AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Elétrico, sol e a certeza de que esta paragem é obrigatória

8 Julho, 2022 - 18:23

É inevitável: o festival Elétrico veio para ficar e é paragem obrigatória no circuito nacional de festivais de eletrónica. Quem esteve lá que o diga.

Quantos de nós saem do trabalho à sexta-feira e vão dar uma volta, beber um copo, esquecer o fervor e a secularidade que se vive durante a semana? Chegar ao festival Elétrico no fim-de-semana passado remeteu para isso, não tivéssemos nós chegado ao evento após o horário laboral. E ali, no Parque da Pasteleira, ao longo de três convidativos dias, há uma certa espiritualidade que reside naqueles espaços para sentar ou naquelas árvores à sombra. E essencialmente naquela pista.

Quando chegámos àquela que foi a terceira edição de Elétrico, já Francesco Del Garda estava a tocar há uma hora. Mas não houve motivos para tristeza: sair do trabalho, chegar a um espaço verde e ouvir discos sérios e envolventes era tudo de que precisávamos para ficar rapidamente no melhor estado de espírito possível. O italiano, bem experiente e capaz, acertou logo o passo para a festa e guiou-nos numa progressão equilibrada, com vinis de house ou de ritmos quebrados a transpirarem melodias ideais para aquele contexto. Embora para nós tenha sido curto, foi delicioso.

O público já estava bem composto a essa hora, mas ainda aumentaria mais ao longo do dia e noite. Havia muitos estrangeiros, sim, mas muitos, muitos portugueses e portuenses logo desde o final da tarde. A organização diz que passaram cerca de 5 mil pessoas pelo festival Elétrico, com uma média de idades de 35 anos e 46% de público internacional. Mas ali estávamos mais do que em casa.

O festival manteve-se idêntico à edição de 2019 a nível de condições. E isso não é mau, até porque nesse ano já havia sido tudo muito bem trabalhado. Os bares, por exemplo, trabalharam bem e sentimos só algumas filas a meio da tarde de domingo, mas sem razões de queixa. Uma das principais diferenças que sentimos este ano e que é de notar foi a expansão que houve nas casas-de-banho – e que será sempre bem-vinda, pois claro.

Esperado por muitos, DJ Koze foi o nome que sucedeu Francesco Del Garda. Não houve Pick Up, mas houve uma boa variedade de faixas que pôs toda a gente a dançar como se não houvesse amanhã ou after. House, momentos mais downtempo, ritmos africanos, a mesma gravação ao vivo de Moodymann que é usada por Drake em Passionfruit ou a reconhecida-por-todos Pump Up the Jam são alguns exemplos daquilo que o alemão trouxe. Talvez se poderia ter trocado a ordem entre este nome e o referido italiano, mas serviu para dançar muito e bem – e o público não se queixou.

Para fechar a noite de sexta-feira, que à imagem de sábado é o único dia a terminar à 1h, uma das grandes viagens do festival Elétrico: Seth Troxler. Não foi um dos grandes momentos devido a uma qualquer perfeição técnica deste DJ, mas antes por ter sido uma das primeiras provas da comunhão que se vive naquele recinto. Talvez pela seleção de house sério (e, se bem nos recordamos, houve também disco e não só), este set de 3h encheu o público de sorrisos e abraços. Desde a vibrante Move Your Body, de Marshall Jefferson, até Tell You No Lie, dos Floorplan, a passar por Mind Dimension, de Tiga (não sabemos bem qual versão), houve união sem igual e a certeza de que Troxler entregou um dos grandes momentos do festival. Foi, pelo menos, um dos primeiros momentos em que a tal conexão do público esteve em especial evidência.

Para nós não houve afters (aconteceram no Industria ao longo dos três dias) para que pudessemos recuperar energias, mas nem assim conseguimos chegar cedo no sábado, tal era o sol que se sentia. Perdemos MaguPi e Catarina Silva, mas ouvimos uns minutos de Diana Oliveira, que, como habitual, não decepciona. O calor era tanto, no entanto, que nos ficamos pelas sombras. Escolhemos aquelas mais próximas do palco, mas o recinto tem muito espaço, que permite ter uma boa área de comes e bebes, mercados, atividades de bem-estar, a excelente zona para crianças (um dos grandes pontos do festival Elétrico, tornando o evento mais do que acolhedor para famílias) e verde até mais não. Ao longo de todo o perímetro encontra-se muita polícia, que não é importuna e acaba por transmitir segurança.

Roza Terenzi entrou na cabine pelas 17h30 e assinou outros dos grandes momentos do festival. A australiana é capaz de brincar com electro ou techno, acid ou toques mais trancey, tudo com uma mestria que chega a ser indescritível. Afinal, mente e corpo foram completamente embalados pela técnica e pela seleção, dando já ideia do que seria este sábado.

Sucederam-se Priku e Raresh para aquilo que seriam atuações mais viradas para minimal romeno, mas não foi tão linear quanto isso. Antes deste dia, aliás, acreditávamos que Roza Terenzi seria a melhor escolha para abrir para KiNK, mas Raresh mostrou que estávamos enganados com um set bem pujante, enérgico e elogiado pelos presentes.

