AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Basilar: Nem as adversidades lhe tiraram o encanto

18 Setembro, 2023 - 12:59

Chuvas fortes forçaram o cancelamento da noite de sexta-feira, mas nem por isso o festival foi menos inesquecível. No fim, continuou a certeza de que o Basilar é bem especial.

A manhã de domingo corria há algumas horas. Raios de sol entravam pelas brechas das árvores que nos circundavam e davam outro brilho à pista. As camisolas de que precisávamos durante a noite já estavam pousadas nos cantos. Muitos sorrisos e poucas caras trancadas. Desligados do mundo sem rede no telemóvel, ravers no topo de pedras altas dançavam incessantemente enquanto puxavam por todos. “I have love for you”, ouvia-se nas incríveis VOID enquanto Blasha & Allatt tocavam a emocionante Drops of You, de Alarico. Ainda faltavam muitas horas para o fecho, mas as saudades e a vontade de não sair do Basilar já se sentiam.

É inegável: este festival é realmente especial e indispensável no panorama nacional. E isto apesar das adversidades que se sentiram ao longo nos dois primeiros dias na Barragem da Queimadela, em Fafe, a nova casa do Basilar.

Para quem teve na sexta-feira o seu primeiro dia desta aventura, como nós, os obstáculos que a chuva extrema trouxe sentiram-se especialmente. Afinal, pouco depois após chegarmos ao recinto, estava A Thousand Details a desbravar a sua maquinaria, uma espécie de dilúvio começou a tomar conta de tudo e a tirar a atenção da música.

O Basilar não estava preparado para o volume desta chuva e não pudemos aproveitar o português nem o set de Montero, que teve de parar não muito tempo depois de começar. À A Cabine, a organização diz que “honestamente não existia preparação possível para o que se passou, porque não foi apenas uma ‘chuva’. Tivemos chuva durante 3h no último dia e festival fluiu normalmente.”

“Na noite de sexta, em pouco menos de meia hora, deparamo-nos com um fluxo de água incontrolável por todo o recinto, especialmente na zona da pista e do backstage. O recinto/pista fica num vale onde toda a água acumulada nas encostas desaguou lá e esse foi o grande problema.” Isso, aliado ao lamaçal que se formou ou às “fortes descargas elétricas que se sentiram”, tornou a realização de sexta-feira impossível e pouco segura. A equipa acabou por precisar de “mais de 12h a limpar e levantar tudo” para prosseguir com o festival.

Há outros aspetos menos bons que se podem referir. No bar, por exemplo, vimos alguma arrogância por parte de quem lá trabalhava em pormenores tão simples como ravers a pedirem para trocar o copo ou uma garrafa de água, ainda fechada, pedida por engano – e a quem lhes foi mesmo negado esse pedido. A organização não pode ser totalmente culpada por isto, claro, mas é um fator a ter em conta – talvez um chefe de equipa presente possa impedir coisas como esta.

Noutros campos, talvez uma área de chill out melhor definida, embora houvesse várias mesas de piquenique para estar, e a presença de luzes nesse mesmo espaço de descanso, mas estes são aspetos que não vemos como essenciais. Por outro lado, já sem a sombra das árvores que se encontra na pista, a praia é incrível e vale mesmo a pena.

Não estivemos no festival durante a noite de quinta-feira, mas houve também um problema com um gerador que acabou por reduzir a atuação de Kerrie. Ainda assim, não houve queixas por parte do público, que sempre mostrou amor por tudo que viveu. Nesse dia, ficamos com pena de perder nomes como Ron Albrecht, que esteve responsável pelo último set.

A melhor parte é que, apesar de tudo que se pode apontar, o Basilar é especial. Muito especial. Basta olhar para os comentários no Instagram, por exemplo, e não há nada mais senão amor. Estrangeiros ficam e ficaram completamente rendidos ao espírito que por lá se vive. E isto tudo com uma programação cheia de tato, cuidado e igualmente excecional. Mesmo nós, que acabamos por ter menos de 30 horas de música (e que 30 horas!), voltamos a ficar rendidos. Afinal, já em 2022, em Montalegre, na edição de estreia, o Basilar foi um dos nossos festivais e eventos favoritos desse ano.

Ainda hoje não conseguimos parar de pensar na progressão de atos que ouvimos a partir da noite de sábado, uma maratona de mais de 24 horas (arrancou às 21 e terminou pela 0h15). Infelizmente perdemos Morsil e Amulador e só entramos no brilhante b2b entre Tasha e The Lady Machine, que serviram um exemplo claro do que se pode esperar no Basilar: techno sério, sim, mas também DJs mais do que capazes de explorar, pontualmente, diferentes coordenadas. Neste caso, esta dupla tanto nos virou do avesso com faixas repletas de 909s a cantar, por exemplo, como com Josh Wink e Lil Louis em How’s Your Evening So Far? – ia muito bem, diga-se – ou até, mais perto do fim, com o dubstep alienígena de Tinderbox, de Objekt.

