Para desvendar o universo da eletrónica experimental em que se insere o artista que lançou o primeiro álbum de Draftank em 16 anos, “Cotton and Glue”, David Rodrigues foi a casa de Nuno Moita falar com o veterano por detrás da editora independente Black Hole Time Warp.
Nuno Moita carrega mais de 50 anos nas costas e viu acontecer muito do que por Portugal se fez no âmbito da eletrónica experimental. É licenciado em Marketing e Publicidade pela Universidade Autónoma, mas nunca exerceu. Enquanto artista, o patrão da Black Hole Time Warp encontrou na eletrónica experimental uma forma de genuína expressão do seu ser. Para além do trabalho enquanto Draftank, e antes mesmo da criação em tempos de pandemia da editora Black Hole Time Warp, Nuno Moita construiu também um vasto currículo de trabalho artístico colaborativo.
Juntamente com André Gonçalves, fundador da ADDAC systems, formou a dupla Gigantiq, tendo também trabalhado com artistas como Filipe Felizardo, Vítor Joaquim e Carlos Santos, entre outros. Já a solo, é o homem por detrás de projetos como Draftank, que lançou o primeiro álbum de originais em 16 anos este ano, e Quadrado em Loop, projeto que estreou pela sua Black Hole Time Warp. Num confortável mas modesto apartamento em Benfica, rodeado de discos que lhe são queridos e dos seus dois instrumentos de eleição – o leitor de CD e o laptop – Moita abre-se acerca do seu percurso musical e artístico.
Como e quando é que descobriste o som?
Bem, começou nos anos 90. Eu já gostava muito de música e já experimentava com amigos meus aquela coisa típica de começar uma banda rock. Combinávamos num estúdio aqui perto, em Benfica. Nenhum de nós tinha formação musical, mas eu tocava guitarra elétrica, tinha outro amigo meu no baixo, bateria, tínhamos também uma vocalista que depois acabou por ter um percurso incrível na música experimental improvisada. Portanto, já havia aquele impulso para criar e para fazer. Entretanto, nessa altura, conheço o Manuel Mota, e quando pensava que já tinha um universo fantástico e já sabia muitas coisas (eu ouvia muita, muita música), descubro um universo inacreditável de música mais experimental, mais improvisada, coisas que eu não conhecia, e começo pela música eletrónica por aí. Ora, eu não sendo músico e adorando a música, acabo por fazer as minhas criações sonoras. Até hoje. Já lá vão 23, 24 anos. As primeiras aparições em público foram no final dos anos 90, já a usar um computador, com o Manuel Mota e outras pessoas ligadas ao processamento ao vivo, até que fiquei mesmo só na música eletrónica.
Como era esse panorama no início da tua carreira? Recordas-te de como é que a cena de eletrónica experimental se foi desenrolando?
Sim, já havia alguns músicos cá a trabalhar com laptops nos anos 90. É uma revelação extraordinária, porque começa mesmo a haver música feita por computador portátil. E nós acabamos por estar também na vanguarda daquilo que se faz lá fora. Acompanhamos várias transformações, que começamos a fazer cá ao mesmo tempo. No caso da glitch music, por exemplo, que começa nos finais dos 90 e nos inícios dos 2000, estávamos nós a fazer cá em Portugal também essa mesma produção. Houve uma editora que fez uma série de edições e de compilações que se tornaram emblemáticas ainda hoje, que era a série “Clicks & Cuts“, em que precisamente se começa a introduzir o glitch, o erro e a manipulação na música eletrónica desta outra forma, muito nova, na altura.
Projetos como Alva Noto, a Raster-Noton, uma label histórica até hoje, começa tudo nessa altura também, a explorar esse universo sonoro. Aqui em Portugal, quem estava ligado à música eletrónica fazia também estas explorações. Já havia um circuito experimental, mas para a eletrónica em específico começou precisamente nesta altura, em paralelo e contemporânea com o que aparecia lá fora. E não era uma questão de inspiração, era absolutamente em paralelo. Eu cheguei a integrar um projeto, a Desintegração, que era um sexteto de laptops. Há um CD, editado pela SIR Records, em 2001 ou 2002, ou seja, absolutamente contemporâneo com o que saía lá fora.
