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O importante Impulso que pompeou as Caldas da Rainha e a música nacional

2 Julho, 2022 - 11:50

Há uma semana estávamos pelas Caldas da Rainha para nos embrenharmos no Festival Impulso. Agora, as palavras de Leonardo Pereira e as fotografias por xipipa ajudam-nos a relembrar tudo.

Depois de uma iteração em formato adaptado, de forma a manter o ritmo da organização enquanto não havia a possibilidade de um festival mais “tradicional”, o Festival Impulso retornou ao seu formato mais conhecido no idílico Parque D. Carlos I, mesmo no centro das Caldas da Rainha.

Num lugar tão bem tratado, com o céu virtualmente tapado pelas ramas das árvores e com a companhia dos conhecidos cisnes, lagos e pavões, era difícil não nos sentirmos bem-vindos, especialmente sabendo que iríamos estar rodeados de música ao vivo e ao ar livre, algo cuja ausência tem sido sentida. Ao contrário da previsão meteorológica, chegámos às Caldas da Rainha e raiava o sol. Poucas nuvens no céu e uma brisa agradável serviam uma previsão diferente da esperada pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera: um belo início do Festival Impulso.

Nessa quinta-feira, dia 23, tal como nos seguintes dias do festival, o Festival começa no Centro Cultural e de Congressos, com a primeira Sessão Doclisboa X Impulso a decorrer com a mostra do documentário “Chelas Nha Kau”, sobre o grupo Bataclan 1950, que, após a exibição, teve presença numa conversa com a Bagabaga Studios sobre esse esforço de documentar a juventude num bairro de habitação social em Chelas.

No Grande Auditório, pouco depois desse diálogo, entram em palco os MEDUSA Unit, um ensemble que continua o projeto a solo de Ricardo Jacinto nascido em 2014, denominado até esta versão banda apenas de MEDUSA. A formação é variável, mas no Impulso os instrumentos titulares foram uma harpa, um piano, uma bateria, um vibrafone, um xilofone, um violoncelo, um contrabaixo e dois trompetes, que trabalharam em conjunto com paisagens sonoras ruidosas flutuantes, compondo tramas musicais lentamente, integrando sempre os panoramas sónicos glitchados e dando também espaço a qualquer um dos músicos para carregar uma certa parte da história. O sentimento com que se fica é que nos está a ser contada uma história através de música, com momentos de ação e de descrição bem separados, tanto embalando como entusiasmando a audiência à sua própria velocidade. Recomendado acompanharem, experimentarem a viagem, e verem um concerto (ou dois, ou mais) deste projeto.

Seguimos para o Parque D. Carlos I para a abertura do Palco Grêmio by Seat Mó, onde estão os três rapazes que vieram representar o coletivo Bataclan 1950 de Chelas. Com um single apresentado, Chelas City, no qual já agregam quase dois milhões de visualizações no Youtube, o trio não tem medo do palco e atrás de beats pesados, cospem flows com vozes fortes e com o coração nas letras. A promessa está-se a concretizar e, pelo menos pessoalmente, ficarei à espera ansiosamente por mais música dos Bataclan.

Uns atrasos logo no início do dia, que infelizmente se propagaram durante outros momentos do festival, significaram que o primeiro concerto dos Rally Fantasia só começou no final da tarde – o que acabou por ser bastante adequado ao artpop com letras em português do duo de Henrique Sá e de Cátia Sá, cuja voz melosa e amorosa preencheu o palco acompanhada de um ambiente quase teatral levantado pelos instrumentais eletrónicos.

Entre pequenas caminhadas no Parque para esticar as pernas e aproveitar para comer um gelado, voltamos ao Palco Grêmio para ouvir o live set de Lelie Amens, talento das Caldas da Rainha proveniente da Costa Vicentina. João Amélio ofereceu os primeiros toques de música de dança eletrónica num set construído progressivamente com texturas de techno, acid, industrial e electro. A dar o tom para umas das coisas que o festival sabe fazer tão bem – oferecer a banda sonora para o pé de dança.

Depois de um pequeno DJ set de Lima Estrela, que inaugurava o palco principal todos os dias, apresentou-se o projeto 5ª Punkada com a companhia de Surma, Victor Torpedo e Rui Gaspar — e se puder deixar uma pequena nota para vos aconselhar a irem conhecer e ouvir este projeto da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, que lançou agora o seu primeiro disco através da editora leiriense Omnichord Records, fica aqui este pequeno parágrafo como esse conselho. Há momentos que transcendem qualquer possibilidade de escrita, e iria desmerecer todos os integrantes dos 5ª Punkada – a Fátima Pinho, o Fausto Sousa, o Jorge Maleiro, o Miguel Duarte e o Paulo Jacob, se escrevesse sobre a força e o poder que um espetáculo deles tem. Puro Rock ‘n’ Roll!

