AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Beber a riqueza de uma fonte chamada Semibreve

4 Novembro, 2022 - 16:46

Voltámos a Braga para sentir o pulsar da 12ª edição de Semibreve.

Há muitas fontes de inspiração, mas, no circuito de festivais português, há poucos momentos tão enriquecedores quanto este. Entre 27 e 30 de outubro, o Semibreve voltou a tomar conta de Braga para nos servir o que há de melhor na música eletrónica mais exploratória e não só.

Para quem regressa ao Semibreve, Braga já começa a ser mais familiar. À parte da música ou da arte digital, esse é um dos grandes pontos-chave. Passar por este festival é conhecer a cidade e os seus recantos ao nos deslocarmos de um sítio para o outro e é conhecer também os espaços enquanto se ouvem obras expansivas inseridas em locais inusitados.

Um desses é o Santuário do Bom Jesus do Monte, onde voltou a acontecer o concerto de abertura do festival. Numa daquelas encomendas dignas de Semibreve, a francesa Félicia Atkinson e a lisboeta Violeta Azevedo sentaram-se diante uma sala cheia para apresentar 50 minutos de subtileza: ora a primeira era delicada nas teclas do piano, ora a flautista penetrava os recantos dos cérebros (e do Santuário) com doces sopros mutados pelos pedais a seus pés.

Será redundante falar em viagens neste festival, uma vez que dificilmente não nos deparamos com várias ao longo dos quatro dias. O concerto de Atkinson e Azevedo foi tal e qual: drones ténues tomavam conta de nós, a francesa chegou-se perto do microfone para minutos de spoken word, bem ao seu jeito, e até gravações de campos compunham a magia de sermos erguidos num Santuário como aquele. Enriquecedor, pois claro.

Chegados a sexta-feira, é difícil estar num escritório a pensar na noite que se avizinha, particularmente depois daquele concerto de abertura. Houve uma conversa com Stephen O’Malley e François J. Bonnet nesse dia, mas, para nós, tudo começou no Theatro Circo, um dos palcos principais do festival.

Imagine-se, portanto, continuar a jornada de Semibreve com o concerto de KMRU. A sensação queniana tem chamado cada vez mais a atenção e quem não conhecia percebeu porquê em Braga. Com um início lancinante e quase ensurdecedor, KMRU agarrou todos às cadeiras e foi guiando os presentes, com coesa progressão, numa história que tanto passou pelos graves mais assombrosos como por momentos mais calmos.

Mas, mesmo na calmaria da tempestade, havia graves que nos iam mantendo alerta, qual corda salva-vidas, e que estavam em harmonia com gravações (um dos foques de KMRU) de pássaros ou até de uma voz numa espécie de discussão quase impercetível. Mais para o fim, as constantes texturas meticulosamente desenhadas continuaram a acompanhar um regresso ao lado mais lancinante que havia marcado o arranque do concerto. Depois, cá fora, a reação do público era clara: todos haviam sido arrebatados pela vertiginosa hora de KMRU.

Seguiu-se um contraste completo em Stephen O’Malley e François J. Bonnet. O guitarrista dos Sunn O))) e o diretor do instituto INA GRM, frente a frente, tinham na mesa pedais, máquinas e até um incenso que O’Malley acendeu no início do espetáculo. A escuridão e o silêncio típicos do Theatro Circo tiveram também um papel neste concerto, tanto que foi o som do isqueiro de O’Malley a marcar o início da atuação.

Se tínhamos ficado apaixonados pela subtileza do concerto de Atkinson e Azevedo no primeiro dia, aqui voltámos a ficar. O’Malley esteve sempre de guitarra nas mãos e Bonnet agarrou também numa Fender ocasionalmente, sempre com muita calma e precisão. Ambos iam criando uma ambiência sonhadora, que nem por uns riffs algo mais duros na fase final foi afetada, e detalhes que iam fazendo o público perder-se em todos os pormenores e mais alguns dessa tenuidade. Um verdeiro momento xamânico que nos curou de todos os males – pelo menos durante 50 minutos.

2022 marcou o regresso do Semibreve ao clubbing no gnration, um espaço ideal para o efeito onde havia também várias instalações para descobrir, todas integrantes do EDIGMA Semibreve Scholar deste ano – “Coordinatedº”, de Studio Animaspace (Angelina Kozhevnikova) e Arina Kapitanova, venceu o EDIGMA Semibreve Award e estava em exposição no Theatro Circo. Infelizmente perdemos David Maranha pois, na sexta-feira, fomos diretamente para Gábor Lázár. O húngaro desconstruiu cérebros com um momento sónico bem irreverente e afastado do habitual 4/4. A certo ponto, ficou a ideia de que estávamos a ouvir um footwork alienígena, mas se calhar já tínhamos a mente em Jana Rush.

A DJ e produtora de Chicago foi inevitavelmente um dos destaques do clubbing este ano. A controlar o público como poucos, criando momentos de tensão que depois levavam a um clímax em conjunto, Jana Rush centrou-se muito no footwork, que lhe é tão próximo, antes de se virar mais para drum’n’bass e breaks na reta final. Para fechar a noite, com o suor da pista já bem presente, BLEID trouxe techno duro e acelerado antes de começar a soltar pitadas de hard dance. Não ficámos até ao fim, mas disseram-nos que a festa terminou pelas 4h e que a lisboeta fechou com chave de ouro.

