AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Conhecer, absorver e dançar com Mucho Flow

10 Novembro, 2023 - 17:33

Agora com três dias, o Mucho Flow continua a ser um dos destinos mais especiais a cada ano. Mesmo quando não conhecemos muitos dos nomes.

10 anos é muita história. Que o diga a Revolve, que organiza o Mucho Flow há uma década e que nunca cessou a missão de mostrar “música nova e de criar um espaço de comunhão”. Felizmente para nós e para os presentes, no início deste mês, ao longo de três dias, voltamos a comprovar o quão especial é o festival itinerante de Guimarães.

As novidades começaram logo na quinta-feira, como no facto de o festival somar mais um dia à celebração. No Centro Cultural de Vila Flor (CCVF), a instalação Atavic Forest, de Jonathan Uliel Saldanha ao lado do coletivo Lunar Ring e dos investigadores Gonçalo Guiomar e Zach Mainen, tomou os presentes de assalto em todos os sentidos, especialmente auditivos e visuais. Por entre uma floresta repleta de fungos ou cores algo impercetíveis, a imagem era feita por IA e respondia ao som em direto, contaram-nos, numa relação um-para-um que nos transportava de lá para um qualquer outro mundo. Parte da aprendizagem da IA estava nos efeitos que o LSD pode ter e, bem, certo é que a experiência, marcada por contrastes entre estática ou graves intensos, calmaria ou rapidez, foi psicadélica até mais não.

Ponto de partida ideal para um festival que prima pela novidade e espírito da sua curadoria, de tal modo complexo que não foi fácil partir para o foyer do CCVF para ouvir pablopablo. Acompanhado por baterista enquanto tocava guitarra ou teclas, o fenómeno espanhol passou por temas como Azul Zafiro, Mandela Place e Fuego, mostrando com clareza o alcance da sua voz e as razões pelas quais tem chamado tanto a atenção. O concerto foi intimista e bonito, mas o vigor e a exuberância de Atavic Forest acabaram por nos fazer abandonar a sala pouco antes do fim para assimilar o que tínhamos visto e ouvido enquanto regressávamos a casa.

Outra das bem-vindas novidades incluíram conversas, que aconteceram no final da tarde de quinta-feira. Nós já sabíamos, mas voltamos a perceber que faz sentido reservar os dias de Mucho Flow para nos dedicarmos de corpo e alma ao festival. É que, não desocupando a agenda, acabamos por perder essas conversas e as atuações de Canadian Rifles, Daniel Blumberg, Tormenta, Lucinda Chua e Leviatã Magnético ou Experiências em Automagnetofagismo. Mas mesmo perdendo alguns dos planos da organização, a experiência nunca deixa de ser rica e completa.

Assim, para nós, sexta-feira começou com Miguel Pedro, músico dos Mão Morta que conhecemos também por projetos como Fura Olhos ou por ter lançado recentemente “Clementina” pela Revolve. É precisamente por essa editora, que é ainda responsável pelo Mucho Flow, que irá sair o disco que o bracarense apresentou, ao lado de Jorge Coelho na guitarra, nas garagens do Teatro Jordão. “Sonofobia”, pudemos perceber naquele que foi um dos nossos concertos favoritos, é uma viagem que tanto nos remete para música concreta ou drone, como para metal ou a eletrónica mais espacial de outros anos. A trabalhar computador ou um instrumento que não identificamos com um arco, entre outros, Miguel Pedro conduziu uma progressão que no fim já nos remetia para mundos mais stoner. Palavras à parte, é no som que reside a beleza desta música e só podemos esperar por recordar melhor esta atuação com o lançamento do disco.

