AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Vinculum: uma só pista em comunhão com o techno e a natureza de Mondim

21 Julho, 2023 - 14:50

A segunda edição com o nome Vinculum serviu para o festival se consolidar e mostrar que tem muitas pernas para andar. E pista para dançar, claro.

Não há que esconder: o Vinculum é uma das melhores opções de festivais para os fãs de techno em Portugal. Se em 2022 já o havia mostrado em parte, a edição de 2023 serviu para provar que há ali, em Mondim de Basto, uma oferta praticamente irrepreensível naquilo que se espera de um festival deste género.

O Vinculum acontece no Parque das Merendas do Monte da Senhora da Graça, onde a organização e os presentes podem contar com condições mais do que suficientes para três dias de magia. O recinto é servido por várias mesas, não fosse este num parque de merendas, vários espaços para sentar, sombras, paisagens verdes, zona de comida, uma “healing area” e um público sem paraquedistas que se interessa, acima de tudo, pela música.

A qualidade do som é inegável. Estar no centro da pista é estar envolvido e absorto na natureza acompanhada por techno que aponta para mundos mais hipnóticos e mentais, mas que este ano não se ficou por aí. Perdemos Silêncio, o primeiro nome a subir à cabine, mas ouvimos um pouco de Morsil, DJ bem capaz de assumir rédeas de abertura ou de encerramento. Neste caso, conseguiu ir aquecendo a pista com todo o engenho para o que se sucederia.

James Grouper, um dos organizadores, entrou pelas 22h de sexta-feira, com um lado ambiente que rapidamente se tornaria numa viagem que, embora hipnótica, foi bem contundente e responsável por aquecer ainda mais os corpos. Grouper deu depois lugar A Thousand Details, um dos destaques do festival, não estivesse ele a cargo de um live act de duas horas (!).

A aposta em A Thousand Details revela também a preocupação da organização em dar espaço a quem trabalha no país, ela que este ano quis também apostar em internacionais. Mas já lá vamos. Primeiro, Gustavo Lima. Acompanhado por um sintetizador modular, uma Elektron Rytm e outra Digitakt, pedais de efeitos ou um Novation Peak, o portuense começou de forma algo dub, mas rapidamente agarrou na pista com energia e força, sempre com muito ritmo e melodias criados ali, no momento, numa sessão de improviso que mostrou o quão especial é este nome no techno português. Lima disse-nos que é nestes moldes que se sente mais confortável e isso foi claro durante aquelas duas horas. No final, já todos estavam envolvidos naquela tão especial relação homem-máquina.

Depois, Amotik foi o primeiro convidado internacional a subir àquela cabine, que, ao contrário de outros festivais, coloca os artistas praticamente ao nível do público, um aspeto que achamos particularmente especial para a intimidade que se pretende criar. Admitimos que, àquela hora, depois de A Thousand Details, já é fácil ficarmos perdidos na música e sem muito espaço para tirar notas, mas sabemos que o britânico assinou duas horas bem sérias e envolventes, mais viradas para o lado mental mas sem esquecer o corpo, que terminaram com a brilhante Charisma, de Arthur Robert.

Seguiu-se outro dos destaques do festival, Zenker Brothers, que entraram sem qualquer medo de rasgar a pista por completo. Mesmo aumentando a rapidez e a energia, os irmãos da Ilian Tape iam variando e estavam longe de se cingirem a uma só abordagem. Queríamos ter ficado até ao fim, até porque era um dos nomes que queríamos mesmo ouvir, mas o cansaço e a noção de que ainda tínhamos o dia de sábado acabou por nos derrotar. Saímos pelas 5h, uma hora antes de o duo terminar, e assim, infelizmente, não apanhamos esse final nem Amulador.

