O testemunho de Jomi sobre a primeira noite de Ano Q, festival organizado pela Rádio Quântica que acontece entre Lisboa e Barreiro.
Depois de um ano de hiato forçado devido à falta de apoio financeiro, o Ano Q (ex-Ano 0) regressou este ano à Grande Lisboa. Nas palavras da organização, o festival é “triunfo da cultura DIY” e, para nós, voltou a provar que a sua existência é um triunfo para todes.
Este ano o festival começou com uma novidade, a sessão de abertura na Sala LISA, com live de Chikki e DJ set de TOMÉ, dois nomes que se têm destacado nos últimos anos no circuito underground (e não só) “lisboeta”.
E foi com grande expectativa que chegámos à LISA mesmo a tempo de ver Chikki actuar. Já conhecíamos a artista e o universo muito particular e extravagante que tem desenvolvido e partilhado em inúmeros trabalhos no seu Bandcamp e SoundCloud, mas esta foi a primeira vez que tivemos oportunidade de a ver ao vivo.
Se no início fomos surpreendidos pelos beats experimentais que saiam do setup de Chikki e foram desde sonoridades mais ambient até drums e bleeps mais próprios da club music, foi quando esta pegou no microfone e ecoou um pujante “puxa!” pela sala que chegámos à parte mais esperada da noite. Nos cerca de 30 minutos seguintes, Chikki mostrou um à vontade enorme no palco e na sua personagem que, ao vivo, nos parece ainda mais sincera e espontânea. Houve beats desde o trap ao gabber a guiar esta jornada, sendo que as faixas mais populares, como Beyblade e a sua cover de SippinPurp, comprovaram que a auto-intitulada “Princesa do SAUCE” tem mesmo muito sauce na sua música.
Prodígio de vários ofícios na música, já tínhamos comprovado que o DJing não era dissociável do enorme talento de TOMÉ numa noite Angel, no Planeta Manas, que celebrou o lançamento do seu fantástico “All I Am Is We”. Ainda assim, a aptidão para nos pôr a dançar com ritmos além dos breaks – bandeira das suas produções de música club – foi muito bem vinda, tal como a vasta escolha de faixas que se enquadram e bem na comunidade que o Ano Q representa.
De Rabu Mazda a BLEID e sem esquecer a fabulosa Batida 19, de Normal Nada, o jovem produtor e DJ rapidamente conquista a pista da qual, a certo momento, até Earl Sweatshirt fez parte. O rapper, que na noite seguinte daria um concerto em Lisboa, não quis perder a oportunidade de se juntar ao Ano Q… ou pelo menos assim escolhemos acreditar. Footwork, jungle ou jersey club guiaram-nos até ao final da noite num set onde TOMÉ não deu tréguas aos corpos que não pararam de dançar.
Aquecimento feito com sucesso, era altura de regressar a casa e recarregar baterias para o dia 1 do festival, desta vez na Galeria Zé dos Bois.
Assim que chegamos à venue, encontramos nëss, artista que não fazia parte do cartaz mas que veio dar um contributo muito importante, como chef de serviço. Empanadas e cinnamon rolls compuseram um menu de preços acessíveis e muito bem-vindo, especialmente no contexto actual de preços altíssimos na restauração em Lisboa e, em particular, na zona do Bairro Alto, onde está situada a ZDB.
Quando entramos pela primeira vez no Aquário, Dj Giovanna está a terminar a sua actuação. Chegámos tarde, é verdade, mas ainda a tempo de ouvir uma versão de Better Off Alone, que teve o mérito de chamar à pista os corpos mais tímidos neste início de noite.
Moss Kissing era o artista que se seguia. Nome em ascensão na cena underground lisboeta nos últimos anos, o britânico que ganhou inicialmente reconhecimento como produtor de música de dança veio ao Ano Q apresentar os mais recentes trabalhos, agora explorando a sua veia de cantautor.
Ficou claro desde o primeiro momento que a conjugação do belíssimo cenário montado em palco e da voz hipnotizante de Moss Kissing resultariam num concerto brilhante, mas não estávamos preparados de todo para o que aí viria. Primeiro a solo, de onde se destacou a rendição do seu último single, Lowen, Dowrgronna, e depois com a preciosa ajuda de Inês Zinho Pinheiro, Moss Kissing revelou-se um autêntico camaleão em palco, atuando como vocalista, guitarrista e até baterista, enquanto controlava com mestria toda a sonoridade envolvente no espectáculo. EBM, New Wave ou até IDM, tivemos direito a tudo e muito mais, numa performance que dificilmente esqueceremos tão cedo.
Após o que esperávamos ser uma prolongada pausa para jantar, conviver e descomprimir, fomos rapidamente atraídos de novo para a plateia assim que ouvimos as vozes angelicais de Yeni e Yeri. Acompanhadas de um guitarrista que se encarregou, e muito bem, de marcar os ritmos para as vozes das gémeas brilharem, ao longo de 30 minutos Yeni e Yeri mostraram um incrível talento e, certamente, conquistaram o muito público já presente na ZDB. No final, promessa de lançamento de música nova para breve. Aguardamos com muita expectativa.
