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Afinal, este vale não está assim tão perdido

25 Novembro, 2023 - 12:47

João Antunes traz o relato de tudo que viu, ouviu e experienciou na primeira edição de Vale Perdido, festival itinerante que acontece em Lisboa. As fotografias são de Vera Marmelo.

Eram ainda 20h30 quando chegamos ao 8 Marvila. Horário atípico para uma noite de clubbing, especialmente a uma sexta-feira, mas não é uma noite de clubbing qualquer. Outras obrigações fizeram com que infelizmente perdêssemos a quarta-feira de Vale Perdido, na Igreja St George, arranque que contou com FUJI||||||||||TA e Polido. Mas tínhamos muito pela frente.

A ausência de público, expectável a estas horas, dá-nos a oportunidade de apreciar o espaço onde passaríamos as duas noites seguintes com um olhar atento, matando pelo caminho a curiosidade sobre uma sala que poderá vir a ter um papel importante na cena cultural da cidade ao longo dos próximos cinco anos.

O principal destaque vai, desde logo, para o estandarte que se encontra ao fundo do espaço, centrado atrás do palco que divide esta enorme sala a meio. Um pormenor que, ao longo de mais de 20 horas de música com que o Vale Perdido presenteou o 8 Marvila, serviu como enquadramento visual perfeito para nos lembrarmos de onde estávamos.

Há um bar principal bem composto e no qual a ausência de filas foi muito bem-vinda. À parte, há ainda uma banca de vinhos e outra com oferta de comida, assinada pela Tasca Pete e disponível ao longo das duas noites. Feito o reconhecimento ao espaço, está na hora de começar a dançar. Aos comandos da pista encontra-se Patrícia Brito, DJ portuense que tem chamado cada vez mais a atenção da cena.

Com uma capacidade invejável de criar uma viagem progressiva com a sua música, a DJ rapidamente nos colocou de ouvidos em escuta cuidada, num set muito expansivo e que começou com um foco maior em faixas downtempo de sonoridade arrojada e identidade bem vincada. Criada a atmosfera perfeita para receber o público que começava a chegar ao Vale Perdido, houve ainda tempo para deambulações e tons mais industriais antes de uma subida de ritmo que preparou, de forma ideal, os nossos corpos para o que estava para vir.

Chegado o momento alto da noite, um dos principais destaques do festival: os Nihiloxica sobem ao palco instalado no 8 Marvila para dar de caras com uma sala muito longe da sua lotação, mas que está composta quanto baste e, mais importante, pronta para a avalanche sónica que se avizinha.

Agora com cinco elementos (no início, ao vivo, eram seis), o grupo vem ao Vale Perdido apresentar o mais recente álbum, “Source of Denial”. Vislumbramos em palco uma bateria, um conjunto de sintetizadores, o que nos parece ser uma drum machine e, claro, o set de percussão do Buganda, um dos reinos tradicionais do Uganda, aqui nas mãos dos três membros dessa região que compõem o grupo. A percussão foi, de resto, a chave dos primeiros temas tocados pela banda que usou e abusou (positivo) da repetitividade para colocar os corpos a mexer.

São, no entanto, as máquinas do produtor Pete “pq” Jones a provocar o primeiro momento catártico, quando a electrónica ganha primazia e entra num choque rítmico com os instrumentos dos restantes membros da banda. É inegável o poder da percussão em Nihiloxica, mas, como viria a ficar claro ao longo da hora seguinte, é a vertente electrónica que oferece à banda uma identidade e característica apoteótica a que ninguém ficou indiferente neste concerto.

Sensivelmente a meio da atuação, a sonoridade ganha contornos mais pesados, com os tambores novamente a terem lugar de destaque e os synths a produzirem um som que, como referido várias vezes pelos próprios, se pode assimilar a um “heavy metal” em modo clubbing. Antes do final há ainda espaço para uma fase mais techno, com os BPMs a atingirem o seu nível máximo. Tudo isto é, mais uma vez, recebido em total euforia pelo público que, entretanto, ainda não parou de dançar.

A actuação termina de forma triunfante, com a electrónica a ganhar novamente destaque e com os ritmos ácidos a assimilarem-se de forma perfeita na avalanche percussiva que os restantes elementos criavam. Palmas, muitas palmas.

Era agora tempo para uma das actuações que mais curiosidade nos despertava: a das Batucadeiras das Olaias. Directamente do bairro com o mesmo nome, os elementos integrantes deste conjunto composto por mais de 15 pessoas sentaram-se num semicírculo para apresentar as suas interpretações do Batuku cabo-verdiano. Um momento de intimidade que rapidamente se revelou importante e provocou uma forte comunhão entre público e artistas, com espaço para elementos dos dois lados dançarem em conjunto ao ritmo dos tambores e coros das Batucadeiras. Se musicalmente desconfiamos da escolha em colocar este espetáculo acústico logo a seguir à avalanche sónica dos Nihiloxica, a verdade é que este se revelou o momento de descompressão perfeito para quem decidiu ficar pelo 8 Marvila.

