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Crónica

O dia em que Drexciya salvou Cousteau

3 Setembro, 2024 - 14:53

Um conto assinado por Neemias Prateado.

Estamos em pleno ano de 1992. Fortes correntes industriais empurram sons e frequências electrónicas para fora de um epicentro sub-aquático já decadente. Um submarino de espíritos navegantes circula pelas profundezas dos oceanos num gesto curioso e silencioso típico do fundo deste planeta. O fundo do mar é um lugar silencioso; não há Sol nem Lua, portanto as horas não contam. Lá dentro do submarino, já velho e recheado de memórias, está sentado Jacques-Yves Cousteau, um oficial-inventor da marinha Francesa, não só um dos grandes responsáveis pela exploração contemporânea dos oceanos, como pela expansão do imaginário aquático da humanidade, devido aos seus filmes. Na verdade, nem se precisa de avançar muito mais com explicações históricas já que toda essa memória está bem documentada e partilhada para quem se interessa pelo fundo do mar e, acima de tudo, pelos seus segredos mais profundos. O que aqui se conta do dia especial em que Drexciya salvou o velho explorador é apenas fruto do relato que um peixe-remo Prateado recolheu àquela profundidade.

Lá em baixo, uma leve brisa sonora começa-se a sentir. Subitamente são as frequências mais baixas da track Sea Quake que se fazem ouvir dentro do SP350 Denise — o submarino, que se encontra debaixo de água e que estremece as paredes e compartimentos, mesmo com toda aquela pressão hidrostática. Cousteau não sabe que as frequências dos Deep Sea Dwellers o encontraram ali a vaguear, perdido no território mais sagrado e musical do submundo. À primeira estranha mas ignora, não se deixa fascinar pela imprevisiblidade das profundezas; tem ideia que as conhece tão bem… Engana-se. Não tardam minutos para se deparar com 12 Nautilus, doze moluscos cefalópodes a circularem repentinamente em espiral à volta do seu submarino. Começa a agitar-se lentamente sem entender o porquê dos seus movimentos. Aqui já aceita que as frequências que o afectam talvez sejam das sereias e que este é o seu canto. Ele está encantado pela música que ouve lá do fundo do mar.

Por momentos pensa que não vai voltar, não consegue parar de dançar, precisa rapidamente de oxigénio e esqueceu-se dos Aqualungs no navio. A 400 metros de profundidade, esta é a dança mais perigosa da sua vida. O corpo é que comanda o seu submarino, mas os corpos não são comandáveis quando se dança debaixo de água. É por estes ritmos contagiantes e profundos que os Drexciyanos provaram o poder dos seus feitiços. Podia ser uma vingança deixar o velho lá em baixo pelo passado cruel que os empurrou para o fundo do mar, mas por bondade dos destinos a Depressurization começa a acontecer. James Stinson e Gerald Donald trazem o Denise do fundo do oceano, ajudando o velho já quase inconsciente a regressar ao seu barco-abrigo. Os dois, antes de abandonarem Cousteau, certificam-se de que uma Sea Snake, outro ser marítimo proveniente dos seus habitats, o encaminha para um sonho profundo até à superfície.

Já depois de acordar misteriosamente num dos compartimentos do Calipso – o seu navio – não percebe se realmente tudo aquilo foi um sonho. O corpo treme em espasmos coordenados e a visão ainda é turva. Ao clarear e acalmar-se naquele quarto, qual não é o seu espanto quando se depara com um objecto circular parecido a um disco com as indicações “Deep Sea Dweller”, da Shockwave Records, ainda encharcado na sua cabeceira junto a uma varanda. Agarra-o, olha com atenção junto da borda do Calipso. Ao tocar-lhe, o disco começou a emitir aquela música estranha. O velho assusta-se e o disco caiu ao mar. Não foi um sonho, é mesmo aquela música das profundezas.

O mito é real e ele tinha-o perdido.

Cousteau foi tão abalroado por esta experiência que nunca mais voltou a entrar dentro de águas oceânicas. O seu traumático encontro com a espécie que nasceu de grávidas mandadas ao mar durante as travessias de escravos foi antecedente da revolução sonora que ainda estava por vir. Havia noites em que, quando tomava banho em casa, conseguia ouvir os sussurros das máquinas de Drexciya através da água que o banhava. Arrepiava-se, dançava e chorava descontroladamente pois sentia um certo tremor daquela experiência mágica de 1992. Ele tinha a verdade consigo mas nunca conseguira provar; o disco tinha sido devolvido ao oceano. Poucos anos mais tarde, não tardou para se conhecer toda esta mitologia através do disco “The Quest”, que compilava vários lançamentos prévios da dupla de Detroit e que curiosamente foi lançado em Junho de 1997, no mesmo mês em que Cousteau morreu, talvez para que este segredo não se limitasse aos exploradores marítimos; algumas teorias afirmam que essa foi a razão para o aparecimento de Drexciya à superfície da Terra. Assim, só depois de o velho morrer é que a mitologia Drexciyana pôde ser conhecida.

Muitas léguas submarinas se descartam das aventuras de Cousteau, bem como a veracidade por trás de um mito aquático que o inventor dos Aqualungs fez existir. Por outro lado, uma coisa é certa: Drexciya continua a ser uma das mais importantes mitologias criadas nesta era contemporânea e perdurará intemporalmente pelas frequências da techno-electrologias que os habitantes do fundo do mar trouxeram. Este dia pode bem ter sido imaginado numa pista de dança…

Infelizmente, foi em 2002 que James Stinson acabou por viajar para uma estrela chamada “Grava 4”, abandonando fisicamente este planeta. Deixou um legado que se multiplica por projectos como Shifted Phases, The Other People Place ou Transllusion e que são profundamente dançáveis e espirituais. Já Gerald Donald passou a ser o único ponto de conexão com essa estrela. Voltou de lá com uma musicalidade infinita e uns ouvidos afinados, como se comprova na música de Arpanet ou Dopplereffekt.

Mesmo com este fim tão trágico e prematuro que Stinson sofreu, Drexciya não morreu, não foi para baixo da terra; é mais do que Underground, Drexciya é Underwater!

Crónica e imagens por Neemias Prateado. No segundo caso, criada com recurso a IA

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