Wugozi, ou Wugori e Oseias, foram os senhores que se seguiram. Bem ao estilo a que o hip hop já nos habituou, foi Oseias, o beatmaker desta dupla, a aquecer a sala até à entrada em cena do seu parceiro. É-nos impossível fugir aos paralelismos entre Wugori e Earl Sweatshirt, rapper que atuava à mesma hora noutro ponto de Lisboa, comparação que funcionava a todos os níveis, desde a densidade e profundidade das letras, à própria postura de ambos em palco.
Entre faixas novas, Wugori visitou o EP “MAL PASSADO BEM PENSADO” e, claro, a colaboração de ambos como Wugozi. Destacamos a rendição de Oitenta e Três como o momento alto do set, talvez também por ser a nossa faixa favorita.
Mais uma pausa para descansar e oportunidade para ouvirmos mais umas malhas escolhidas por Carolf. A DJ e co-fundadora do coletivo Living Room estava, e muito bem, encarregue da animação do Aquário entre concertos. Duas decisões de mérito da organização: a de ter este momento extra de música e a escolha de Carolf para o levar a cabo.
A Galeria Zé dos Bois estava lotada quando LAVA começa a sua performance, mas acreditamos que eram muito poucas as pessoas que sabiam o que esperar desta atuação.
Com o pretexto de uma futura viagem a Nova Iorque como tema de fundo, o artista baseado no Porto e co-fundador do coletivo ARCANA levou-nos numa espécie de orçamento e angariação de fundos em modo performativo, com direito a projeções distópicas e a roçar o absurdismo (bom) e momentos musicais tão distintos como uma cover de Troye Sivan e um momento de Karaoke interpretado por 2 elementos do público (es também artistas Gadutra e Rita Shoarma).
Uma listagem das despesas da viagem ia sendo projectada atrás do palco nos intervalos da performance, sendo que cada uma dessas despesas tinha um momento musical associado. Confessamos que nos faltam as palavras para descrever com justiça o que LAVA apresentou no Ano Q, mas podemos garantir que foi uma das performances mais criativas, inovadoras e, acima de tudo, divertidas que vimos em muito tempo.
E se LAVA colocou a energia e boa disposição em níveis elevados, Fashion Eternal não se fizeram rogados em desafiar o público a consumir mais uma performance ambiciosa, desta vez com ondas sónicas de outras origens.
O duo composto por Bruno Aires e João Valinho mostrou-se com uma invejável sintonia e sinergia na composição de um misto de caos e serenidade só possível de criar com a ajuda da distorção e síncope dos sintetizadores de Aires e dos ritmos frenéticos da bateria de Valinho. Sons por vezes estridentes, mas confortáveis aos ouvintes com mais aptidão para o noise, o club ou mesmo o ambient, uma dicotomia invejável e que ajuda a tornar este um projecto tão especial. Sendo a primeira vez que os víamos, a dúvida pairava no ar: será que isto resulta tão bem ao vivo como em estúdio? A resposta é um estrondoso sim, como podemos comprovar na interpretação de Solar-powered Nihilism.
Ainda antes de DJ Danifox iniciar o set que dava por terminada esta noite de Ano Q, já se refletia no terraço da ZDB sobre o quão especial foi esta noite e é este festival. Não é só sobre a qualidade das actuações, nem o é ainda menos sobre cada uma delas. Se já éramos fãs de Moss Kissing ou Fashion Eternal quando entrámos na ZDB, não sabíamos de todo o que esperar de LAVA e Yeni e Yeri. E sem um festival com um atrevimento necessário para colocar estes nomes no mesmo cartaz, se calhar nunca nos teríamos tornado fãs destes últimos. Não faltou sinergia nesta noite.
E por falar em atrevimento, está na hora de voltar à pista, ainda antes de nos despedirmos de vez do Ano Q. É que Danifox largou a melancolia que caracteriza os seus LPs e até DJ sets que já vimos do mesmo, e está em modo batida frenética, a soltar faixas como Kebrada, da sua autoria, ou Do Mundinho, de Dj Lycox. O Aquário está quente, muito quente, mas ninguém quer arredar pé. Set de mestre, a fechar com chave de ouro o 1º dia de festival.
Infelizmente outros compromissos não nos permitiram ir até à ADAO, no Barreiro, para o 2º dia de Ano Q, mas não temos dúvidas de que terá sido mais uma noite em cheio. Se a missão é “celebrar algumas das iterações sonoras mais intrigantes da cena portuguesa”, temos a certeza de que foi cumprida com sucesso. E se quiserem comprovar por vocês mesmos, as duas noites estão disponíveis no YouTube da Rádio Quântica.
Fotografias por JONI (@joniricos)
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