Como é que descreverias a reação do público ao crescimento desse movimento?
Nós estamos sempre a falar de nichos, são sempre nichos. Em Portugal, não fugimos à regra, aliás, até acho que seja pior ainda. Ainda assim, conseguimos tocar em bastantes espaços. Na Zé dos Bois, em Lisboa, nos Maus Hábitos, no Porto (foi lá que, em 2003/2004, fizemos a apresentação do sexteto de laptops). Tínhamos um circuito onde tocar. Sempre um nicho de galerias de arte, pequenos espaços, mas sempre com possibilidade de tocar. O Passos Manuel, por exemplo, também é um espaço incrível e com abertura para o nosso tipo de música.
Como funciona o teu processo criativo?
Eu comecei por utilizar muito granuladores. Daí a referência, por exemplo, na Grain of Sound. Isto significava trabalhar o som no seu lado mais ínfimo, mais granular, é por aí que começa. Draftank surge passado pouquíssimo tempo, por exemplo, do glitch da improvisação através da manipulação de CDs, e é a primeira vez que uso algo fora do laptop. É por aí que começa, pelo trabalho do som até ao milésimo de segundo, e de a partir daí fazer composições.
Notaste diferenças no teu processo de criação desde que começaste o teu percurso até aqui?
Sim. Eu comecei a falar na questão dos “Clicks & Cuts” e das músicas lançadas pela Raster-Noton e pela Mille Plateaux, que é uma editora histórica por publicar este tipo de formatos, mas que depois também se tornou em algo muito reconhecível e, se calhar, até muito fechado em si. Portanto, estes projetos, na altura, foram integrando outros elementos, senão estás só a “repetir” o estilo. Por exemplo, se estiveres a fazer um estilo como o “reggae”, que é muito específico, é muito fácil caíres na repetição. Portanto, todos nós fomos integrando novos elementos e, nos últimos anos, começo já a utilizar beats e loops mais melódicos que se distanciam mais dessa fase anterior, cuja referência ainda de ligação é o projeto Draftank. Mas estamos sempre a falar de som, de música eletrónica, no seu espetro mais alargado.
O que é que te trouxe ao mundo das labels?
Começou na Grain of Sound, onde fazíamos edições em CD-R e em CD, o plano que começo com o André e com o João Vicente. Aí, havia a possibilidade de editar o que quiséssemos, sem sentir que estivéssemos sujeitos a qualquer outro tipo de escrutínio. Chegamos a incluir até projetos internacionais em edições e em discos. Assim, dava para expôr o trabalho de outras pessoas, e o meu próprio, sem constrangimentos, sem escrutínio. Foi isso que me levou a dar o salto para a edição, de resto.
Falando mais concretamente da Black Hole Time Warp, qual dirias que é o papel da label no panorama musical atual?
Para mim, a Black Hole Time Warp é o alargar, finalmente, de todo este universo. No caso da Grain of Sound, estava circunscrito a projetos muito mais experimentais. Na Black Hole Time Warp, esse experimentalismo mantém-se mas já consegue experimentar outro tipo de projetos, dar prioridades que não cabiam no universo da Grain of Sound. Ao fim destes anos todos, foi integrar tudo, sempre com este lado alternativo e diferente de fazer a música, mas mais abrangente que a Grain of Sound.
Que futuro vês na Black Hole Time Warp?
Eventualmente, alguns projetos podem chegar a mais pessoas e mesmo aqueles projetos mais experimentais e mais difíceis podem chegar a um universo mais alargado, coisas desconhecidas para quem só ouve techno, por exemplo, ou dubstep.
O que é que este envolvimento com a música te trouxe a nível pessoal?
Acho que foi, no fundo, a forma que encontrei mesmo para poder explanar esse lado criativo que sempre tive. Começou da forma que te falei, e ao longo destes anos todos tenho sempre conseguido estar presente. Portanto sim, no fundo foi o consolidar daquilo que eu já sentia que poderia fazer, com as várias facetas e abordagens, sempre paralelas à minha vida.