KiNK, esse cientista e manuseador de máquinas sem igual, entrou depois em palco, pelas 23h30, para fechar sábado de forma excecional – e nem um passageiro problema de som escondeu a beleza desse momento. É difícil tirar notas numa atuação de tamanha efusividade, mas vamos tentar: este músico búlgaro joga com house, techno, ritmos drum’n’bass, samples de voz, com tudo e mais alguma coisa. Mesmo ao vivo, pelo meio toca temas originais, como RAW ou Valentine’s Groove, e recorre a outros, como Original Nuttah, de Shy FX, bem alterada e desacelerada.

Foi no Parque da Pasteleira, aliás, que KiNK voltou a contar com a colaboração do público em pleno live act, algo que até referimos na nossa antevisão. A parte mais bonita (e que só nos apercebemos nas redes sociais após o festival) é que foi o português Charles Lazer a mexer nas teclas como bem sabe e para espanto do próprio artista búlgaro e de todos os seus seguidores. No ano passado, curiosamente, já este músico aveirense havia subido ao palco para tocar teclas com Kerri Chandler. Talvez Carlos Lázaro tenha voltado a provar que merece tocar naquela cabine em forma de elétrico numa próxima edição, não?

A chuva ameaçou, mas grande parte de domingo foi tudo menos chuvosa. Foi solarenga, na verdade, de tal forma que nem conseguimos estar na pista quando chegámos ao recinto. Por entre LJLounge, Luisa e Moullinex, Klin Klop acabou por se destacar devido ao formato com que se apresentou: com a artista ao violino e com uma banda composta por teclas, guitarra e não só, ouviram-se temas originais para dar início ao último dia de Elétrico.

Kruder & Dorfmeister era uma das grandes atrações do festival e, em formato DJ set, a dupla austríaca não pareceu desiludir ninguém. Envolvendo toda aquela bela pista em uníssono através de temas mais de clube e outros temas mais soul, mas que se encaixam na perfeição no Parque da Pasteleira, o duo passou por músicas como Best of My Love, de Emotions, Love Can Break You, de Lea Roberts, ou até Love Is In The Air, mais perto do final. Amor por demais, amor pelos demais.

Às 19h30 foi hora de Floating Points e de percebermos que estávamos errados no nosso artigo de previsão. Fora um problema de som rapidamente resolvido na parte inicial, este set de 2h foi incrivelmente rico. Se prevíamos que o britânico andaria muito à volta de faixas mais de clube, como aquelas que assina, a verdade é que Sam Shepherd soube enquadrar-se no contexto do Parque da Pasteleira de forma exemplar – e como tem de ser. Houve faixas especificamente desenhadas para clube, sim, como é caso dos recentes singles Grammar e Vocoder, mas houve também disco e soul (como em muitos outros momentos do festival), tudo envolvido numa bebida que não queríamos largar e que terá certamente sido um ponto alto para muitos dos presentes.

Mas falar em pontos altos ou em Elétrico sem falar de Rui Vargas começa a ser impossível. Responsável por encerrar o festival portuense em todas as edições, o residente do Lux Frágil mostrou por que razão tem esse papel. Para um dos sets mais marcantes que já ouvimos de Vargas em tempos recentes, este experiente e incontornável nome levou pens e discos para assinar um momento marcado por temas ideais para a despedida.

Ficámos completamente maravilhados e agarrados ao som que emanava no Parque da Pasteleira, num set que, do que nos recordamos, foi mais enérgico e pujante do que noutras ocasiões deste DJ no Parque da Pasteleira. Rui Vargas vive e respira disto, tanto que olhava para o público como poucos outros DJs ao longo deste festival – sorriso bem espetado, olhos postos na pista, amor, alegria e união bem evidentes. Tudo isso se tornou ainda mais claro quando Samba Magic, dos Basement Jaxx, inicialmente acompanhada pelo poema “On the Pulse of Morning”, de Maya Angelou, pôs toda a gente a mexer, ainda mais do que aquilo que já se havia mexido durante o festival Elétrico. Magia assinada por um dos grandes magos, um dos que parece conhecer o Elétrico como ninguém.

Domingo termina mais cedo, às 23h, mas há after para quem puder continuar a festa – e, neste caso, Vargas foi um dos DJs. Para nós, segunda-feira aproximava-se e o maior problema era saber que o Elétrico não regressaria ao Parque da Pasteleira no final da semana, logo este que é um evento que se distingue pela oferta (e pelo espaço!) não tão habitual no circuito português de festivais. Mas volta em 2023 e já é conforto suficiente saber que voltaremos a ter oportunidade para sermos felizes naquela união debaixo do sol. E da música.

Fotografias por Lígia Claro (cedidas pela organização)

ERRATA: A peça original dizia que havia sido Seth Troxler a tocar o tema Canoa, mas um leitor alertou-nos no Facebook para o facto de ter sido DJ Koze o responsável por esse momento.

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