À terceira edição, a segunda em Fafe, o festival Basilar voltou a mostrar por que razão precisamos de que esteja aqui para ficar.
“Here to stay” é o slogan que a organização vai escrevendo nas redes sociais. E que assim seja. Precisamos que assim seja. Como estes há poucos em Portugal. Certeiro e enriquecedor em termos de programação, torna-se ainda mais especial pelo espaço e pela pista formada por pessoas que partilham o gosto pelo techno.
Há muito a destacar. O género até pode ser servido em diferentes feitios, dependendo da hora e momento, mas tem sempre uma linha orientadora coesa. O palco e a pista são circundados por muitas árvores e espaços verdes. Há poucos telemóveis no ar. As VOID dão um som rigoroso aos ouvidos exigentes. A Barragem da Queimadela dá a frescura necessária para o período diurno.
Este ano, entre outros aspetos, houve melhorias face à edição anterior. O collective:zero embelezou e deu outro dinamismo ao recinto, por exemplo, e a equipa preparou-se melhor para a chuva, com um grande toldo na zona de bar, onde desta feita havia mais espaços para sentar.
Não estamos a falar de uma organização com anos e anos de experiência. Ainda assim, a vontade de fazer mais e melhor é clara e louvável. Um dos reforços em 2024 foi Libelula, um “bio-construtor” e cenógrafo que esteve responsável pela montagem do palco, este idealizado por Francisco “Tauer”. Já Ivo Vieira esteve de regresso ao comando das luzes, com um trabalho fabuloso e envolvente, aproveitando todas aquelas árvores para dar outro encanto ao Basilar, à música e à pista.
Claro que há pormenores menos positivos que podem ser referidos. Estranho seria se não houvesse. Em matéria de iluminação, por exemplo, acreditamos que se pode ter mais atenção a momentos ou espaços sem luz, como na zona de entrada durante as noites. A programação é irrepreensível, mas seria bom olhar mais para DJs negros ou tentar trazer alguém da escola fundadora de Detroit, embora saibamos que não é tarefa fácil. De qualquer modo, como já temos vindo a mostrar, é difícil não olhar para o Basilar como uma peça-chave e indispensável do nosso circuito veranil de techno.
Olhando para a música, assim como no ano passado, voltamos a perder quinta-feira por obrigações profissionais – preferimos pedir a segunda-feira e aproveitar o fim-de-semana. Claro que nos arrependemos, como já é habitual, especialmente ao ouvir tantos elogios. Entre as 21 e as 10h, passaram por lá, por esta ordem, Pareal (live), Laia, Backbone & Tauer, Haruka, Phara (live) e Fadi Mohem.
Arrependimento é também a palavra para descrever o início de sexta-feira, que arrancou com Phara As In Glass (live). Estávamos ansiosos por ouvir as 4h30 (!) de Scion Versions, ou não fosse esta a dupla seminal do dub techno formada por Substance e Vainqueur e uma das provas do quão especial é a curadoria do Basilar. Infelizmente só chegamos na hora final, num ritmo que estava já em faixas como o remix de Surgeon a Said the Spider, de Darqwan, mas sabemos por alguns presentes que a progressão entre discos foi tão especial quanto se esperaria, com um início mais lento e um caminho por entre matéria adjacente à Basic Channel e à Chain Reaction.
Seguiu-se Stojche, DJ exemplar baseado em Madrid que sabia bem quem estava a suceder, tanto que foi por caminhos mais dub e deep: o segundo tema foi Technique, de Parallel 9, passou por CLK Recovery, de Objekt, e chegou eventualmente a uma fase algo mais rápida, como na sua própria Metaphor. Para manter o vigor lá no alto, o “nosso” A Thousand Details de volta a Fafe. Algum azar com um corte de energia pelo meio – o único ao longo do festival – mas sempre infalível enquanto se fazia acompanhar por máquinas como duas Digitakt (MK1 e 2), Waldorf Streichfett, controlador Faderfox MX12 e uma rack com módulos como dois OXI Coral, dois Happy Nerding FX Aid ou Nano Modules CEQ.
3 da manhã, hora de a referência Anika Kunst subir à cabine. A chuva não cessava e fomo-nos distraindo entre abrigo no bar e pista, mas não há como negar a força deste nome. Por entre Lewis Fautzi em Murder The Limits, Slam em Dark Forces ou os acordes dub de Tobias von Hofsten em Swinger, a espanhola deu uma lição variada que ainda hoje paira nos nossos cérebros.
Outro aspeto positivo do Basilar passa pelo facto de os sets não serem curtos. Depois de 2h30m de Anika Kunst, 3h de Ben Klock. O arranque fez-se com o “remix 1” de Temudo para a faixa de 1996 Ismael, de DJ Jes, e a festa levou-nos até pontos como Lolabo, de Talismann. Apesar de o alemão ter sido provavelmente o nome mais mainstream do cartaz, a perícia e engenho que traz não é para todos. Nota 10, sem dúvida, particularmente tendo em conta o contexto da hora e do espaço. Até às 11h, ainda haveria lugar para o elogiado regresso de Deniro, mas outras obrigações levaram-nos até à cama.