Tu tens um projeto de fotografia. Esse projeto surge de uma necessidade de encontrar alguma forma de expressão, sentes que ele colide com os outros projetos, que tem pontos de contacto?
É precisamente uma questão de pontos de contacto. Como no som, a minha fotografia é autodidata. Mas, claro, colidem, porque a fotografia que tenho feito ao longo dos anos não é “limpa”, há sempre alguma intervenção. Pega-se em algo, muitas vezes pré-existente, e distorce-se ou deforma-se de alguma maneira, quer através do glitch, das sobreposições…Quando comecei, com polaroids, já fazia sobreposições com a própria máquina. No fundo, era intervir, de forma mais ou menos expressionista, com a realidade. Há sempre a sugestão, no caso das imagens, do espaço ou da ideia, mas é sempre figurativo, tal como no som. A fotografia começa ao mesmo tempo que as minhas experiências com som, no fim dos anos 90. Quando surgiram as digitais, aderi imediatamente pela capacidade experimental.
Falaste da ferramenta das labels como uma forma de divulgar e de trazer esse experimentalismo a uma audiência maior, que agora é possível por causa da tecnologia. Mas também reparo que se mostrarmos este tipo de música mais experimental às pessoas muitas vezes prolifera a ideia, de forma errada ou não, de que é um tipo de música construído para ser ouvido por pessoas que estão dentro daquilo. Sentes, por exemplo, que é necessário alargar cada vez mais o espetro de ouvintes ou sentes que realmente o nicho funciona mais por as pessoas se inserirem nele e, uma vez inseridas nesse meio, explorarem essas coisas?
É complicado porque não há uma música fácil, no sentido de ser melódica, ter as harmonias todas certas, portanto, logo aí, já estás a reduzir esse universo de pessoas. Porque a história da música mostra-nos que não é por aí que passa o sucesso ou a grande audição. Mas para um público que tenha interesse em ir mais longe e em conhecer até onde é que pode ir a música ou o som, será sempre válido. Agora que é difícil de chegar às pessoas, é. Não acho que seja só uma coisa para o meio e que se feche pelas pessoas do meio, isso não. Porque foram sempre surgindo pessoas ao longo dos anos que vão agarrando também o movimento e vão entrando, com produção ou não: podem nunca chegar a produzir e ouvir só. Mas não gostava de acreditar que fosse uma coisa para fechar num meio e fosse só para as pessoas que praticam. Há aquela velha questão de, e agora não tem nada a ver com a música, mas, por exemplo, o Ano do Surf: há pessoas que dizem “eu gosto muito de ver surf, mas não faço”. E depois convencionou-se aquela ideia de “epá, isso não é coisa para um gajo estar só ali a ver como espetáculo, é giro é tu fazeres”. E não, tudo é válido, não é? Eu posso adorar surf e não ter que o fazer. E isso pode surgir também com a música e o som.
E tu dirias que isso ao longo do tempo tem vindo a verificar-se cada vez mais? Ou seja, uma coisa que se calhar era mais fechada no seu início, com o passar dos anos, tem cada vez mais uma audiência de pessoas que vêm de fora?
Não claramente. Acho que as coisas estão a avançar sempre muito devagar, até pela própria dificuldade da questão em si – do tipo de som, do tipo de música. Hoje há uma capacidade gigantesca de fazer chegar os projetos, sim, e quero acreditar que daqui a uns anos será ainda melhor, mas não há um crescimento maciço de ouvintes. Acho é que pode haver possibilidade de isso ir um bocadinho mais rápido porque hoje tu consegues chegar às pessoas de uma maneira muito mais fácil; é preciso é que haja interesse.
Achas que há algo a ser feito nesse sentido?
