AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Elétrico: mais do que uma certeza no roteiro de festivais

7 Julho, 2023 - 11:54

Numa edição em que o sol voltou a ser um dos protagonistas no Parque da Pasteleira, o festival Elétrico voltou a provar a sua importância para o Porto e o país.

O início de julho no Porto ficou mais uma vez assinalado por um festival que é já uma garantia de boa festa e música na cidade. Desde 2018, o Elétrico é sinónimo de três dias de sol, espaços verdes, arte e tanto mais, tudo envolvido num recinto com as condições necessárias. Não estando longe da baixa, é um festival citadino imprescindível no roteiro da Invicta e do país. Mas vamos por partes.

Um dos pontos mais chatos a cada Elétrico é nos esquecermos sempre de pedir férias à sexta-feira. É que, no fundo, isso significa que só podemos ir até ao Parque da Pasteleira já ao final da tarde. Neste caso, perdemos Tiago Carvalho, Diana Oliveira, Gusta-vo e Dorian Paic.

Mas nem tudo é mau: também nos enche as medidas sair do trabalho e entrar no recinto, ainda com direito a bom tempo, no primeiro disco de Margaret Dygas, especialmente quando se trata de alguém tão capaz. O lado mais minimal do house foi uma garantia – e que garantia! – e ajudou a marcar o passo de uma noite que andaria por esses caminhos.

Depois de ouvirmos discos como um mix de Kasha a Set Your Lovin’, de Traumprinz, que foi um dos momentos altos de Dygas, entrou em palco outro nome grande do minimal: Zip. Também ele a rasgar vinis, o fundador da seminal Perlon serviu outra lição bem-vinda, esta marcada por temas como The Journey Pt. 1, de Caspa, ou Stella’s scat , de DJ JES. Tudo no ponto para aquele parque e para o que a pista do Elétrico está habituada.

(Ivo Lima)

A má notícia chegou quando Zip estava a tocar. 10 anos após o cancelamento da passagem pelo Super Bock Super Rock 2013, mas dessa feita devido a uma radiculite aguda, Ricardo Villalobos cancelou o aguardado regresso ao Porto. Avisada à última da hora, contou-nos, a organização ainda conseguiu brindar o público com um b2b entre Zip e Margaret Dygas. O som nas horas finais de sexta-feira poderia ter estado melhor, mas nada impediu a celebração e comunhão que continuaria nessa noite e por mais dois dias.

Para quem trabalha à sexta, sábado torna-se no dia em que se pode aproveitar melhor aquilo que o festival Elétrico e o Parque da Pasteleira têm para oferecer. Atividades como yoga começam logo pela manhã e a festa estende-se até à 1h. Admitimos que não aproveitamos muito essa oferta, que inclui conferências, uma exposição de mupis ou até um mercado, mas fizemos um esforço para não perder o primeiro ato do dia.

Logo às 14h, com um sol abrasador mas com direito às vastas sombras do parque, deitámo-nos para ouvir Caroline Lethô. A apresentar o live act ambient que ainda recentemente levou ao Waking Life, Carolina Mimoso levou-nos numa viagem bem acolhedora. Gravações de água, de aves, pequenos apontamentos de percussão, sintetizadores etéreos, subtileza. Tudo isto com discursos sobre natureza pelo meio, numa clara ode à Mãe que está tão bem presente naquele parque. Momento ideal para recuperar energias e para nos preparamos para um novo dia de festa.

(Lígia Claro)

Seguiu-se Yen Sung, incontornável DJ portuguesa que abriu com o remix de Salt City Orchestra a Mushrooms, de Marshall Jefferson e Noosa Heads, e que continuou por caminhos house e deep house ao tocar temas como Deep End, de Jovonn. Mais pessoas começavam a chegar ao recinto, mas as sombras eram muito mais convidativas do que a pista. Talvez, quem sabe, a organização possa pensar em estruturas para pôr alguma sombra no dancefloor, especialmente se essas forem amovíveis e permitam desocupar o espaço ao final da tarde.

A verdade, ainda assim, é que não houve sol que parasse a vontade das muitas pessoas que se juntaram à volta de Moullinex e GPU Panic, para quem foi montado um pequeno palco mesmo no meio da pista. Frente a frente, os dois músicos agarram em microfones e synths – até mesmo um modular nas mãos de Moullinex – para brindar o público com o lado melódico que muitos esperavam nesse dia.

A qualidade destes dois nomes é inegável. Isso escutava-se na voz e na aptidão para controlar aquela maquinaria, sim, mas também na presença em palco, com frases como “devia ser ilegal não haver Elétrico todos os meses” a porem aqueles que circundavam o palco em ainda mais êxtase. Por entre vários originais, houve tempo para uma cover de Smalltown Boy, de Bronski Beat, antes de a dupla fechar com o seu tema Luz. Mesmo para quem não gosta, é difícil não olhar para aquele momento como um dos favoritos do público naquele dia.

(Lígia Claro)

Para os fãs desse lado mais melódico e pop da eletrónica, tudo se tornaria ainda mais extasiante com Jan Blomqvist. Ao vivo, acompanhado apenas por microfone, computador e uma ou outra máquina, o músico tocou vários originais, como Alone, e manteve a pista bem agarrada a si. Só Superpitcher é que começaria a dar outro contexto àquela festa, com um lado algo mais corporal e rítmico a marcar a sua 1h30 de set.

