AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Elétrico: mais do que um regresso à música, um regresso à vida

13 Agosto, 2021 - 12:26

Durante dois dias, estivemos num sonho tornado realidade chamado Elétrico.

Arrepiante. É muito difícil escolher outra palavra para descrever aquilo que se passou na solarenga Casa Tait senão esta. E repetimos: arrepiante.

Perto dos jardins do Palácio de Cristal, no Porto, o espaço desta edição de festival Elétrico serviu de refúgio para mais de duas centenas de corpos que almejavam um regresso à normalidade. Normalidade na música, no convívio, na dança. E foi mesmo isso que se sentiu neste evento que aconteceu no fim de semana passado: mesmo com regras e com staff da iniciativa Warm Up a garantir o cumprimento dessas, a pandemia que atravessamos ficou esquecida durante dois dias.

Afinal, não era para menos: fosse pela apresentação de certificado de vacinação ou teste negativo, ou até pela realização de teste à porta, havia um sentimento de segurança dentro do recinto. Só por aí, havia já uma garantia de que poderíamos dançar em segurança no vasto espaço, este dividido por quadrados (ou mantas, aliás).

Cada pessoa podia levantar um máximo de dois bilhetes e as filas que se formaram na bilheteira mostravam as saudades que aquele mar de gente sentia. As janelas da bilheteira abriam à 13h30, mas quem chegasse pelo 12h já não conseguia garantir entrada. Foi assim no sábado e no domingo.

Foi mesmo por isso, aliás, que vi a minha companhia a ficar para trás em ambos os dias. E foi também por isso que no sábado só entrei por volta das 17h, já o evento havia arrancado há duas horas, uma vez que acabei por ficar a almoçar nas redondezas. Entretanto, chegado à tenda de testagem, esperei menos do que 20 minutos para ter o resultado – menos de cinco para ser testado, 15 para saber o veredicto.

À exceção das filas para o levantamento de bilhetes, nunca se formaram outras filas – fosse na casa de banho, no bar ou até na deliciosa rulote Pé na Horta. O recinto era espaçoso, bem organizado, e sempre com obrigações previamente definidas como, por exemplo, circular pela direita.

Entrei rapidamente e sem qualquer problema na Casa Tait, onde perto da entrada se encontrava o palco designado como “Área Energia” – circundado por árvores, era um palco altamente convidativo, mesmo sendo mais pequeno do que a principal “Área Elétrico”. Pés descalços dançavam de um lado para o outro ao ritmo de Zero_one, que envolvia os presentes por entre um electro feito a partir de Elektrons ou um SH-101, uma autêntica festa que já fazia prever a euforia que acabaria por se sentir pelo dia adentro.

Ao lado da sua banda, Klin Klop estava na “Área Elétrico” a apresentar um concerto que passa por influências como downtempo, mas acima de tudo sempre festivas. Infelizmente, não apanhei muito deste espetáculo – pelo menos ouvi um pouco, ao contrário das atuações que perdi de Pedro e João Tenreiro, Maria Callapez e Valody – pois Zero_one agarrou-me mais tempo do que previa. Fui ao bar, voltei a subir até à “Área Energia” e pelas 18h começou uma tríade imperdível.

Esta área era altamente reconfortante, não só pelo espaço mas também pelas pessoas. Ainda por cima, durante todo este Elétrico, o regresso à normalidade foi também um regresso às caras que não víamos há muito tempo ou até às caras que a pandemia aproximou via internet.
Por isso mesmo, passou tudo a correr: por entre o techno profundo de Amulador, os discos repletos de texturas de André Cascais ou a pujança de Tiago Carvalho, dançávamos em harmonia enquanto matávamos saudades dos amigos com que tantas vezes dançamos pelos clubes da cidade. Ali, o clube era aquele magnífico palco que, à medida que as horas passavam, remetia-nos cada vez mais para as festas de que tanto temos saudades.

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A energia desse palco era tão viciante que não apanhei Xinobi nem Rui Trintaeum b2b João Azevedo. Ainda assim, só havia um bar e era localizado no palco principal, por isso acabei por ouvir alguns minutos de ambos esses atos. No caso do primeiro, ouvi a voz de Selma Uamusse na apaixonante Ngoma Nwana, de Moullinex; no back-to-back, o lado mais melódico do house e techno fazia vibrar todos os presentes – qual normalidade pré-pandémica.

No domingo, voltei a entrar sozinho, mas desta feita encontrei ainda mais conhecidos no festival. O problema disso é que me tira a atenção da música – a vontade de matar saudades e confraternizar ao som de bons DJs nacionais leva-nos até um contexto que já não sentimos há imenso tempo, abstraindo-nos do mundo e focando-nos antes na partilha de alegria e amor outrora sentida.

Ainda assim, destaque para Serginho, que sabe usar uma slot de duas horas na perfeição para nos levar por entre vários discos de diferentes sonoridades – de house a drum’n’bass (ou jungle, desculpem). Neste dia só iria até ao segundo e íntimo palco ao final da tarde – até lá, o sol, a música e as pessoas não deixavam fugir da “Área Elétrico”.

No set de Gusta-vo, que a certo momento derreteu corações com uma criança ao colo (possivelmente a sua filha), aquelas centenas vibraram, gritaram e ficaram em êxtase com o rave mix de Let Me, de Asquith, uma faixa cuja percussão e synths nos remetem para os 90 ou, melhor ainda, para aquelas raves de que tanto sentimos falta. Música, tempo, pessoas: estava tudo no ponto.

Para mim, sucederam-se dois live acts, cada qual viciante e envolvente à sua maneira. Primeiro, na “Área Elétrico”, o incontornável Alex FX regressou aos palcos com uma hora de música espacial que teve como partida um lado mais downtempo e como destino um lado mais acelerado, mas com tal coesão que foi possivelmente um dos momentos mais sérios de todo o festival. De seguida, dois nomes da brilhante No, She Doesn’t levaram-nos por uma festa bem ao estilo do coletivo que passou por temas como Ride Fast, de DJ Legwarmer. Numa palavra, estes dois atos foram brilhantes.

João Semedo passou depois para o palco dessa área, mas fui até Rui Vargas, que ficou responsável por fechar a “Área Elétrico” após Diana Oliveira – que, diga-se, passou por faixas como a sua Stuck In My Head. Aí, o veterano residente do Lux Frágil mostrou por que razão é o nome ideal para fechos, tal como o provou em 2019: sabe fazer dançar com ecleticismo escolhido a dedo.

A certa altura, os sintetizadores de Tout Petit La Planète, de Mono Han, faziam pensar que o Elétrico se aproximava do fim, mas ainda havia tempo para mais. Para a última música, Rui Vargas reservou Together In Electric Dreams, dos clássicos Philip Oakey e Giorgio Moroder, e a mensagem era clara: mesmo com a distância provocada por uma pandemia, vamos sempre estar juntos, nem que apenas em sonhos. E o sonho, neste caso, foi o Elétrico.

“A cultura é segura, a cultura é saúde”, disse ao Porto Canal a organização, que à A Cabine explicou como é altamente gratificante ver a materialização do trabalho desenvolvido nos bastidores durante estes tempos de incerteza.

E o quão bom foi viver os nossos sonhos de um regresso à normalidade durante aqueles dois dias. Tão bom que nos dias seguintes ainda estávamos a sonhar com o festival – não na Casa Tait, mas no escritório.

Fotografias por Jorge Nicolau

Correção: a música Together In Electric Dreams não é de Human League, como a peça original referia.

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