Sim, passa muito pela divulgação, por se dar a ouvir e, portanto, pode haver essa possibilidade de, daqui por mais uns anos, crescer mais um pouco este movimento, sim. Porque hoje temos essas ferramentas que não tínhamos há uma data de anos atrás, não é? Mas também era preciso que, depois, outros meios também dessem esse passo. E agora não falo só da música mais experimental eletrónica, mas do que se passa, por exemplo, com a televisão. Tu vês os programas de música que passam na televisão e mesmo uma coisa que seja jazz ou rock alternativo ou outro estilo que seja um bocadinho mais “fora do normal” ou do mainstream, também não tem tanta visibilidade. Se essas músicas podem ser mais acessíveis ao público e mesmo assim não têm divulgação, imagina quando entramos num campo ainda mais experimental.
Desde os primórdios da existência dos (primeiros) meios que permitem o fabrico e a divulgação da música eletronica experimental até agora, houve um passo gigantesco a nível das ferramentas que existem e estão disponíveis. Como achas que isso impactou quer a nível de audiências e receção dessa música, quer a nível de produção? Quais são as diferenças que notas entre, por exemplo, o que é que era fazer Draftank há 20 anos e agora esta última produção? Sentes que as coisas mudaram?
Sim. Em termos de produção, tu hoje tens mais e mais ferramentas para o fazer. Mas também já tinhas nessa altura. Na questão da produção, vão mudando mais este software, mais aquele aparelho, cada vez mais sofisticado, com cada vez mais capacidade, mas já tinhas bastante opção nessa altura. O que mudou radicalmente foram os canais de divulgação e, mais uma vez, voltamos à coisa de que tem de partir sempre das pessoas para procurar e quem divulga ter um interesse em divulgar. Porque na Internet tens tudo: hoje, temos acesso à informação – agora já não falando só da música -, rapidamente chegas à informação com um clique, mas, se não tiveres um interesse em aprofundar, vais ficar sempre só ali pela rama, não é? Portanto, se quiseres, tens mesmo de aprofundar e conhecer. É um mundo gigantesco que tens ali à mão, mas tem de partir das pessoas. E quem divulga faz um papel importantíssimo porque, pelo menos, já está lá e, se houver interesse, as pessoas podem ir procurando. Às vezes, pode é não se saber ainda porque os canais de divulgação são um processo complicado: passámos da dificuldade que havia realmente em divulgar para um excesso enorme no qual temos acesso a tudo. O problema agora é: como filtrar? Passa pelas pessoas.
Tu já andas nisto há algum tempo. Sentes que o processo ao longo dos anos foi também um processo de aprendizagem?
Sim, claro! Ainda há pouco falamos de sons que estavam a começar, portanto nesse sentido sinto que sim, é uma aprendizagem contínua.
Que coisas importantes assimilaste e gostarias de saber quando começaste a produzir?
Há muitas outras coisas, mas vou cingir-me à música eletrónica. No caso específico do final dos anos 90/início de 2000, já destaquei aqui duas labels, da Raster-Noton, que é absolutamente inovadora, da Mille Plateaux, também. Sobretudo, foi isso, foi um universo que se criou ali. Mas aqui estou a cingir-me só também à questão da nova sonoridade eletrónica que surgiu naquela altura; há outras que não têm a ver com o lado experimental. No final dos anos 90, começam a aparecer uma série de transformações, por exemplo, tens o caso do jungle. É um estilo completamente novo que surge nos anos 90.
O que é que gostarias de passar a alguém que esteja a começar ouvir ou a produzir, dentro da música eletrónica? Algo que foste aprendendo ao longo dos anos de produção e que agora tens bem presente.
Posso falar da minha forma de trabalhar. Para muitas pessoas, determinadas músicas são arte sonora, e não música. Para mim, é música. Isto tem a ver com o conceito que tens de música. Tem de ter notas? Tem de ter harmonias? Para mim, só tem de ter som.
Sentes que essa divisão que se faz entre “arte sonora” e música é nociva?
Sim. Para mim, os field recordings são uma forma de música. O John Cage dizia que quando queria ouvir música, abria a janela. Ou seja, o som ambiente, para ele, era música. Para alguns, a música é uma construção sonora. Para mim, é tudo.