De forma a ter força para a maratona de mais de 24h que se seguiria, e por muita pena nossa, perdemos Terzi, Francisca Urbano e Afra no início de sábado. Chegamos ao recinto na hora final de Temudo & Vil, porta-estandartes do techno nacional em matéria de DJing e produção, dupla que fez dos corpos seus com temas como o referido remix de João Rodrigues a Ismael ou Problematico, de Fresko, com que rematou o set. Das 5 às 6h, o cada vez mais chamativo duo Fireground ao vivo. Tal qual as produções – que foram muito tocadas ali, como Etereo, do recente EP “Love Letter” – os italianos assinaram uma hora de techno diversificado, com elementos housey, jazzy e tanto mais pelo meio. Sorriso na cara.
Tudo havia sido bom até então, mas a manhã de domingo a abrir com o alinhamento que se sucederia foi bem especial. Primeiro, na aurora, o suíço Deetron a apresentar Soulmate, alter-ego com que lançou alguns discos no final dos anos 90 e início do milénio e ao qual voltou recentemente para uma trilogia na Ilian Tape. E sim, foi precisamente o que se esperava: um piscar de olho aos movimentos tribais e até prog desses anos, mas não só. Repare-se: tanto se ouviram originais antigos (Don’t You Know Why?) e recentes (Screen, Zoom, Monophone Dub ou Tribe One), como faixas históricas (Game Form, de Joey Beltram, Museum, de Robert Hood, e a arrepiante Jaguar, de DJ Roland) e outras mais contemporâneas (como Vermilion 01, de Ignez e Rødhåd). Deste lado, foi inevitavelmente um dos destaques desta edição.
Igualmente inesquecível foi Tasha, incontornável DJ londrina cuja história e caminho se sentem em cada set. Foi o caso da manhã no Basilar. Se já referimos variedade, aqui essa foi, em certa parte, ainda maior. É que Tasha tanto passou por THE DDT, de MoMa Ready, Detroit em Project 5, de K-HAND, os breaks de The Bills, de Skee Mask, ou trance na forma de faixas como Airwave, de Rank 1. Depois, das 11 às 13h30, o patrão da Token Records, Kr!z, merecia a nossa atenção, mas o cansaço acumulado fez com que nos fôssemos sentar para guardar energia para o resto do dia.
Munido de máquinas como Roland TR-8S, Elektron Analog Four, Korg SQ-1 ou pedais de efeitos (BigSky e Timeline, ambos da Strymon), Salbany foi outro destaque. Promessa tornada certeza da cena portuguesa, Guilherme Alves teve o horário nobre que merece em qualquer evento. Honestamente, àquela hora era difícil tirar notas, mas sabemos o quanto gostamos da atuação e o quanto queremos continuar a ouvir este nome nos anos vindouros.
O mesmo podemos dizer sobre Montero. Apesar de ser um DJ excecional e uma das mentes por trás do Basilar, foi difícil manter a atenção devida no bloco de notas, por muito que saibamos que gostamos do set. O espanhol abriu caminho para o compatriota Oscar Mulero numa das suas raras aparições como Trolley Route, alter-ego com que anda por meandros algo mais lentos de dub e deep, neste caso por meio de faixas como Hux, de Rod – uma das poucas que o cérebro já embrenhado naquela pista conseguiu identificar, bem reveladora da sonoridade. Uma coisa é certa: que imenso privilégio.
Para rematar, e para compensar o cancelamento forçado em 2023, DVS1 durante mais de 4h. Que senhor. Que mestria. Claro que o facto de ser o closing talvez pedisse uma ou outra curveball para dar outro ânimo, mas certo é que entrar no primeiro segundo e sair no último é estar envolvido numa onda que nos leva por entre uma fluidez de múltiplas faixas que não arrebata. Observer, de Jeroen Search, Atma, de Mathys Lenne, ou You Bark I Bite, de Phara, são alguns exemplos do que se ouviu nesta aula.
Dizer que o Basilar é essencial para o nosso circuito de festivais inteiramente dedicados a techno tem que ver com a despersonalização que temos observado por cá. À exceção do Vinculum, em Mondim de Basto, há pouca atenção tão peculiar e interessada quanto esta. Ainda para mais, é o único que oferece noite de 24 horas, algo outrora comum em Portugal – até mesmo em clubes no início do milénio. Somando esta programação a fatores como o espaço ou as pessoas que compõem a pista, é difícil não ficar rendido.
Não temos dúvidas: precisamos do Basilar e desta experiência durante tantos anos quanto possível.
Fotografias por Oriol Reverter e @ontheshoots
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