Com os madrilenos VVV [Trippin’ You], ficou a sensação de que a influência dos anos 70 ainda está bem viva e de boa saúde. Um shoegaze eletrónico ribombante, servindo de base para vocais que relembravam pop punk e emo, conquistou o público, que não ficou saciado de dançar com Lelie Amens. Duas guitarras, um sintetizador, uma drum machine que lançava uma variedade de ritmos percussivos, às vezes a roçar o gabber, e uma voz claramente com algo a dizer, o som dos VVV é emocionalmente poderoso e carrega consigo uma parede de som instrumental incansável.

Dar também uma pequena nota para o parque temático musical do Conjunto Corona, que simplesmente não se cansam de divertir em palco nem de serem exímios a divertirem o seu público, que teve direito a hidromel, como de costume, mas desta vez servido por Hélio Imaginário, estrela do clássico vídeo viral que fez 10 anos em 2021, natural das Caldas da Rainha.

O concerto do Conjunto Corona, apesar dos seus momentos mais intensivos, serviu também para descansar um pouco do caos de VVV, antes de o último nome da noite entrar em palco, que também iria criar caos, num jeito um pouco diferente. Scúru Fitchadu, projeto de Marcus Veiga, é descrito pelo próprio como “afrofuturistic punk aesthetic bass”, e consegue realizar todas as partes dessa descrição. Festa rija, como Rui Castro previu, foi o que nos chegou. A banda instaura a sua presença muito rapidamente, estabelecendo-se em palco com pujança, providenciando uma massagem de graves com ritmos acelerados ao lado de um sintetizador que rosna sem parar. A voz gutural de Marcus Veiga impele ao movimento corporal sem tréguas, e o público responde mais que adequadamente. A noite acabou de começar e já vamos com andamento.

No Clubbing, depois de um shuttle até à zona industrial, a noite é inaugurada por Devanee, que eleva os BPMs até 160 e não tira o pé do pedal com techno, EBM e até uns traços de trance. O armazém da Transwhite começa a encher e faço a minha saída, que há que ter pernas para os dois dias seguintes e tanto sexta como sábado serão dias preenchidos, com concertos que valerão a pena ver com mais energia, não retirando, no entanto, valor nenhum a Dakoi, TAAHLIAH e BLEID, que com certeza terão entretido os clubbers do Impulso até a manhã raiar.

Começamos sexta-feira com as pernas (maioritariamente) descansadas e retornamos ao Centro Cultural e de Congressos para um concerto que todos deviam ver pelo menos uma vez. Clothilde é um projeto da lisboeta Sofia Mestre em que a artista compõe ambientes musicais e paisagens sonoras a partir de máquinas e módulos personalizados para o processamento e a síntese de áudio. Constrói um roteiro de viagem com a sua música e imerge o público num mar de texturas sónicas que dão o pano de fundo para todas as interpretações pessoas possíveis dessa mesma viagem. Um thriller intenso? Um documentário tecnológico? Uma tempestade dentro de electrónicos? O drone e o glitch, tal como o erro, soam humanos e naturais nas mãos de Clothilde. Transcendental.

Depois de 45 minutos em que ficamos a querer repetir a experiência que Clothilde providenciou, seguimos para o Parque D. Carlos I onde, depois de um concerto bem quentinho de Metamito e do seu dreampop, estão os Hidden Horse a tocar. A dupla dos fundadores de Beautify Junkyards e Hipnótica lançou recentemente o seu primeiro esforço através da editora Holuzam e apresentam-se ao vivo com mais um membro que roda vinis de samples vocais médico-clínicas ou de narrativas académicas, integrando estas mensagens crípticas ou de tutorial na estrada rítmica criada pela percussão de Tony Watts e pelos samplers e sintetizadores de João Kyron. O envolvente é escuro e o timbre é severo, mas as melodias são calmas e fazem lembrar música ambient. Não querendo retirar valor a qualquer um dos grupos, os Hidden Horse fazem lembrar a criatividade e a profundidade de HHY & The Macumbas.