Sentes que o público, no geral, começou a abraçar este conceito mais holístico de música?
Acho que é um processo muito lento, mas talvez já não seja tão estranho para muitas pessoas, agora que se começa a reproduzir na internet.
Quais são as tuas referências musicais?
Eu tenho imensas que não têm nada a ver com música eletrónica. Gosto de rock, por exemplo, mas tem de ter algo de desviante, prefiro rock alternativo ao chamado “rock clássico”. Eu gosto de todo o espectro de free jazz, por exemplo, e nem toda a gente acha isso interessante. O Miles Davis, por exemplo, que é uma das minhas maiores referências de jazz, é um experimentador nato, e mesmo quando já era conceituado foi altamente criticado quando começou a experimentar com jazz de fusão, por exemplo, e muita gente disse “isto já não é jazz”. É mais uma dimensão que se abre ali, para mim.
Há uma espécie de antagonismo entre realidade e concepção das pessoas de que a música experimental tem muito a ver com novas experiências em som, tentar o que ainda não foi feito. Contudo, também vigora o preconceito de que a música experimental é um meio muito elitista, muito autocentrado. O que é que achas deste antagonismo, e como é que achas que se podia desconstruí-lo, ou porque é que achas que ele existe?
Primeiramente, a questão é simples. Quando ouves estas coisas pela primeira vez, soa-te sempre muito estranho. Foi o que me aconteceu a mim, no final dos anos 90. Claro que, depois, tens de escolher uma de duas opções. Ou descobres mais sobre o assunto, ou continuas a ouvir a música que aparece na rádio. Claro que agora há playlists e mais outras coisas, mas no fundo é aquilo que a televisão, que a rádio te querem passar, versus aquilo que os artistas metem na internet e no mundo. Se reparares, nas artes plásticas aconteceu o mesmo. Aquilo era um mundo de perfeição, tudo muito direitinho, durante imenso tempo, até que te mostram, nas artes plásticas, coisas que não são reproduções fiéis da realidade. Claro que, com isto, surgem aquelas pessoas do “isto não é arte, isto não é pintura, isto não é fotografia”. E é um bocado isso.
Viveste maioritariamente em Lisboa. Sentes que o papel das grandes cidades como centros de divulgação cultural ajudou a formar-te enquanto artista?
Ajudou, claro. É muito mais difícil para quem não está nas grandes cidades, porque mesmo se nas grandes cidades estamos a falar de um nicho, imagina no interior! Aqui [Lisboa], tens um núcleo de atividade constante, no Porto e em Braga também, no Barreiro… Mas há sempre este processo complicado de assimilar e divulgar o teu trabalho. Numa pequena vila ou cidade, ainda estás mais sozinho.
Há cada vez mais artistas de meios menos citadinos a serem reconhecidos nas grandes cidades, e isso acaba também por vezes por abrir portas nos próprios meios de onde essas pessoas surgem para investirem mais na cultura, para aceitar coisas em formatos mais experimentais. Como é que vês esta expansão paradigmática?
Com muita alegria, claro. Tenho é pena que não seja um fenómeno ainda mais generalizado.
Que passos é que achas que podem ser tomados para que esta abertura gradual por parte dos meios mais “institucionais” prolifere?
Começa precisamente com as tais pessoas que, isoladamente, foram fazendo. Porque essas pessoas, que fizeram porque sentiram que fazia todo o sentido, começam a ter mais forma de divulgar, de fazer chegar às pessoas. Então, aquilo que é absolutamente alien começa aos poucos e poucos, no processo moroso de que te tinha falado, a ser menos estranho, mais familiar. E, goste-se ou não, porque as pessoas têm todo o direito a gostar ou não gostar, a verdade é que fazê-lo se torna possível, e vai havendo mais pessoas a gostar, mesmo sendo um processo lento e moroso.
Portugal tem uma cultura de festivais bastante forte. No entanto, e isto foi posto a nu pelo acentuamento pandémico da precariedade no setor cultural, parece haver uma dificuldade institucional, e mesmo social, em valorizar a cultura. Há aquela ideia enraízada de é muito difícil fazer vida da arte. Queria saber como é que vês este “estereótipo”, e se achas que pode vir a mudar?