Para terminar a noite, Kleo tinha a responsabilidade de nos colocar novamente na rota da música puramente clubbing. Com um setup dividido entre os pratos e os CDJs, a DJ associada à histórica Rush Hour trouxe, sem surpresa, uma vasta bagagem de discos. Passando por sonoridades como house, acid ou synthwave, Kleo teve mais do que capacidade para nos pôr a dançar, mas ficou a sensação de que outra escolha não teria sido mal pensada para uma noite que já tinha contado com ritmos tão caóticos e pesados como os de Nihiloxica.

O segundo dia de clubbing do Vale Perdido começava cedo, talvez até demasiado cedo, pensavam alguns. Eram cerca das 17h quando chegamos ao 8 Marvila e Ricardo Grussl & Tadas Quazar tocavam para uma sala praticamente vazia. Nada que tenha demovido os dois DJs nesta celebração de dança que conduziram durante cerca de 6 horas. Também eles a fazer uso do digital e analógico, a dupla levou-nos numa aventura complexa com direito a ritmos synthwave, pós-punk, industrial, algum jazz e até duas ou três faixas viradas mais para o disco. Uma jornada triunfante e que merece o nosso louvor, não só aos DJs como aos programadores, por terem acertado na mouche na escolha dos actos responsáveis por abrir cada dia do festival.

Era agora vez de DJ Caring tomar as rédeas da noite. Num set que começou por conquistar algum do público através do techno mais puro, Caring passou depois por uma escolha de faixas mais experimentais, deambulando entre ritmos techno mais acelerados ou outras faixas de ritmo mais lento. Esta variação permite-nos perceber que, entre o muito público que já se junta para esta noite, a expectativa é de que os BPMs atinjam um nível bem elevado. Até ao final, há tempo ainda para um lado mais percussivo (a ínfame tag “dj Ahadadream” ecoou pelo 8 Marvila), algum acid e, para terminar, faixas que poderiam facilmente caber no leque do booty bass. Um set muito interessante e uma transição perfeita para a segunda parte da noite.

Seguia-se o momento mais aguardado, não só desta noite, como provavelmente de toda a vertente clubbing do Vale Perdido. A adesão do público, que nos dá a sensação de duplicar os números da noite anterior, não nos deixa mentir. Luke Vibert é aquilo que pode ser chamado de “o DJ favorito do teu DJ favorito”, o que se comprova num pequeno olhar à volta do 8 Marvila. Vemos aqui não só muitas caras conhecidas da cena clubbing lisboeta como também há quem se tenha deslocado do Porto e arredores e, ouvimos mais tarde, até um grupo de DJs de Madrid que veio propositadamente para ouvir o britânico.

Se havia muita curiosidade no tipo de sonoridades que o DJ britânico iria apresentar ao Vale Perdido, o veredicto inicial é claramente mais virado à vertente acid techno a que mais tem sido associado em anos recentes. Numa primeira hora de BPMs em crescendo, somos presenteados primeiro com uma abordagem futurista e mais experimental, com destaque para a Acid 2000 do próprio Vibert, antes de uma transição para ritmos breakbeat de BPMs mais elevados.

É sensivelmente à passagem da uma hora de set que se dá uma viragem algo inesperada. Ouvimos agora sonoridades muito próprias dos anos 90, com faixas house e techno dos anos dourados da era de Detroit (e não só), por onde se descortina música de nomes tão distintos como Chez Damier ou Aphex Twin. Já com mais de 7h em cima, este abrandar de ritmo não puxa por mim nem por outros presentes na sala, mas a boa disposição reinava no 8 Marvila e a transição para a fase final do set, com muito electro e, para fechar, techno ácido a velocidade elevada, levou qualquer pessoa novamente ao rubro antes da passagem de testemunho a Violet.

De Violet, esperávamos muito. Deste lado, a DJ portuguesa já atingiu um estatuto reservado a muito poucos, autêntico ícone da cultura clubbing não apenas por cá mas também por esse mundo fora. DJ, produtora, promotora, label-owner e fundadora de instituições tão fundamentais como a Radio Quântica e o Planeta Manas. E se Luke Vibert nos deixou a pedir mais, Violet entregou-nos tudo.

Ao longo de 3 horas frenéticas, a DJ agarrou o público do início ao fim, com uma viagem supersónica assente em muitos breaks, incluindo algumas faixas de jungle, no que pareceu quase uma continuação espiritual da noite Angel, da autoria da mesma Violet, que tínhamos presenciado na semana anterior. Depois de abrir com algum electro que ajudou a marcar o passo inicial, rapidamente transitámos para um techno de alta velocidade que colocou toda a gente a dançar. Há, mais uma vez, faixas com uma percussão à qual nenhum DJ deste festival parece resistir, embora aqui aconteçam a um ritmo diferente, mais próprio da energia que o corpo pede a estas horas da noite.