Pelo menos para já, o Vinculum é, a par do Basilar, o único de dois festivais que oferecem um dia de (pelo menos) 24h e, melhor ainda, ao ar livre e com um só palco, que acaba por ajudar à comunhão que se vive. No sábado, o festival mondinense arrancou às 16 e estendeu-se até às 21h de domingo. Decidimos, por isso, ir mais tarde nesse dia, o que nos levou a perder o muito elogiado Sepypes e Maria Callapez.

Apesar de termos chegado a tempo de ouvir Ferro e Gusta-vo – este último foi dos poucos a levar vinis, senão o único – a verdade é que o facto de o público ter muitas pessoas com o mesmo gosto pela música promove o convívio. Assim, as nossas primeiras horas de sábado no Vinculum foram, na realidade, horas de conversa. Mas é também isso que torna o festival especial e íntimo.

Descemos da zona do bar para a pista em Shcuro, que abriu cheio de energia e à volta dos 140 BPMs. De chapéu de Rave Tuga na cabeça e Detroit ao peito, o lisboeta mostrou bem o gosto pelo techno mais duro, mesmo sendo um nome que por vezes podemos associar a outros géneros, como em sets de electro como este. Por entre D-Clash, de Bryan Zentz, Preach, do português Cravo, ou Affro, de Devilfish, o patrão da Paraíso soube agarrar a pista e prepara-la para Alarico, sempre com respeito pelas raízes do techno e também pela onda mais contemporânea. Uma máquina, diga-se.

E se Shcuro é máquina, o mesmo tem de ser dito sobre Alarico. Provavelmente um dos DJs de techno com mais técnica do festival – ou, pelo menos, um dos que mais a demonstra nos seus sets – o italiano trouxe uma vertente mais groove e dura, de tal forma cativante que nem nos deu muito tempo para pensar nem para tirar notas.

Celesta 33, de Stef Mendesidis, é a única nota que temos dessa hora, tal nos perdemos naquela pista. Foi mais ou menos nessa altura que Alarico se juntou a Cravo para um b2b, que daria depois lugar ao português a solo. Momento bem elogiado, esse, mas decidimos ir descansar. Em retrospetiva, queríamos ter estado lá mais tempo, até porque gostamos de priorizar os atos nacionais, mas ainda havia muito para ouvir.

Foi assim que perdemos Backbone, mas, pelo que ouvimos cá fora, o lado mais duro prosseguiu com o homem da casa. Só voltamos à pista pelo meio-dia, quando Francisca Urbano deu um necessário reset à experiência. Aqui, há que destacar o facto de o festival dar slots de no mínimo 2 horas no mínimo, privilegiando o importante papel de DJ. É nesse terreno que Urbano se sente bem e, por isso, serviu os presentes com uma boa viagem espacial, dub, minimal, à volta de temas como Apollo, de Ben Buitendijk, Stately, Yes, de Efdemin, ou Glamourama, de Photek.

Embalados por Urbano, mais uma vez voltamos a ficar perdidos na pista e a deixar o caderno de lado quando entrou a dupla Ruuar. Autênticos magos da cabine, estes dois DJs são exemplares e assinaram uma progressão excelente: primeiro agarrando no lado mais introspetivo da DJ anterior, depois passando para ainda mais energia (como em Four, de Decka), embora mantendo a onda mental.

Orbe, o último internacional e o último DJ a subir à cabine deste Vinculum, manteve esse lado que tanto estimula a mente como o corpo. Com o fim a aproximar-se e o cansaço a apoderar-se, voltamos a inclinar-nos para o convívio, mas ainda conseguimos identificar a incrível Preludio, dos compatriotas do espanhol Ribé e Roll Dann pela Klockworks. Final ideal para um festival ideal, mas também não nos importaríamos de ter ficado com Ruuar até à última batida.

É verdade que somos suspeitos pois priorizamos sempre o que se faz por cá. E sendo o Vinculum um festival português, independente, de escala mais pequena, com poucos telemóveis na pista e que está inserido na natureza, é claro que voltámos a ficar apaixonados. É um evento que merece o apoio de todos os fãs de techno, não só pelo que representa, mas também pelo que de facto oferece a todos os níveis. Para quem não foi este ano, fica a garantia de que deve viver esta experiência em 2024.