Esse belo set de 2h30m marcou o passo da melhor maneira para a noite. E esse é outro dos aspetos positivos do Basilar: não há DJ sets curtos, como devia ser sempre. O festival abre espaço para aquilo que é a tarefa do DJ: tomar conta de nós com todo o seu engenho, com mais do que tempo para ler e dominar a pista.

Seguiu-se Head Front Panel, com um live act de 1h direto, pujante e sem muitos rodeios, antes de Temudo entrar já no pico da noite, bem escura apesar dos apontamentos de luz, às 4h30. Àquela hora, já era difícil tirar notas, mas lembramo-nos de o português assinar um set bem ao seu estilo, com techno complexo e repleto de synths ou pads doidos e alucinantes, ideal para o peak time e ideal para aquele público. Pareceu-nos reconhecer alguns temas – provavelmente tocou faixas lançadas pela sua HAYES – mas a verdade é que só nos recordamos da sua Da Haze, já na reta final, que é uma boa amostra do que se ouviu nessa atuação certeira.

Com o dia a abrir, Deniro voltou a ser um dos nomes fortes deste Basilar, novamente com música viciante e mistura de mestre que, àquela hora, já mal conseguíamos decifrar – acreditamos que foi ele que passou Straight Up, de Blue Hour, mas sem certezas. Depois, um dos destaques do festival: Blasha & Allatt. A dupla de Manchester chegou a estar agendada para sexta-feira, mas foi na manhã de domingo que nos rendeu a vinis e pitadas de house inesquecíveis. De Funk Doido, de Vil e Cravo, a Medusa, de Stephen Brown, a passar por temas como Just Close Your Eyes, de Gecko, You Should Go Out Of My Space, de Not A Headliner, ou um remix rápido e feliz de The Bomb! (These Sounds Fall into My Mind), era impossível não ficar rendido à música que se vivia naquele contexto cada vez mais solarengo e, ainda assim, ravey.

É muito fácil nos perdermos ali no meio daquela festa irreverente em que se sente muito bem o amor. Foi isso que nos aconteceu no b2b entre Mareena e Stojche, que ainda hoje temos pena de não ter acompanhado com atenção. De qualquer forma, tivemos o brilhante XDB, às 14h, fortemente elogiado já antes do seu set. No virar do ciclo, de modo a voltar a dar energia ao público, o DJ alemão soube agarrar com engenho aquela hora e, com toda a calma, foi progredindo entre momentos spacey, housey e acima de tudo brilhantes. Perto do fim, tocou uma faixa que nos relembrou Oodi Sähkölle, de Hertsi – provavelmente não era – já a abrir espaço para o eventual regresso ao lado mais veloz e enérgico do festival.

Às 17h, era hora de Oscar Mulero vestir a pele de Trolley Route, naquela que seria a sua segunda aparição de sempre com este pseudónimo. Embora alguns presentes quisessem mais BPMs – mesmo no fim o espanhol não passaria dos 130, se não nos enganamos – deste lado só conseguimos olhar para este set como um dos momentos altos do festival. Depois de uns segundos de arranque mais noise, esta viagem foi um momento cheio de tensão e densidade, com um mestre do DJing a mostrar toda a experiência que tem em dominar o mais ínfimo detalhe para nos virar a cabeça ao contrário.

Algo melódico, algo dub, mas com grande foco nos ritmos que definem o techno mais sério – tocou o remix de Sterac a This Is How, de Yotam Avni, e acreditamos que também a remistura de Steve Rachmad a Can You Relate, de Samuel L Session – Mulero foi simplesmente impressionante e um autêntico mago. Tudo servia para ajudar na construção daquela poção intensa e envolvente, um set tão indescritível como inesquecível – e que queremos muito voltar a ouvir – abençoado até por alguma chuva que foi muito bem-vinda para ajudar à magia.

Não faltaram momentos que vão residir na memória durante muito tempo e Freddy K foi outro desses. Novamente responsável por encerrar o festival, o italiano não brinca em serviço e sabe bem quais os vinis ideais para arrebatar aquele público sedento. Foram quatro horas incríveis de set, com passagens por faixas como o remix de Alarico a Bamboozled, de CVRDWELL, o electro arrepiante de The Exaltics em Higher Levels e até uma pitada da parte final de Underworld em Juanita/Kiteless/To Dream of Love, já no fim. Muitas palmas, mas não sem antes Freddy K voltar a picar um disco para o adeus: Signing Your Own Post, de Funk Assault, que ainda hoje não nos saiu da cabeça. Não há muito para dizer senão isto: Alessio Armeni é génio.

Apesar de tudo que se pode apontar, este é um evento único, acima de tudo graças à pista atenta, respeitadora e amante da boa música que por lá passa. É importante notar que esta edição foi num novo local e, como nos diz a organização, “mudar de sítio é quase um voltar à estaca zero no que toca a produção e isso teve o seu impacto.”

“Queremos mais e melhor”, conta ainda a equipa, “e agora, com a garantia de nos podermos fixar na Barragem da Queimadela para os anos seguintes, tudo será mais fácil.” E nós vamos lá estar, claro, não fosse o Basilar único e imperdível.

Fotografias por Ivo Lima, Oriol Reverter e Kauan / Basilar

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