Todd Terje foi outro destaque e foi também responsável por uma mutação no que se ouvira no Parque da Pasteleira nesse sábado. Muito virado para o disco, mas sem deixar de ir a outros caminhos, como no edit ou remix mais tribal que tocou de Mas Que Nada, o norueguês deixou espíritos em alta, principalmente ao passar por temas como I Wanna Dance With Somebody, de Whitney Houston.

Ainda assim, nesse dia, e até no festival, não há como não destacar o brilhante DJ Tennis. Sem medo de tocar músicas conhecidas – One More Time ou Mind Dimension, por exemplo – o italiano é uma máquina nos decks, como comprovou ao brincar com breaks por entre Gypsy Woman (She’s Homeless). Um autêntico monstro que puxou até pelas emoções da pista ao tocar, por exemplo, Change This Pain For Ecstasy, de Rex The Dog, ou o remix Full Intention de So in Love With You, de Duke. Simplesmente inesquecível.

(Lígia Claro)

Fechado o recinto à 1h, quem quisesse prosseguir a festa poderia fazê-lo no Pérola Negra, onde nessa noite e na anterior os portadores de bilhete tinham desconto. A grande surpresa de sábado é que, além de Johan, Caroline Lethô e João Azevedo, DJ Tennis juntou-se ao after para um b2b com o último desses três, num momento bem elogiado pelos presentes que, infelizmente, não tivemos o prazer de ouvir.

Com os corpos recuperados, voltámos ao Parque da Pasteleira para um domingo que tinha um ponto negativo e que achamos que deve ser levado em conta: a ausência de mulheres no cartaz. De qualquer forma, a programação voltou a ser certeira, isto apesar da desilusão de não termos ouvido David Moreira e de só termos apanhado uns 15 minutos do jazz-fusão eletrónico da live band de S.Moreira.

Finalmente de regresso ao Porto, o veterano A Guy Called Gerald brindou-nos com um live act pelas 17h, ainda o sol tomava conta da pista. O influente nome de Manchester foi assinando uma brilhante e progressiva viagem que começou com um lado mais espacial e corpóreo, vincou depois o acid house e terminou com o incontornável discurso de My House. Um live act de um mestre que só pecou por ser curto – não durou mais do que 45 minutos.

(Lígia Claro)

Por falar em mestres, bem, Kyle Hall tem de ser visto como um desses neste Elétrico. Enquanto um mural estava a ser acabado de pintar à direita da cabine, o primeiro nome de Detroit de domingo trouxe muita alma (por meio de Groove With You, de Doc Link, por exemplo, ou da voz de Shanice em I Like (Masters At Work Main Mix)), dança mais jazzy ou soul e técnica irrepreensível. O clímax foi quando Hall misturou o verso principal de DNA., de Kendrick Lamar, com todo o engenho, puxando ainda mais gente para a pista, tudo num momento que persiste até hoje nas nossas memórias.

Se Kyle Hall foi memorável, o que dizer de dois nomes mais experientes de Detroit? Mais uma lição neste festival, certamente. Com Jon Dixon nas teclas com toda a fluidez e Carl Craig nos decks, ninguém ficaria indiferente. Fosse pelo lado mais jazz (típico de Dixon e de nomes da cidade como Waajeed), mais gospel e espiritual (ouviu-se Makes Me Wanna, de Floorplan) ou mental, Detroit esteve muito bem representada. Muitas das faixas expeliam o som de Roland TR-909s, por exemplo, e a pista ficou completamente rendida a um claro destaque do festival.

(Lígia Claro)

E se há mestres de Detroit, também há mestres portugueses. Rui Vargas, que tem sido responsável pelos encerramentos do Elétrico, voltou a assinar essa tarefa com toda a aptidão que lhe é característica. Vargas tem uma capacidade ímpar de agarrar o público com discos variados: da voz de Robert Owens em I’ll Be Your Friend a Ain’t No Mountain High Enough, este é um DJ singular que nunca queremos deixar de ouvir. Só ele, aliás, para pôr todo o Porto a cantar Happy Together, dos The Turtles, em jeito de remate. No fim, pelas 23h, as palmas não cessaram e toda a gente queria mais. A festa não voltou, mas Vargas ainda pôs, com o volume mais baixo, If I Can Dream, de Elvis Presley, para nos acompanhar na saída. Emocionante não só pela música, mas também por aquilo que se viveu ali.

Não há dúvidas de que o Elétrico é um espaço perfeito e aconchegante para todos e todas, até mesmo para os animais. Excelente e segura opção para levar crianças, seja para a zona destinada a elas ou para a pista, torna-se ainda melhor pela natureza que o envolve. Há pontos a apontar, como haveria em qualquer festival, mas a conclusão é que esta é uma oferta vital na cultura da cidade, bem como um evento certeiro no roteiro de verão: primeiro pela oferta musical, depois por ser um evento que faz falta no leque cultural do Porto. E assim sendo, que continue por muitos mais anos.

(Lígia Claro)

Fotografia de capa por Lígia Claro

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