AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

A unicidade de mais uma edição de Mucho Flow

14 Novembro, 2022 - 13:18

Voltámos ao Mucho Flow para testemunhar a edição de 2022 do festival vimaranense. Mais uma edição em cheio, pois claro.

Uma semana depois do vizinho Semibreve, ir até Guimarães foi como que o toque final que precisávamos para encerrar a temporada de festivais na perfeição. Ao longo do primeiro fim-de-semana de novembro, o Mucho Flow voltou a provar aquilo que já havíamos referido no ano passado: esta paragem é de tal forma rica que é obrigatória no roteiro que desenhamos a cada ano.

Sempre à sexta-feira, o primeiro dia de festival começa antes do jantar: às 18h, Sofie Birch tomava conta do Centro Internacional das Artes José de Guimarães (CIAJG), um dos quatro palcos desta edição. Para nós, infelizmente, a aventura só começou com George Riley, pelas 19h15, no reabilitado Teatro Jordão, que este ano se juntou às etapas de Mucho Flow.

Sozinha em palco, Riley mostrou-se orgulhosa por ter a oportunidade de nos mostrar os beats que tanto bebem de jazz como de jungle, mas, mais do que isso, a sua voz. A londrina, que continuaria no festival como espetadora até ao último dia, passou por vários temas de “Running in Waves”, como Jealously ou a mais conhecida Time, com que fechou o concerto, e foi o aperitivo ideal para o que o cardápio guardava.

Ainda no Teatro Jordão, Slauson Malone 1 entregou um concerto único que continua a viver nos recantos dos nossos cérebros. Acompanhado pelo violoncelo de Nicky Wetherell, o artista multidisciplinar Jasper Marsalis mostrou a irreverência deste projeto por meio de loops agoniantes ou cordas soltas, de efusividade ou baladas, de guitarra acústica ou autênticos berros, de pop ou experimentalismo e até de intervenção com o público. Uma verdadeira performance marcada por dualidades que conviviam em harmonia com o público atento. Enfeitiçante, diríamos.

Um dos nomes que chegou ao Mucho Flow para substituir os cancelamentos de Yaya Bey e Elias Ronnenfelt, a par de Riley, foi a espanhola Marina Herlop, com outra atuação excitante, quente e viciante. A tocar o disco com selo PAN “Pripyat”, ou pelo menos parte dele, a destreza nas teclas (e até nos samplers) ou a voz afinada mostravam com precisão o passado de conservatório de Herlop. Nem agudos de temas como lyssof intimidavam a barcelonesa, que gesticulava sempre agradecimento às muitas palmas que se ouviam. Não era para menos.

Depois de uma cachupa no Teatro Jordão, onde havia uma zona para comer, rumamos ao Centro Cultural de Vila Flor (CCVF) para sermos possuídos por uma exaltação sónica chamada Slikback. De momentos altamente densos e inexplicáveis a outros de consumo mais fácil na fase final, o mestre queniano foi exemplar, sempre com a abordagem reveladora de novos caminhos de clubbing, que parecem passar por influências tão distintas quanto gqom ou industrial. Destrutivo de corpos e espaços, sim, mas altamente prazeroso.

A essa hora, muitos grupos começavam a reunir-se nas imediações do CCVF e, influenciados por esse espírito, não apanhámos muito de Kai Whiston. Do que vimos, o londrino soube agarrar no público com dote e engenho: sempre cá em baixo, na plateia, o londrino cantava com toda a energia por cima dos beats experimentais de bass music. Os presentes, esses, vibravam e saltavam de um lado para o outro (e à volta de Whiston) como se não houvesse mais festa a seguir.

Já no São Mamede, onde terminava cada noite, os planos tinham sido alterados devido a alguns imprevistos de última hora. Slikback, por exemplo, estava agendado para abrir este palco. Quem passou para este espaço foi aya, mas, antes dela, Poly Chain foi preparando os corpos com música de dança mais ou menos convencional, muitas vezes com um lado prog a chamar a atenção.

Foi pena não termos aya à hora que estava marcada para o CCVF pois, admitimos, já nos estávamos a deixar levar pela envoltura das noites de Mucho Flow quando a britânica assumiu o palco do São Mamede. Ainda assim, ficou marcada a irreverência deste nome – não só na sonoridade, mas também no que cantava ou dizia ao microfone. “Só mais duas músicas e depois há proper music”, disse pouco antes de terminar.

Num frente a frente a relembrar Giant Swan em 2021, tal era a maquinaria diante cada um dos dois membros, os Schwefelgelb assinaram um dos grandes momentos dessa noite. Afinal, em parte parecia que o público já estava à espera do techno mais 4/4 – mesmo com pitadas de industrial e não só – que tornou o São Mamede numa rave cavernosa que nem com uma paragem técnica abrandou.

Com olhos bem abertos (quando não estavam fechados) e pés a bater forte no chão, a pista estava no ponto perfeito para Otsoa. Nome do underground portuense, este DJ é um caso sério no panorama e os vinis que levou mostraram-no bem: muito electro de outro mundo, techno sério e envolvente (como Temptation, do lisboeta Shcuro) e a emocionante It Feels So Good, de Sonique, a fechar tudo. Música de pista para corpos de pista que só parou porque os seguranças certificaram-se de que a vontade de Otsoa e dos presentes não contrariava o horário estipulado para o encerramento: 6 da manhã.