Seguiu-se Evita Manji, que passou por alguns temas do álbum “Spandrel?”, que editou pela PAN este ano. Hyperpop poderoso marcado pela forte presença da artiste sozinhe em palco, ile que dançava sem medo de uma plateia bem agradecida por ouvir temas como como Body/Prison ou Black Hole. Ainda nas garagens, a dupla Lost Girls, de Jenny Hval e Håvard Volden, podia ter sido mais certeira a nível de execução, mas não deixou de nos brindar com o bonito exercício dançável de pop eletrónico. O concerto do casal norueguês terminou com With the Other Hand, mas não sem antes passar por outras músicas do novo disco, “Selvutsletter”, como June 1996, Jeg Slutter Meg Selv e Ruins.

A menos de 10 minutos a pé do Teatro Jordão está o CCVF, onde iríamos apanhar dois concertos assombrosos e brilhantes. Primeiro, Heith. Acompanhado por outros dois membros em palco, Daniele Guerrini trouxe a eletrónica folk, psicadélica e até dura (mas nem sempre) que marca o recente “X, wheel” e o seu trabalho. Com um mundo apocalítico e enclausurado bem representado na tela, o italiano era acompanhado por instrumentos doidos (como um de sopro que não identificamos, provavelmente DIY) enquanto conduzia, também através da voz e da própria postura, um dos momentos mais macabros, mas convidativos, do festival.

E se Heith foi intenso, imagine-se Amnesia Scanner. O regresso da dupla a Guimarães foi caracterizado precisamente por aquilo que se espera deste projeto: contrastes loucos, que tanto nos levavam a rasgos de gabber como a breaks, strobes intensos ou imagens e letras rápidas nos ecrãs, para os quais nem conseguíamos olhar tal era intensidade, e energia sem igual. Difícil não ficar rendido ao duo que incluiu o Mucho Flow na tour de “STROBE.RIP”, álbum feito em colaboração com Freeka Tet, mas que nem por isso deixou de tocar temas como AS Too Wrong – ali mais acelerado, se a memória daquele universo à parte não nos engana.

O lado clubbing do festival acontece no São Mamede CAE e é outro dos pontos altos destes dias. Se noutros sítios podemos até ouvir nomes que nem sequer conhecemos, na vertente de clube é garantida a presença de DJs certeiros e que vão marcar os passos de dança sem quaisquer problemas.

Foi o caso na sexta-feira. Primeiro, LCY entregou um set algo mais rítmico, que passou por TSVI (Hossam) e LSDXOXO (Burn The Witch). OK Williams também assinou uma viagem exemplar e bem variada, talvez mais bassy, tocando um remix de Armand Van Helden a Monica (Ain’t Armand), Superstylin’, dos Groove Armada, ou até uma faixa de funk brasileiro mais para o fim. Àquela hora já estávamos mais perdidos na pista e com menos atenção às notas, mas King Kami fechou com chave-de-ouro, uma aposta certeira da organização que trouxe funk, bass e até um pontual psytrance rápido e duro, se não estamos em erro. Qualquer que seja a névoa que paire por aqui, sabemos que, mais uma vez, o São Mamede CAE ficou marcado por DJs capazes e enérgicas que trazem uma frescura a que o norte do país nem sempre tem direito em eventos como este.

Como referimos atrás, cometemos o erro de não desocupar a nossa agenda durante o Mucho Flow, pelo que o dia de sábado, para nós, só começou com Contour. Nas garagens do Teatro Jordão, este trouxe a poesia, a política (falou-se sobre racismo e houve direito a um “free palestine”), os discursos e a soul que marcam o seu trabalho, como o disco “Onwards!”, do qual tocou, por exemplo, Trench Prayer e Freedom Facade. Khari Lucas é especial, certo é, como tão bem mostrou naquele momento tão íntimo quanto sério e sincero.

O que se seguiria não estava escrito para quem não conhece Lunch Money Life. Bateria, guitarra, baixo, voz e sintetizadores, ambos bem DIY, doidos e cheios de parafernália associada. É assim que os londrinos se apresentam. Por entre In Jesus Name ou Fornication 20:46, a banda assinou um dos nossos concertos favoritos do ano, numa aventura difícil de descrever que tanto bebe de hardcore como de math rock e tanto mais, com muita evidência dada aos synths, que a certa altura até estavam a ser subjugados àquelas mãos. No fim, o quinteto pediu para esperar pois tinha t-shirts e vinis consigo – o que não sabíamos era que eles os iriam oferecer ao público que os conseguisse agarrar.