É complicado e, mais uma vez, há-de ser sempre uma coisa muito lenta enquanto as pessoas não perceberem que não é suposto ser um hobby, que a arte é algo absolutamente importante. Acho que é inegável, isso. Senão, estaríamos aqui numa rotina casa-trabalho trabalho-casa, e se calhar íamos à praia, mas o ser humano vai muito mais para além disso. Mas quando tu tens, historicamente, um desinvestimento total na cultura, essa ideia do hobby acaba por prevalecer, e mesmo quem poderia dar mais apoio e incentivos maiores, acaba por não dar. Nós andamos há muitos anos a lutar pelo 1% do OE para a cultura. Eu acho isto absolutamente inacreditável, mesmo ridículo. A expressão artística no ser humano é inegável, já se percebeu que as pessoas usufruem (museus cheios, festivais esgotados…), que recorrem, ou seja, percebe-se que a cultura não é uma coisa descartável. Por isso, é lamentável quando quem dirige, quem tem forma de incentivar e de educar as pessoas pela cultura, também não o faz. É tratado como algo paralelo, algo secundário por quem, quando precisa, também lá está para usufruir.
E num acontecimento como a pandemia, onde o acesso à cultura é condicionado, o setor cultural, que já era frágil, ficou ainda mais debilitado. Achas que, por ser algo que já era desvalorizado antes da pandemia, este súbito desaparecimento temporário da cultura vá abrir os olhos de mais pessoas para o futuro?
Duvido. Infelizmente duvido, porque este é um processo longo de educação, e não vai ser uma pandemia no espaço de um ano que vai educar as pessoas. Também já não acreditava quando começou a pandemia, e houve aqueles primeiros comentários das pessoas, do tipo “Ok, isto até pode ser importante” ou “O planeta está em healing”, “vamos aprender todos com isto”… infelizmente não, porque é um processo longo e de educação. Começa tudo na educação e na valorização do que é importante. E só o teres uma situação onde as pessoas estão “com uma arma apontada à cabeça” não me faz acreditar que mude grande coisa. E, mais uma vez, quem vem de cima também não fez nada de novo. Não vemos nada de novo para a realidade absolutamente extraordinária que vivemos hoje em dia. Não acredito nessa predisposição de que vamos mudar todos com isto. Acho que, se em termos de incentivos e de educação nada mudar, vai haver um “velho normal”, não um “novo normal”.
Tu já estiveste envolvido em vários projetos editoriais. Primeiro na Grain of Sound, que foi criada em circunstâncias ditas “normais”, e depois na Black Hole Time Warp, que surgiu nesta situação excecional de pandemia. Que diferenças é que notaste na forma como lidaste com os dois projetos, em circunstâncias tão distintas?
Foi desafiante e para mim fez todo o sentido. Até porque, na Black Hole Time Warp, eu faço tudo sozinho, sou eu que decido quando editar, o que editar… ou seja, o estar confinado até foi a situação mais livre para fazer algo assim. Depois, também, claro, a questão de querer alargar o espectro de edições que não só produzia como editava com a Grain of Sound. Ou seja, aqui, a pandemia talvez tenha acelerado o processo de criação de algo que ia acontecer de qualquer das formas, mais cedo ou mais tarde – a Black Hole Time Warp. O que é curioso, porque estás a acelerar e a divulgar algo que difícilmente tem exposição ao vivo, pelo menos agora. Mas a ideia é mesmo reunir condições para que, quando isso for possível, essa exposição ao vivo, o contacto com as pessoas, venha a acontecer.
Tanto o teu trabalho enquanto bancário como a tua formação em marketing e publicidade são áreas muito distintas daquela que é a tua atividade artística. Sentes que as componentes artísticas e as profissionais/formais estão interligadas na tua vida, ou é mais uma “outra face”?
O meu percurso artístico não tem nenhuma relação com o profissional. E, para mim, pessoalmente, o mais importante é o percurso artístico. O problema é que esse não paga as contas. Mas realmente não encontro nenhuma ligação, é curioso.
