AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Entrevista

Alagoa: “O trabalho artístico será sempre prioridade. Não sei fazer outra coisa”

15 Dezembro, 2023 - 13:05

Falamos com Alagoa sobre o novo álbum, “The Jar”, e sobre o percurso que o levou desde a guitarra e o metal até à eletrónica ambient e experimental – isto tudo sem esquecer o cinema.

Talvez muitos o conheçam pela música que assina como Alagoa, mas o caminho de Alexandre ao longo dos anos conta muito mais do que isso. E em “The Jar”, álbum que editou em outubro passado pela sua turva, também há uma história a ser contada.

O novo disco é fruto de gravações feitas ao longo de dois anos e do processo de as “destruir por via de processos de síntese granular, de glitch, isolamento de frequências, mudanças de pitch, cortes e reverbs”, explica-nos nesta entrevista. Mas atenção: destruir é um verbo que talvez esconda o tato e sentimento aqui imprimidos.

A viver no Luxemburgo, Alexandre Alagoa é um nome que não se aventura apenas na música. Tem outros lançamentos, como o que lançou em 2018 pela Variz, mas, além do som, este explorador natural de Sesimbra tem um percurso na academia para contar e é também conhecido por ser um cineasta e artista multimédia que já viu, por exemplo, alguns dos seus filmes ou peças audiovisuais serem exibidos em diferentes festivais internacionais – podes saber mais no site do próprio Alexandre Alagoa.

Nesta entrevista, Alagoa fala melhor sobre cada uma dessas etapas, o caminho que inclui um canal de YouTube e até, por exemplo, a “experiência de constante aprendizagem” que é a já referida editora audiovisual que partilha com Luís Neto.


“The Jar” está também disponível numa edição em vinil

Tenho curiosidade em saber como divides o teu tempo entre Lisboa e Luxemburgo. Como é o teu dia-a-dia?
Eu mudei-me para o Luxemburgo no fim de 2019 devido a uma oportunidade de emprego, e acabei por ficar. Mas muitos dos meus projectos artísticos, nos quais a turva se inclui, tiveram início quando ainda estava a viver em Portugal, e por isso Lisboa e Porto são sempre destinos recorrentes para que esse percurso continue.

Consequentemente, o dia-a-dia resume-se a dividir o tempo entre o emprego durante o dia e o trabalho artístico durante a noite. Acabo por ter de me reunir imenso online com toda a gente, o que por vezes não é ideal, e para combater isso desloco-me a Portugal talvez de três em três meses, ou até mais frequentemente dependendo do que tenho em mão, para que me possa encontrar com colegas e finalizar peças.

Por mais caótico que se possa tornar, tento fazer o melhor possível, e fico muito grato por poder fazer o que faço. Trabalho com pessoas extraordinárias e isso torna todo o processo mais fluido. Ainda que eu esteja cá (no Luxemburgo), o trabalho artístico será sempre uma prioridade. Não sei fazer outra coisa.

Como é que o Alexandre Alagoa vai de um jovem dedicado à guitarra para o nome que assina “The Jar”?
Muito curioso fazeres a referência à guitarra porque esse percurso tem um certo impacto na turva. O meu primeiro contacto com música vem sobretudo do metal. Comecei a tocar guitarra por volta dos 14 anos e isso deu origem a algumas bandas entre amigos, bem como à criação de um canal de YouTube onde partilhava o que ia aprendendo: sobretudo thrash, metal progressivo, death metal e death metal técnico. É a partir do YouTube que descubro o canal de bateria do Luís Neto (a outra metade da turva), e acabamos por nos conhecer pessoalmente e colaborar em algumas covers. Resumidamente, gera-se uma longa amizade e vários anos mais tarde isso dá origem à turva.

A minha música enquanto Alagoa vem materializar-se só anos mais tarde, numa passagem do metal ao noise e ambient, bem como através do percurso académico que não só me deu imenso contexto histórico relativo ao mundo da electrónica, através de nomes como Pierre Schaeffer, John Cage e Laurie Anderson, como me permitiu começar a explorar espaços importantes por Lisboa. Vindo de uma vila pequena (Sesimbra), o percurso nas Belas Artes abriu um universo imenso no que diz respeito ao som e ao cinema.

E como é que chega aos filmes e à vontade de se dedicar também a essa arte?
Em paralelo à música, o cinema sempre moldou imenso a minha vida, diria até de forma mais vincada. Sempre quis trabalhar com ambos, e é isso que me leva a seguir audiovisuais nas Belas Artes.

A maior parte do meu trabalho tem sido focado na produção de vídeo, seguindo uma influência muito óbvia da arte conceptual, da fluxus, do filme estrutural dos anos 60-70 por via dos filmes do Michael Snow, Ernie Gehr, os japoneses Takashi Ito e Toshio Matsumoto, outros realizadores como Brakhage e Marie Menken, bem como da vídeo arte portuguesa com artistas como o Alexandre Estrela, João Maria Gusmão e Pedro Paiva, para dar alguns exemplos.