O Semibreve não se faz apenas de música e no sábado aproveitámos para passar pelo gnration. Por lá, para além das referidas instalações, estava também um “lounge” da loja lisboeta Patch Point, onde os presentes podiam aprender sobre e experimentar diferente maquinaria. Mais uma vez, havia ali uma componente de inspiração no sentido de, em parte, mostrar aos interessados o lado algo democrático de compor música eletrónica.

Seguimos para a Capela Imaculada do Seminário Menor, onde Malcolm Pardon se preparava para a estreia mundial de “Hello Death”. A fazer daquela capela sua, o músico sueco assinou um dos momentos mais oníricos do festival, manuseando um piano, criando loops e deleitando todos aqueles olhos fechados com um mundo único, suave e mui saudoso. Gostávamos de lá voltar agora.

Horas depois, chegou o momento de Maxwell Sterling no Theatro Circo. Acompanhado pelos visuais de Stephen McLaughlin, o britânico agarrou num contrabaixo elétrico, num sintetizador modular e em pelo menos mais uma máquina. Conhecíamos Sterling por colaborar com o portuense IVVVO e ali, em Braga, percebemos a ligação entre os dois. Há um lado excruciante (no bom sentido) na sua música, que naquele teatro se evidenciou nos ritmos e nas melodias abrasivas. Por trás, muitas vezes em sobreposição, as imagens de McLaughlin mostravam o que parecia ser arte gerada por IA, planos de filmes e fogo, entre outros detalhes que despertavam qualquer corpo e alma presente.

Um dos grandes momentos do festival ainda estava por vir e chegou na forma de Alva Noto, que cumpriu assim regresso ao festival. Melhor ainda, o espetáculo centrou-se em temas de discos como “Unitxt”, marcados pelo lado mais techno (e até glitch) de Carsten Nicolai. Autêntico mestre em palco e nas máquinas, que ia manuseando com uma fluidez apenas digna de quem as domina, Alva Noto foi o mais aplaudido do Theatro Circo e possivelmente do Semibreve.

Riffs arrebatavam o público, que não hesitava em soltar gritos esporádicos no que até então era uma sala de silêncio, e os ritmos quase puseram toda a gente de pé. Nas mãos, para controlar efeitos, usava também uma espécie de tablet, um dos dispositivos que largou repentinamente para sair do palco, batia a hora do fim do espetáculo. Só depois percebemos que Alva Noto saiu para pedir autorização para voltar e fascinar ainda mais o público com outro tema tão possante quanto pulsante. As palmas não cessaram e a maioria dos presentes com quem falámos sobre isto foram peremptórios: foi uma das grandes atuações do Semibreve.

Daí, ainda nos apressámos para apanhar Xexa a abrir as festividades do 10º aniversário da Príncipe no gnration, mas só conseguimos ouvir a última música, e em estreia, Atitude. Ficámos com vontade de ouvir mais, mas rapidamente DJ Kolt nos fez esquecer isso antes de, pouco depois, passar os decks para DJ Marfox. Lições daquilo que a Príncipe faz são sempre bem-vindas, especialmente se forem assinadas por porta-estandartes como estes.

No Semibreve, é muito importante chegar a horas para não correr o risco de perder concertos – sim, depois do início as portas fecham e não podes entrar. Foi assim que quase perdemos Jan Jelinek e que não ficámos no melhor lugar, logo agora que havia quadrifonia a tomar conta do Salão Medieval da Universidade do Minho. Munido com pelo menos um sintetizador modular, o alemão brincou com os recantos do nosso ser: de sons industriais a gotas de água, sempre subtil, um momento mais exploratório abriu espaço para outro mais usual e que dava até ideias de música de dança, embora sem ritmos. Autêntico apogeu para recuperar da noite anterior e rumar aos últimos concertos no teatro.

Caterina Barbieri foi outro dos momentos altos do Semibreve. Pela música, sim, mas também pelos visuais de Ruben Spini e as luzes de MFO. Desta vez, não convinha fechar os olhos: o Theatro Circo era domado por formas circulares que, com a ajuda do fumo constante, iluminavam todo o espaço como não se havia visto até então.

Barbieri, com uma espécie de braço de robot no vestido preto, parece mais confiante do que nunca. Os movimentos do seu corpo não são os mesmos que se viam em 2018, quando a vimos no Passos Manuel. Agora, há uma maior ligação mulher-máquina entre a italiana e aquilo que o seu modular expele. Como At Your Gamut ou outros, ouviram-se vários temas do último “Spirit Exit”, no qual se centra este espetáculo, mas também a mais reconhecível Fantas. O Theatro Circo foi de Barbieri e nós fomos de Barbieri.

Para a despedida, outra encomenda do festival: o Drumming GP ao lado de Burnt Friedman. Marcada por uma alta complexidade rítmica, que chegava a partir de instrumentos do grupo de percussão, como congas, acompanhada pelas texturas do alemão, à direita do palco, esta atuação foi mais uma das grandes provas daquilo que é o Semibreve: um evento de momentos únicos e muitas vezes irrepetíveis.

Não precisavam de nos dizer, mas várias pessoas do público confirmaram-nos ao longo dos dias que o Semibreve é do mais inspirador que há, seja pelos atos especiais que por lá passam ou por abrir horizontes para novos mundos. Ainda recentemente, por exemplo, uma artista bracarense contou-nos como o festival despoletou a sua vontade de usar a voz para criar. E a julgar pela quantidade de músicos, DJs ou produtores que estiveram em Braga nestes dias, esta edição vai deixar marcas no que vamos ouvir daqui em diante. Marcas que podem ser impercetíveis, sim, mas marcas que ficam connosco a cada ano de semibreve.

Fotografias por Adriano Ferreira Borges / Semibreve

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