSickPuppy deixa tudo em palco e a sua energia é contagiante. Para isso ajuda não só a sua voz, como também os beats drum’n’bass e hardcore que usa para suplantar todo o espetáculo.

A apoteose é geral e ninguém diria que muites de nós estavam no festival há quatro dias. Há moche nas últimas canções e aplausos efusivos e muito merecidos no final. A porção de concertos do OUT.FEST fecha com chave de ouro e LustSickPuppy triunfou.

Para acabar, set da veterana e lendária Dj Marcelle. Com um setup de três pratos e com aquela que é certamente uma das bagagens de discos mais entusiasmantes do planeta, Marcelle foi capaz de despertar energia que pensávamos já não ter. Muito jungle e drum’n’bass e uma mestria clara para dominar não só o mixer e os três gira-discos, mas o próprio público que respondia sempre de forma afirmativa às passagens e músicas mais ambiciosas da DJ holandesa.

Lá fora, na zona “lounge” da ADAO, onde, confessamos, passámos uma boa parte do set, os semblantes misturam o cansaço com a felicidade. Tertúlia-se sobre o impressionante setup usado pela DJ em palco, as melhores performances dos últimos dias e já se antevêem concertos futuros porque, como já devem ter percebido, o OUT.FEST é um evento inspirador e que nos faz querer sempre mais.

Despedimo-nos de caras conhecidas e novas amizades com a certeza de que algumas opiniões são unânimes, até para aqueles que visitaram o festival pela primeira vez: o OUT.FEST é um encontro mais do que familiar.

Esta familiaridade começa na música e na confiança que temos na organização, tanto para nos trazer artistas que fazem parte da nossa vida, como para descobrir novas obsessões sónicas até então desconhecidas.

Mas passa também pelo ambiente vivido, onde é preciso destacar não só a comunhão entre o público, como a boa disposição de todos os que fazem o festival. Este sentimento é contagiante e, para tal, ajuda também que (quase) tudo funcione na perfeição, sem grandes filas ou outros constrangimentos.

Não esqueceremos estes 4 dias tão cedo. Obrigado e até para o ano, OUT.FEST!

Fotografias por Vera Marmelo

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