O percurso académico foi crucial para maturar algumas das minhas ideias, e tenho trabalhado em cinema, nessa abordagem estrutural, material e mecânica, desde então.

Acredito que sintas que todo esse percurso, neste caso o académico, tem peso naquilo que fazes hoje e até no “The Jar”?
Sem dúvida. Esse espírito de aluno constantemente curioso pelos seus meios — seja a guitarra ou a câmara de filmar — está tão presente agora tal e qual da mesma maneira como o estava há 10 anos.

O percurso académico foi imprescindível porque fomentou a minha produção artística com uma bagagem teórica, histórica e multidisciplinar que, sem ele, seria certamente menos maduro. Por outro lado, a prática e a experimentação tiram igualmente partido de um carácter mais intuitivo para que as peças estejam sempre além da linguagem. Interessa-me o equilíbrio ou o diálogo entre ambas essas realidades: por um lado, a capacidade do som (ou do vídeo) para documentar, representar, criar uma referência directa ao mundo real, que pode ser simbólica, metafórica, ou meramente ilustrativa, mas, no reverso da coisa, a igual capacidade do medium para ser ele próprio: como diziam os estruturalistas, o filme enquanto filme; ou como diziam os músicos concretos, o som enquanto som.

Na tua visão, como é que descreverias este álbum? Que sentimentos e percepções estão aqui expostos? As vozes, por exemplo, tocam-me imenso.
Sempre foi um exercício sobre o qual tive alguma hesitação em pensar, pois existem sentimentos duplos, ou contrastantes, que agora talvez me pareçam ser faces da mesma moeda. Ao início, houve uma clara frustração inerente ao facto de ter de sair do país, curiosamente sempre aliada a uma certa liberdade ou independência; uma saudade eterna em oposição a um sentimento de descoberta constante. Penso que qualquer emigrante se tenha deparado com os mesmos dilemas. Ainda assim, acredito que o caminho se faz caminhando, e parece-me um desperdício deixar ficar connosco apenas as coisas boas. Há que assimilar tudo como parte de um mesmo gesto, para que os próximos passos sejam ponderados com uma certa calma.

As vozes acabam por ter um significado poético extremamente importante para mim, pois muitas delas correspondem a pessoas que acompanharam essa jornada — algumas que ficaram, e outras cujos caminhos divergiram do meu. Um exemplo é o Rytis Kancys, um grande amigo que conheci no Luxemburgo, cuja conversa, gravada através do Messenger, deu depois origem ao mote condutor do álbum.

A descrição oficial fala um pouco sobre o processo deste “The Jar”. Poderias, ainda assim, explicar aos nossos leitores as etapas de composição por que passaste para trazer este álbum?
A maior parte do material cru que utilizei para produzir o álbum é composto por gravações diárias que fui fazendo entre 2019 e 2020, nesse primeiro ano após a minha chegada ao Luxemburgo. Durante os primeiros meses desenvolvi o hábito de levar o meu gravador de áudio para todo o lado, e ia captando tudo e mais alguma coisa, por mais mundano que fosse: conversas, caminhadas, objectos aleatórios.

Na altura, todo este material ia sendo gravado sem qualquer propósito. Foi só após mais de um ano que me apercebi que talvez pudesse criar algo com tudo o que tinha recolhido. Essa distância temporal ajudou-me a perceber que tinha de dar a volta ao arquivo de alguma forma, então comecei a “destruí-lo” por via de processos de síntese granular, de glitch, isolamento de frequências, mudanças de pitch, cortes e reverbs. Este processo, muito experimental, foi o que me permitiu afastar desse lado representativo ou ilustrativo que as gravações cruas mantinham, para desvelar finalmente as qualidades materiais e sonoras empregues na composição do álbum.

Não deixa de ter alguma piada que o álbum faça tanto recurso a conversas únicas e inesquecíveis que tive, como a coisas banais ou simples como portas de casa a bater, máquinas de lavar loiça, ou pessoas a falarem em línguas que não entendo. Interessou-me ir questionando essa oposição que fazia entre aquilo que percepcionava como extremamente emotivo e aquilo que me parecia completamente insignificante. Acho que isso traz algum humor ao trabalho.

És também um dos nomes por trás da editora audiovisual turva. Como é que tem sido essa experiência? Há planos para os próximos tempos?
Tem sido uma experiência de constante aprendizagem a cada nova edição e evento que organizamos, e penso que é isso que ambos queremos. Eu e o Luís Neto já nos conhecemos há muito tempo, mas há sempre um sentido crítico e desafiante um para com o outro, e isso para mim é fundamental. Há muito trabalho pela frente, ambos sabemos disso, e é sempre de braços abertos que recebemos os próximos desafios. Existem novas edições e eventos em desenvolvimento, mas tudo será apresentado a seu devido tempo.

Fotografias por Alina Nadolu

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