Nesta sexta-feira, que contou com os dois primeiros cancelamentos do festival (os NAH não puderam estar presentes e Tomasa del Real também não se pode apresentar) não conseguimos estar presentes em Chima Hiro, mas conseguimos ver um pouco de Mão Morta, que nunca desapontam. Ficámos por perto e com ânsia de ver Puta da Silva, que mistura funk, punk, pop, MPB e rap, integra também uma performance que nos capta desde o início. Acompanhada de duas guitarras, um saxofone, DJ a fazer scratch, uma bateria e um dançarino com 2 espadas, Puta da Silva atrai a nossa atenção sem interrupções e enche o palco principal com vocais fortíssimos, começando a sua performance de véu e toda de preto, retirando-se e avivando-se de cor no início da segunda música do concerto, vociferando rock, rap e até baladas no meio de 808s potentes e instrumentais, tanto harmoniosos como agressivos. A mensagem é de liberação, de empoderamento e de elevação da comunidade LGBTQIAP+ — e ficou bem entregue.

A substituir Tomasa del Real, o último nome do Palco Principal, houve uma pequena troca nos horários e Merca Bae, produtor e DJ, apresenta-se no Parque D. Carlos I ao invés de no Palco Clubbing na zona industrial das Caldas da Rainha. O reggaeton e o perreo são os personagens principais, com o dub e o baile funk a serem bons acompanhantes, e tomam conta do público. O comandante da dança madrileno é claramente experienciado nestas artes e sabe usar todas as ferramentas à sua disposição para ordenar a sua audiência a dançar – vocais catalães pitched down, graves perfurantes, sempre dentro da ideologia dos novos ritmos quentes sul americanos que estão a tomar o mundo de assalto (e Merca Bae que o diga – esteve em Portugal há apenas duas semanas a ser DJ para Bad Gyal no Primavera Sound).

Repensando a decisão de ir para casa mesmo quando o Clubbing estava a acordar no primeiro dia, acho que foi a acertada, porque nesta sexta-feira havia mesmo muito para aproveitar no palco Clubbing. A noite neste palco começou com um live set de Moss Kissing, em que o produtor radicado em Lisboa edifica panoramas intensos de música eletrónica que incluem acid, techno e até EBM enleados com os vocais gritantes do auto-descrito “Scott Walker com breakbeats”. Abre-se então o armazém da Transwhite com uma intensidade absurda e indiscutível. E a intensidade manteve-se logo a seguir com os 7777 の天使, duo português formado por Swan Palace e DRVGジラ, onde os vocais quase screamo não se escondem nem ficam atrás de um espetáculo de luzes e de uma parede sonora intransponível em jeito de gabber, hardcore e industrial. Ninguém descansa, ninguém pisca os olhos.

A fechar o clubbing, a noite encontrou o seu fim com um bocadinho de descanso na intensidade com Acid Alice, que ofereceu techno e breaks num nível menos elevado de BPMs, retirando-nos um pouco do turbilhão sonoro que tinham sido os 7777 の天使 e Moss Kissing. Exaustos e esbaforidos, mas satisfeitos e saciados, entramos num shuttle de regresso ao centro da cidade, onde o público se une todo à volta dos hinos icónicos que passam na Rádio Comercial ou na M80 às 6h, e até há um coro a ecoar as colunas do autocarro a cantar Bring Me To Life, dos Evanescence. Momentos bonitos em todo o lado, mesmo nos momentos mais inusitados.

No terceiro dia os concertos começam diretamente no Parque D. Carlos I no palco Grémio by Seat Mó, no que será uma sequência eclética de música. Inicia-se a tarde com doom e metal dos Lords of Confusion e a eles sucede-se Aires, músico madeirense que apresenta um drone ambient emocional, vagaroso e minimalista, com segmentos de ruído, samples vocais ocasionais e field recordings, banda-sonora para um caminho lento sem objetivo de clímax, numa andada sem meta final.

A ele seguiu-se Luís Pestana, que segue uma linha musical parecida, mas mais acústica e não tão arriscada, incorporando tendências de graves mais profundos, drones mais pontuais, sintetizadores a relembrarem uma sonoridade da década de 80, e até um momento sentido com cante alentejano no primeiro plano, à imagem do que se escuta no seu álbum “Rosa Pano”. Em Garcia da Selva, exploram-se temas mais melodiosos num live set que mescla electro, dub e ambiente com percussão animada, já com a noite a cair, e, depois de cair, Maria Callapez ofereceu techno introspetivo e uplifting, num set que conseguiu chegar a uma intensidade que começava a lembrar o palco Clubbing.

