Micaia é a 42ª convidada do podcast N’A CABINE e assina um mix envolvente para ouvir a qualquer hora do dia.

Cresceu em Moçambique e mudou-se para Portugal em 2012. Desde cedo esteve ligada à música, fosse como ouvinte, promotora ou até como locutora de um programa de rádio em 2005. É conhecida pelo alterego Micaia, que adotou em 2019, e por ser cabecilha da SAVANA. Hoje, é o que faz como DJ e o seu percurso que temos oportunidade de conhecer melhor.

Ao longo de pouco mais de uma hora, este mix agarra os nossos ouvidos a uma energia tão mental quanto corporal que bebe de universos acid, dub, techon, electro e não só. Na entrevista que acompanha o episódio, a própria descreve a viagem como tendo uma “cadência inquieta e agitada, com pedaços de euforia espalhados como raios de sol numa manhã rompidos pelas nuvens”.

Podes falar um bocadinho sobre o teu percurso? Quem é a MICAIA e como é que ela decide ser DJ?
MICAIA surge após uma inspiração artística que me influenciou bastante pelo espírito criativo de uma subespécie de um papagaio – African Grey – que me acompanhou largos anos de vida.

MICAIA faleceu em 2019 e desde então que sinto que lhe devo um percurso artístico que tanto merecia. Passámos horas e horas no estúdio a fazer gravações onde MICAIA gravava a sua voz num microfone antigo que tinha no estúdio e eu criava uns beats por cima. Estas vozes estão inseridas sempre nos meus sets porque me criam uma presença nostálgica cósmica.

Na altura estava a preparar uma actuação em modo live pelo imenso interesse que sempre tive pelas máquinas e na produção musical. Após a morte de MICAIA entrei em depressão criativa e o live ficou para trás nas prioridades e entretanto uma pandemia chegou. A primeira vez que toquei foi em 2017 mas nunca tinha feito carreira, apenas tocava em convites inesperados. Durante a pandemia em 2019, havia várias raves ilegais e festas com amigos onde comecei a criar mais o meu skill como DJ. Após ter tocado algumas vezes, várias amizades inspiradoras incentivaram-me a criar o meu altergo MICAIA.

A minha essência vem de proporcionar experiências artísticas para o público. Desde que me lembro, nos meus primeiros trabalhos, em todas as minhas criações para o público na produção de eventos, festivais e culturais, sempre tentei proporcionar essas experiências, o que me leva a concluir que colocar um público a dançar poderá também fazer parte desta minha essência de proporcionar experiências artísticas.

Consegues recordar as tuas influências? Que música te marcou ao crescer? Que música te marca hoje em dia?
O meu percurso musical nasce de uma cultura bastante criativa com raízes africanas em Moçambique onde cresci e criei o meu gosto pela música nas vertentes de Dub, Reggae e Ritmos africanos.

As férias da escola em Moçambique eram ao mesmo tempo que em Portugal, para onde viajava para visitar familia e amigos. Recordo-me que todos os verões chegava com um CD para eu e o meu primo Guilherme Branquinho ouvirmos o que eu colecionava durante o ano inteiro com as novas tendências musicais.

Em Moçambique, tínhamos uma visão muito criativa e a música fazia parte nós.

O que marcou o meu interesse pela musica electrónica foi após uma aventura em casa do meu tio, onde tinha discos e CDs perdidos numa cave onde encontrei vários estilos musicais e um dos que me marcou mais foi uma complicação em CD ‘Jungle Jazz – Irma casaDiPrimordine’, de 1996, com faixas dos anos 90 onde tive uma mastrurbação intelectual com a percussões e ritmos que nunca ouvira antes. Foi nessa altura onde comecei a aventura de descobrir as primeiras raves e a ansiedade de chegar a casa para procurar e descobrir música, o que me levou ao gosto de colecionar música no geral e neste caso musica electrónica.

Na verdade, todos os meus tios e a minha mãe sempre me ensinaram que a arte – a música – teria que ser algo presente na minha vida. E estou muito grata por isso.

Tens trabalhado em alguns projetos, mas não é de agora que estás ligada à música. Que outros trabalhos no passado te influenciaram a ser aquilo que és hoje?
Já fiz muito e aprendi muito, com muitos erros pelo meio também. Mas todos os projectos que estive ligada fizeram de mim o que eu sou hoje.

Desde 2005 que trabalho na indústria da música, onde descobri muito cedo que tinha essa paixão e foi graças à minha mãe acreditar que tinha talento nesse ramo que comecei a trabalhar em produção de eventos e festivais e desde então nunca parei, nem penso que seja para parar tão cedo pois já aceitei que o bicho da criação é maior e aprendi a viver com ele.

Comecei o meu percurso em Moçambique em 2005, na rádio local, com um programa de Dub, reggae e hip-hop local. Aos domingos, após a sessão de cinema – só havia um filme por semana no cinema – comecei a organizar um evento com concertos com várias bandas locais após a sessão. Conheci vários músicos e artistas que começaram a ser grandes amigos e que me ajudaram a frequentar os melhores sítios para explorar a música africana ao vivo.