É claro que é cansativo viajar desde o Porto até Guimarães depois de uma noite em cheio, mas saber que temos Luís Fernandes à nossa espera no CIAJG torna tudo mais fácil. Nesse palco, o músico bracarense abriu o dia de sábado com uma apresentação do recente “A Guide to Getting Lost” e, bem, foi mesmo um guia para nos perdermos.

Com a sala bem escura e com toda a gente sentada ou deitada, Fernandes fez-nos mergulhar nas ondas sonoras que emanava a partir de máquinas como a peça-central modular. Numa relação simbiótica entre calmaria e dessossego, perdemo-nos por completo naquela viagem textural que tanto expelia graves como palpitava sons de pássaros. Coeso e intenso, o momento serviu também para descansar e ganhar forças para o dia que se avizinhava.

Apesar de conhecermos FAUZIA por caminhar sonoridades como UK garage, a londrina tem assumido um posto mais de cantautora. Em Guimarães, foi esse lado que experienciamos: acompanhada por uma violoncelista, FAUZIA mostrou as canções que tem feito e, embora embaraçada em certos momentos, fê-lo com clareza.

A música não cessa no Mucho Flow e, neste sábado, decidimos aproveitar a gastronomia da cidade, o que nos fez perder Rainy Miller e grande parte de Moin, ambos no Teatro Jordão. Os minutos que ouvimos da banda foram bem excitantes, com a energia post-hardcore a marcar aquela atuação de que faz parte alguma eletrónica, assinada por um dos quatro membros em palco, ou a notável baterista Valentina Magaletti, que no passado já vimos ao lado de nomes como João Pais Filipe.

Também no Teatro Jordão, Ill Considered assinaram um dos destaques do festival. Em formato trio, a hora enérgica deste jazz fogoso de Londres chegou pela bateria de Emre Ramazanoglu, o baixo de Liran Donin e o saxofone tenor de Idris Rahman. A atitude rockstar bem natural de Rahman chamava a particular atenção, mas a técnica estava tanto nele como nas mãos de Ramazanoglu e Donin. Nem sequer tirámos notas sobre o concerto, confessamos mais uma vez, tal era o modo como estávamos embrenhados. No final, os londrinos queriam ainda mais, apesar de toda a energia e suor que deixaram ali, mas o tempo já não permitia estar mais naquele palco.

Continuando a olhar para Londres, a dupla Jockstrap estava à nossa espera no CCVF. Georgia Ellery e Taylor Skye apresentaram o recente “I Love You Jennifer B”, um disco que recorre a diferentes campos de eletrónica para entregar uma fórmula pop convincente e querida pelo público, a julgar pelas reações em Guimarães.

Também nesse palco, o também inglês Blackhaine passou (pelo menos) por temas de “Armour II” para um momento bem esperado pelos presentes. Com um DJ virado de costas para a plateia, a força envolvida em fumo e escuridão de Tom Heyes notava-se em todo e qualquer pormenor: na voz, e também no corpo. Afinal, estávamos diante um artista de mão cheia: também ele coreógrafo (notou-se, não se notou?), Heyes caminhou pelo público, sempre com o microfone e os membros em alta elevação, e até contou com a companhia de Rainy Miller. No final, saiu sem aviso e deixou apenas uma faixa a correr. Enigma ideal para deixar a marinar na cabeça aquela performance séria e completa.

Seguimos viagem para a última noite no São Mamede CAE, onde a organização teve de trocar a ordem entre Skee Mask, que tocou primeiro, e object blue. Dois DJs absolutamente geniais, sim, com o nome muitas vezes associado à Ilian Tape a assinar um dos grandes sets que ouvimos este ano. Imparável na variedade de faixas que misturava, mas sempre com coerência, o alemão nem permitiu que tirássemos notas: desde os breaks mais excitantes ao techno mais agitado e dinâmico (e até uma mais inclinada para dub techno), transcendemos numa verdadeira festa provida por Bryan Müller, sim, mas também pelo público.

object blue entrou depois com muita densidade e a provocar tal ofegação que nos afastamos um pouco da linha da frente. Nada disto é no mau sentido, atenção: a nipónica soube construir com pompa e circunstância um set que foi tomando conta das nossas entranhas e que, lá para o meio, já só obrigava a dançar e a deixar que o corpo fosse levado por aquela visão única.

Para fechar, o habitual residente do festival DJ Lynce deu-nos electro, breakbeat do mais duro ou até, por entre aquela panóplia envolvente, o que pareceu ser eurotrance, se bem nos recordamos. Exemplar a girar vinis, Lynce é um daqueles DJs que põe discos que não costumamos ouvir e que são muito bem-vindos, especialmente num festival como este.

Em parte, é disso que se trata o Mucho Flow: um só evento no qual podemos ouvir, ver e absorver as mais variadas explorações sónicas, que tanto alimentam Londres como o Porto ou muitas outras cidades. É único – até mesmo no público que o compõe – e é, por isso, passagem indispensável a cada ano. Venham daí tantas edições quanto possível.

Fotografias por João Octávio Peixoto / Mucho Flow

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