No palco principal, Maria Reis deixou o coração em palco – uma artista e respetiva música que me tem passado ao lado, não por qualquer rejeição, mas simplesmente pelo acaso de não ter ouvido, mas que me convenceu a explorar mais e a descobrir que todo o seu trabalho me interessa.

Os Pluto sobem a palco pouco depois, com Manel Cruz a mostrar porque é que foi e ainda é um dos vocalistas e músicos mais respeitados e lembrados em Portugal, numa reunião de temas de Bom Dia, álbum já lançado em 2004, e o espetáculo continua com os Fogo Fogo, que lançaram no outono passado o seu primeiro álbum de originais, tocando tanto faixas desse novo projeto como as faixas que os lançaram como uma das bandas mais estabelecidas por cá, acabando com È Si Propi numa exaltação geral da sua audiência.

O último concerto no Palco Principal do Festival Impulso foi o de Branko, que respeitou bem essa responsabilidade. Arriscando mais do que o habitual com tarraxos e afrohouses mais lentos no começo, não se demora a acelerar o ritmo e chega às suas produções mais animadas rapidamente. Paris Marselha, colaboração com Cachupa Psicadélica, é a primeira conversa a sério com o público, que responde com agrado, e a corrida até aos ritmos mais puxados do fundador da Enchufada começa, com o DJ e produtor a interagir com a sua audiência no microfone, dialogando um bocadinho com os bailarinos à sua frente. Notamos uma insipidez, no entanto, quando toca as suas próprias canções mais conhecidas, mesmo que remisturadas com uma percussão mais adequada (leia-se mais potente) para um concerto ao vivo. Oferece-nos as colaborações dos seus discos, acompanhadas dos videoclips de cada uma no grande ecrã do palco, o que torna o set algo dececionante, quase corporativo, mas bem representativo da força e consistência da sua discografia.

E como não seria uma despedida bem feita sem um pequeno passo de dança no palco Clubbing, entramos pela penúltima vez num shuttle para a zona industrial para apanharmos o substituto de Odete, que também teve de cancelar o seu concerto – a lake by the mõõn. Duarte Eduardo, que também toca baixo com os bbb hairdryer, que lançaram há pouco mais de duas semanas o seu último disco, está em palco sem medo e apresenta uma combinação de música eletrónica com instrumentação ao vivo a partir de uma gaita de foles. Se esta frase não vos convence a irem ouvir um pouco desta arte, não sei o que vos convencerá. Entre melodias a chamarem o ambiente, kicks e 808s agressivos e o próprio som icónico da gaita de foles, é-nos oferecido um live set dinâmico, em que o artista desce ao armaz mais do que certeira: “O ativismo em formato sonoro de música eletrónica”.

O último set que apanhamos no festival foi o de Nídia, produtora e DJ ligado à Príncipe, que por sinal (mais uma vez, depois do Primavera Sound) está uma DJ incrível, capaz de liderar o movimento bélico que é a pista de dança, com diálogo frequente, com mestria nas transições e nos BPMs, com uma curadoria de música infalível, que não só aconselha mas obriga a mexer o corpo, vivendo através de afrohouses, kuduros, tarraxos e muito mais. Para quem a viu há alguns anos, recomendo vivamente entrar no pelotão de Nídia e dançar um pouco às ordens dela.

As pernas, infelizmente, não dão para mais e deixamos o Palco Clubbing antes da paragem do funcionamento dos shuttles entre as 4 e as 5h. O Festival Impulso ofereceu uma boa seleção de concertos, eclética e variada, tanto nacional como internacional. Ficamos com pena de não ver Tomasa del Real ou de dançar com Odete, mas não tenho dúvidas de que a nossa vontade de música ao vivo ficou saciada de várias maneiras diferentes, e que tanto os visitantes de fora como os residentes nas Caldas da Rainha acabaram a noite de sábado alegres e contentes por terem partilhado tantos momentos musicais positivos, interessantes e cativantes naquele belíssimo Parque D. Carlos I.

Obrigado, Caldas da Rainha, e obrigado, Impulso, por mostrarem mais uma vez que pode e deve haver música sempre que possível. E que se faça pela cultura alternativa se poder exibir sempre que houver espaço. E se não houver, que se aproprie de outros ou se criem novos, pois este tipo de experiências é formador de um futuro mais aberto, variado e bonito.

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