Devagar e bem, há quem

O Vinculum faz-se da natureza, dos que dançam ou da música, sim, mas também dos que trabalham para que o festival aconteça a cada ano. Com a ajuda de pessoas locais ou amigos, Afonso Esperança (Backbone), Luís Pedro Ferro e Tiago Soares da Costa (James Grouper) são os grandes responsáveis e “cada um tem um papel mais específico” – mas há, pois claro, esforço e empenho por parte de todos.

Sobre esta edição, ficámos a saber que “foi um bom ano para cimentar” aquilo que é o Vinculum, nas palavras de Afonso Esperança. À conversa com A Cabine no último dia de festival, recordou como a obrigação de adiar as datas de 2022, devido ao risco de incêndio que se vivia no país, “baralhou um bocado” os planos, num momento em que assinalava o “primeiro ano em que [o referido trio] estava junto.”

“Nem acabou por ser o primeiro ano, acabou por ser meio ano”, aprofundou Tiago Costa. “Estávamos a dar o primeiro passo e demos logo meio passo atrás. Acabou por nos tirar algum público. Na altura era pouco, mas 45 pessoas na escala que era foi significativo.”

Independentemente disso, a equipa quer que o festival cresça paulatinamente. O aumento “não pode ser muito grande” porque isso pode significar “perder a parte intimista”, explicou-nos Esperança. “O exercício é esse”, continuou Costa, afirmando que “toda a experiência inclui este espaço, esta organização. Estes diferentes níveis: ora estás no bar ora estás na pista de dança num outro nível e tens esta separação orgânica.”

Todo o espaço envolvente “parece dar resposta ao que [a equipa precisa]”. Tiago não esconde que “imaginam que podem ter mais gente”, mas não lhes “parece necessário ter mil pessoas aqui” pois pode-se “perder o conforto.” No entanto, se for para crescer e se houvesse dinheiro, confessou Afonso, “sabiam bem o que fazer.” Afinal, “não falta bom gosto e noção do que tudo isso implica.”

É importante relembrar que estamos diante um festival que acontece no coração verde de Mondim de Basto. Sobre o município, foi-nos explicado que “existe bastante” relação com esse e que a própria vereadora e visitantes que não estão ligados à eletrónica elogiaram e “pensam logo que isto é fixe e espetacular” ao visitarem o espaço.

Note-se que tudo acontece num parque de merendas que “estava um bocado abandonado”. A limpeza de alguns espaços verdes foi feita porque o Vinculum os queria utilizar e não há que negar o facto de o “parque já ser bonito dele”. Como nos explicou Afonso, “o truque é dar um brilho. Estamos a iluminar o que já cá está.”

Sobre edição em 2024, Tiago Soares da Costa foi peremptório: “Não há hipótese, já está mais do que certo.” E se este ano houve a adição de internacionais, talvez se “pare aqui no rácio e tente-se converter isto. Começamos a ganhar músculo naquilo que é comunicação e não só… foram coisas que no ano passado acabaram por não ser como esperávamos. Ainda para mais ‘gajos’ verdinhos. Agora já não somos tão verdinhos. Ainda somos, mas estamos num patamar em que achamos que esta estrutura faz sentido.”

“Acaba por ser a questão de crescer devagar”, reiterou Afonso Esperança. Sem investidores, a equipa precisa de “estar mais em cima de tudo” e “dedicar muito de si”, mas, mesmo “dando cabo da cabeça”, é algo que dá “sabedoria” e ainda mais amor por tudo aquilo que é construído a cada ano. E esse amor, no fim de contas, também se sente naquele cenário verde de techno e comunhão.

Fotografias por Ivo Lima, cedidas pela organização

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