Em 2008, após ter viajado para a Europa e África do Sul, foi quando comecei a explorar a música electronica e a organizar raves de música electronica em Moçambique com vários artistas internacionais e nacionais.

Em 2010, decidi sair de Moçambique porque as faculdades não existem e as oportunidades não eram muitas. Mudei-me para a África do Sul, Cape Town, onde conheci o mundo dos festivais e onde me voluntariei bastante para aperfeiçoar os meus skills de produção. Percebi que era isto que queria fazer e decidi focar-me nisso e, desde então, toda a minha vida tem sido em volta da produção.

Em 2012, decidi mudar-me para a Europa. Pensei em mudar-me para Portugal pois, com o apoio familiar, seria uma maneira mais fácil de entrar na Europa e explorar o mercado cultural onde me pudesse encorpora. Tive a sorte de trabalhar em vários colectivos e projectos onde criamos vários eventos e espaços culturais e nunca mais saí de Portugal.

Em 2015, comecei a trabalhar em festivais internacionais e nacionais. Tive o privilégio de aprender um novo skill, a carpintaria, com o qual comecei a trabalhar também dentro da produção, mas mais focada na criação de cenários em eventos e criações de instalações artísticas onde durante anos estive focada em colaborar com colectivos e espaços culturais nessa vertente.

Neste momento continuo a fazer trabalhos como freelancer e apoiar outros projectos como freelancer, mas o meu maior foco neste momento é um projecto criado por mim em que, depois de tantos anos de experiência em vários colectivos, decidi colocar a minha visão. Outros projetos irão surgerir, mas por agora o meu maior foco é dedicado a esta plataforma – SAVANA – e ao meu papel artístico como MICAIA.

E o que podes dizer sobre o trabalho que desenvolves no dia-a-dia?
O que desenvolvo nos dias de hoje é muito simples: a minha paixão sempre foi os eventos e a criação dos mesmo e, por isso, desde 2005, estou envolvida em projectos da minha própria criação ou de outros onde trabalho como freelancer.

Desde 2022, após uma pandemia intensa e em muitas conversas com vários artistas, sabia que o mundo das agências de artistas sempre foi muito obscuro, principalmente as que pensam mais em massas e não no lado humano e percepção dos artistas que também são humanos e precisam de um apoio e incentivos para serem reconhecidos numa indústria onde a competição é imensa e o mercado vira mais para os números e massas do que para o lado criativo.

A SAVANA vem de um manifesto aos artistas, agências e promotores para colaborarem mais e apoiarem mais os artistas e os promotores e não apenas como um ‘produto capitalista para diversão’.

SAVANA é uma expressão de um espaço seco onde num lago junta os artistas para um momento de paz e harmonia. Este é o papel desta plataforma global criada por artistas para artistas dedicada a apoiar o crescimento orgânico e confiável do percurso de um artista. E criar um ponte sustentável entre os promotores e os artistas porque há sempre o lado do artista e do promotor que ambos procuram ter retorno.

Como é que olhas para o papel de DJ? E como é que tu o encaras?
Olho para o meu papel de DJ como uma combinação de habilidades musicais, técnicas e sociais que na minha opinião é o que define um DJ ser eficaz e cativante. Posso dizer que o meu papel como DJ ainda é muito recente e ainda tenho muito para aprender e é isso que me facina a evolução e as descobertas. Estou bastante grata a todos que me apoiam, acreditam e incentivam a ser DJ.

O que decidiste fazer para este podcast?
Este podcast, de maneira geral, tem uma cadência inquieta e agitada, com pedaços de euforia espalhados como raios de sol numa manhã rompidos pelas nuvens, e isso reflete com certeza tanto o meu estado mental no último ano.

Não estava a conseguir gerir o meu tempo da melhor maneira para também apoiar os meus objetivos como MICAIA. Este podcast fez-me pensar bastante principalmente por rever o que já fiz e o que ainda quero fazer. Quero agradecer ao Daniel e a toda a equipa da A Cabine pois puxaram por mim e compreenderam que este podcast estava a ser a minha maior descoberta para o que seguir como MICAIA.

Obrigado, Micaia. Para terminar: como olhas para o cenário nacional? Tens algumas sugestões ou conselhos para os nossos leitores?
Um ambiente cultural próspero em nível nacional, é crucial reconhecer a cultura como parte fundamental da identidade de uma nação, desempenhando um papel essencial no desenvolvimento social, económico e individual.

O cenário nacional é um tópico que não sei bem o que descrever do mesmo – mixed feelings. Há muita coisa boa acontecer neste momento mas também muita coisa que não consigo compreender. Penso que isto também se deve não só apenas ao panorama cultural, mas sim ao panorama económico que sempre afectou a cultura.

O conselho que tenho para todos os leitores: acreditem na vossa essência e nunca desistam porque a vida dá muitas voltas e por vezes as coisas não são tão claras, mas a persistência acaba por ser valorizada ao longo do percurso. Aceitem as mudanças e façam delas o melhor que possam porque sem elas não temos experiências para sermos melhores.

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