No Teatro Jordão, destaque ainda para o folk contemporâneo irlandês trazido pelos Lankum, banda de Dublin bem elogiada pelo público. Com direito a algumas palavras em português faladas por um dos membros, que é casado com uma pessoa brasileira, a banda tocou muito do mais recente “False Lankum” – fechou com Go Dig My Grave, por exemplo – e agarrou todos e todas com música que tem tanto de passado como de presente.

Seguimos viagem para o CCVF, onde estaria à espera Abyss X, outro dos nomes em estreia no país neste Mucho Flow. Infelizmente não nos agarrou e acabamos por não prestar muita atenção, mas pessoas presentes disseram-nos que poderia ter sido melhor – no Rimas e Batidas, por exemplo, Maria Carvalho notou a falta de empatia deste nome. Por outro lado, Aïsha Devi, sozinha em palco, assinou mais um concerto notável do festival, este assinalado pela voz, dureza, irreverência e contrastes que tanto nos levam a paisagens calmas como, na parte final, por exemplo, a um lado algo gabber, intenso e tão convidativo para o cenário em causa.

E quem diria que iríamos ouvir a música da Liga dos Campeões no Mucho Flow? Foi assim que Evian Christ abriu a atuação no São Mamede CAE, marcada também por uma instalação de 24 projetores assinada pelo designer visual Emmanuel. A visão trance do inglês esteve bem presente, remetendo-nos tanto para eurotrance como para lados mais techno e passando por temas do novo “Revanchrist” ou Egobaby, de Bladee. Esperávamos um bocadinho mais do que estava agendado para ser um live act, que pareceu mais um DJ set, mas não deixámos de ficar impressionados com mais uma escolha certeira da organização.

Antes daquele que terá sido um dos momentos altos de toda a história do Mucho Flow, Emma dj ainda nos brindou com mais um incrível e variado set no São Mamede, tocando faixas como BUGANÇA MINHA B*****, de BADSISTA, Phonky Tribu, de Funk Tribu, Crazy Frog, de DJ Swisha e Kush Jones, ou The Rhythm of the Night.

Talvez por viés de ter sido o último ato, ainda hoje o live de DJ Lynce nos corre nos cérebros. A tocar pela primeira vez neste formato a norte do país e para fechar o festival em beleza, o já residente Pedro Santos muniu-se de drum machine, 303 e efeitos para assinar um dos live acts mais excitantes que ouvimos este ano. À frente de uma instalação e luzes de André Coelho e João Dinis, o portuense trouxe muito acid e jungle, também fruto das suas influências, alguns samples ocasionais (como o inconfundível Dis Generation), tudo num momento que tanto nos poderia pôr atentos às manobras acid como à programação de ritmos (a certa altura até nos passou pela cabeça Vortex 150, de Special Request). De certa forma ainda mais direto para a pista, Lynce foi dono de corpos até às 6h, tudo ao som dos breaks mais estimulantes e das basslines mais delirantes. Nota 10, pois claro.

Não há dúvidas de que o Mucho Flow é um dos festivais mais especiais que temos por cá, particularmente para quem gosta de música desafiante, exploratória ou eletrónica. Mas o festival está longe de ser apenas isso. Também é comunhão, partilha e aprendizagem. Se muitos compram o bilhete antes do anúncio do cartaz ou sem sequer conhecer os nomes presentes, elas e eles é que estão bem.

Nós continuaremos a fazer o mesmo. Afinal, não é em todos os festivais que temos direito a uma curadoria tão certeira envolvida num itinerário e público tão enriquecedores.

Fotografias por João Octávio Peixoto e Jorge Nicolau / Mucho Flow

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