Imaginas a possibilidade de viver da música?
Acho que já não vou assistir a esta transformação, até porque estamos a falar de música mais experimental e “diferente”, que é uma dificuldade acrescida. Mas, mesmo nos projetos mais acessíveis no sentido de chegarem mais fácilmente às pessoas, contam-se pelos dedos os músicos em Portugal que vivem exclusivamente da música. Ou seja, se no mainstream o cenário é esse, no alternativo mais duro será. É uma coisa meio pessimista de estar a dizer, mas acho que já não vou assistir a essa transformação. Em Portugal muito menos.
Mas sentes que há passos a serem tomados para tornar essa realidade possível?
Sim, estou há 25 anos a dar passos. Mas são passos pequeninos. Agora, acho que parar, deixar de fazer as coisas, isso não, porque aí morre mesmo. Até porque se alguém faz alguma coisa, fá-lo porque tem uma necessidade intrínseca de o fazer. Depois se tem público, etc…isso é secundário. O que acontece é que tens que o fazer. Se sentes, se acreditas, tens de o fazer. Parar seria um deserto de ideias terrível, seria deixar alguém decidir por ti, isso não. As transformações artísticas que aconteceram ao longo da humanidade não foram decididas por executivos, os executivos estão lá para pôr a indústria a funcionar.
Quais são alguns projetos que te fascinem que tenhas descoberto recentemente?
Os Autechre continuam a dar cartas, e aqui digo recentemente porque foi o ano passado que lançaram coisas novas, absolutamente frescas e inovadoras. Outro que continua muito bem e que começou há 30 anos é o Oval, que introduziu o glitch nos anos 90 mas que continua a fazer coisas. Alva Noto, outro que continuo a ouvir. Fora da eletrónica, o Mats Gustafsson, que é um saxofonista incrível, e o MF DOOM, que morreu há pouco tempo e que acho um tipo genial naquilo que fez.
O lançamento de “Cotton and Glue” foi o primeiro original de Draftank a ser lançado em 16 anos. O que é que te fez parar e recomeçar após este tempo todo, e como é que começou Draftank?
Draftank começou com as experimentações que eu fazia no final dos anos 90 e nos inícios de 2000, e surgiu da minha vontade de ter uma abordagem diferente ao que fazia no computador. Na altura, eu praticamente só usava o computador, e ali tinha uma manipulação direta e “instrumental” quase sobre o CD. Ou seja, Draftank foi introduzir a manipulação do som ao milésimo de segundo para criar novos universos em tempo real. Depois, fui fazendo outras coisas em paralelo, com o computador, em que o glitch estava sempre integrado e, passados estes anos, como comecei a utilizar beats e loops mais melódicos nas músicas, o tal alargamento do espectro de que falei antes na música eletrónica, não querendo perder a “origem”, onde tudo começou, voltei a usar Draftank. Porque, para mim, reanimar Draftank foi o fechar de um ciclo, e foi acima de tudo voltar a utilizar técnicas antigas em contraste com todas as novas coisas que aprendi entretanto, testando sempre a origem em paralelo. O método, ali, é o mesmo que há 16 anos. Nesses temas, há elementos que não são rítmicos nem melódicos, ao contrário das outras coisas que eu agora faço. Por isso é que podem soar meio abstratos, mas têm todo um universo lá dentro.
Tens imenso trabalho colaborativo no teu currículo, ao lado de nomes como Filipe Felizardo, Vítor Joaquim, André Gonçalves, entre outros. O que é que sentes que esse trabalho com outras pessoas trouxe à tua forma de ver a música?
É importantíssimo, porque aí é que estás a trabalhar em tempo real. A maior parte das coisas que fui produzindo ao longo do tempo eram voltadas para a pós-produção. Ali, tu estás em improvisação pura, estás a usar o teu domínio de improvisação e aquilo de que gostas, e a conjugá-lo com as componentes externas. Dás e também retiras.
Fotografias por David Rodrigues
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