Os muitos que ainda marcam presença no 8 Marvila recebem efusivamente cada drop e transição que Violet entrega e ao final de uma hora já era claro que esta aposta para fechar o clubbing do festival foi muito acertada. Entre as muitas faixas que levaram o público ao êxtase, destaque para o momento de transição após uma euforia de ácido progressivo em que entra Skull Emoji, do jovem TOME, lançamento mais recente na Angel da própria Violet e uma arma que começa a ser obrigatória em qualquer set de alta velocidade nas pistas portuguesas. Até ao final, houve ainda espaço para mais música de percussão e breaks hipnotizantes, as sempre bem-vindas sonoridades dub e algum hardcore, com Witch Heaven, dos portugueses 7777 の天使, a somar mais uma aparição da cena nacional.

Aplausos efusivos e muito merecidos para um dos melhores sets que tivemos o prazer de dançar em 2023, a reconfirmar aquilo que já tínhamos como certeza antes desta noite: Vibert não era a única lenda presente no 8 Marvila.

Após um merecido descanso, domingo foi dia de nos deslocarmos para a outra ponta da cidade e ir ao encontro de Maria Reis, Gabriel Ferrandini & Xavier Paes e A:Di n’A Sala Lisa, local perfeito para receber este encontro de cariz muito familiar. Depois de acabarmos a noite anterior a escutar o set de Violet, hoje era a vez de outra heroína do underground lisboeta abrir a noite: Maria Reis, metade das icónicas Pega Monstro e co-fundadora da Cafetra que tem vindo a destacar-se cada vez mais a solo nos últimos anos.

Apenas com as suas guitarras e microfone à frente, a cantautora portuguesa apresentou faixas dos seus lançamentos mais recentes, bem como algumas canções novas, como a entretanto editada (ao vivo) Coisas do Passado. Ao longo de quase uma hora, Maria Reis colocou um sorriso na cara de uma Sala Lisa esgotada para receber um dos nomes mais importantes do panorama actual da música nacional. Aplausos mais sentidos para êxitos como Elefante na Sala, Benefício da Dúvida e Olívia, que, certamente, arrancou uma ou outra lágrima pela sala. Se Violet nos ofereceu uma avalanche sonora, domingo foi dia de uma muito bem-vinda descarga emocional. Mais um momento tão importante como familiar neste Vale Perdido.

Seguiam-se então Gabriel Ferrandini e Xavier Paes, com a tarefa importante de fechar o conjunto de concertos da primeira edição do festival. Com um imponente setup de tambores, pedais, máquina de fumo e outra maquinaria que não conseguimos descortinar em palco, foi uma agradável surpresa ver o concerto começar fora desse mesmo palco. O experimentalismo, a criatividade e o próprio uso do espaço são bandeira de ambos os artistas e, embora surpreendente, fez por isso muito sentido vê-los começar a performance a usar os copos suspensos por cima do bar para reproduzir os primeiros sons deste espectáculo de improvisação. Momento bonito e de ouvido fácil, suportado pela atmosfera visual e intimista que esta sala, escolha mais do que acertada para o festival, permite.

Já em palco, o duo português fez uso total do muito material que tinha à sua disposição, com o maior destaque para os tambores. A percussão foi mesmo palavra de ordem neste Vale Perdido (e bem). Um momento de improvisação e experiência que talvez pudesse ser considerado monótono em alguns momentos, mas que foi acima de tudo uma experiência sónica que valeu a pena ouvir e sentir, como estes artistas já nos habituaram, cada qual à sua maneira.

A encerrar o festival, A:DI colocou-se atrás dos decks para uma LISA que, expectavelmente, já estava muito vazia. Nós também não ficámos para dançar muito tempo, algo que lamentamos pois o pouco que ouvimos agradou. Downtempo, industrial, uma sequência de breaks muito atmosféricos e, antes de nos ausentarmos, ainda ouve tempo para um remix jungle de Portishead que colocou o pouco público ainda presente a dançar. Um nome acabado de aterrar em Lisboa e a ter em conta num futuro próximo.

Mesmo que possamos ter ficado com a sensação de ser uma edição piloto num ou noutro momento, é impossível não ter apreço pelos três dias certeiros que vivemos, dias esses que nos deixaram com vontade de voltar já este fim-de-semana. É raro sentir que a primeira edição de um festival faz tanta coisa bem. Desde a premissa inicial de nos colocar a passear por Lisboa, até mesmo por novos pontos da cidade, até à escolha de artistas, que tanto trouxe novidades, regressos ou a vontade de destacar nomes do nosso próprio cenário.

Houve espaço para muita coisa neste Vale Perdido e o pouco que não resultou é fácil de resolver. A experiência da equipa por detrás do festival deixa-nos confiantes de que, numa eventual próxima edição, o Vale Perdido possa dar um passo ainda maior. E isto, claro, sem perder o cariz intimista, familiar e, acima de tudo, confortável que marcou esta primeira edição.

Fotografias por Vera Marmelo (cedidas pela organização)

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