AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Entrevista

Filipe Baptista sobre “Remnant”: “Está arquitetado de forma intrincada, com vários eixos filosóficos e conceptuais”

19 Fevereiro, 2024 - 13:14

Assinou um dos nossos discos favoritos de janeiro e explica agora parte da história por trás desse trabalho. Este é Filipe Baptista em discurso direto.

Não faltam livros ou academia para aprendermos mais sobre a nossa relação e história com a tecnologia. Seja Donna J. Haraway com o seu “A Cyborg Manifesto”, Sherry Turkle a falar sobre o impacto que os ecrãs têm em nós ou até todo o universo que envolve a criação ou o nosso uso da internet enquanto indivíduos e comunidade. Mais recentemente, num outro formato, tivemos um português a falar-nos sobre essa relação.

“Remnant” é o primeiro disco de Filipe Baptista, mas não é de agora que o artista multidisciplinar lisboeta está envolvido no mundo da música. Nesta entrevista, o próprio descreve o seu percurso como “atípico”: trabalhou como performer e bailarino, envolveu-se em teatro e até em videojogos, e pelo meio estudou Informática ou Multimédia.

Agora, “Remnant” mostra mais do que as composições de Filipe Baptista, ou não fosse este um disco que “acaba por ser um artefacto que resulta da cristalização de várias memórias, sensações, perceções e ideias”. Um dos nossos favoritos de janeiro, é um trabalho repleto de detalhe baseado em gravações de campo ou nos frutos do estudo empírico que vem da relação homem-máquina deste nome.

Podes saber mais sobre a concepção do disco, parte do percurso, a visão de Filipe Baptista ou a relação com a ZABRA abaixo, nesta entrevista conduzida via email.

Este é o teu disco de estreia, mas, se não me engano, não é uma estreia total na música. Podes falar sobre o caminho que te trouxe até este “Remnant”?
Sim. A minha relação com a música e com o som tem de facto um percurso atípico. Começou tudo de uma forma muito espontânea, quando, ali por volta de 2017, comecei a experimentar construir umas batidas e a criar espaços sonoros à base de sampling. Na altura já trabalhava enquanto performer e bailarino e estava também muito ligado à cultura urbana (tanto na dança como nestas minhas primeiras experiências musicais). Um ano depois de estar a produzir em casa, uns amigos meus ouviram alguns beats e experiências mais ambient que tinha feito, e convidaram-me para tocar ao vivo num evento que estavam a organizar. No final desse evento, um encenador convidou-me para fazer a música para a próxima peça dele. Na altura, achei aquilo um desafio muito interessante e aceitei. E a partir daí os trabalhos e colaborações foram-se somando. Fiz desde então a composição e sonoplastia para várias peças de teatro, performance e dança, e até para outros tipos de media, como, por exemplo, videojogos. E nas minhas próprias criações (performances, instalações, peças digitais game-like, etc.) assumi também sempre naturalmente o papel do som pois sempre foi um elemento muito nuclear.

Pergunta da praxe: como foi todo o processo de composição e como é que tu próprio o defines e descreves?
Esta é sem dúvida a primeira criação minha que penso primeiramente como um álbum sonoro. Marca a minha primeira incursão nesta ideia de lançar definitivamente um disco e por isso é um marco especial para mim no meu percurso, por causa disso. A ideia já me tinha passado pela cabeça mas só agora com “Remnant” é que abracei a coisa de vez. E estou muito grato à ZABRA pelo papel preponderante que teve nisso.

O processo de composição em si foi bastante fluido e até que decorreu num curto espaço de tempo. Estava num lugar interno em que estava a processar, a sentir e a pensar muita coisa, e foi deixar fluir tudo isso. O álbum acaba por ser um artefacto que resulta da cristalização de várias memórias, sensações, perceções e ideias, que tentei tornar inteligíveis, e partilhar com todes, como que convidando a entrar num portal e trespassar o limiar que nos permite aceder a um infra-mundo onde existem geografias intangíveis e invisíveis que pulsam e que nos comunicam algo. Este projeto também faz a ponte para várias questões a ver com a relação entre seres orgânicos e ‘inteligentes’ com o habitat e a significação da sua existência na rede linfática que compõe tudo o que chamamos de ‘realidade’.

Ao fim ao cabo, o álbum traça um mapa e está arquitetado de uma forma bastante intrincada, com vários eixos filosóficos e conceptuais que serviram de base para armadilhar e engenhar o projeto. E isso está presente em vários aspetos. Mas apesar de haver este mapa encriptado, interessava-me que no resultado sónico final se sentisse toda esta matéria de uma forma imediata, visceral e profunda. E o processo para mim, inevitavelmente, foi todas essas coisas.

Como olhas para a relação homem-máquina e as suas possibilidades? Neste caso, a tua, mas sente-te à vontade para ir mais além.
Eu vejo como uma questão bastante natural e incontornável. Para mim, esta relação é percepcionada no dia-a-dia e veiculada, inevitavelmente, nesta ideia de criar mecanismos de expressão e de discurso (como uma performance ou este álbum, por exemplo). Mas, em simultâneo, não pretendo colocar isso como o centro do que pretendo comunicar pois acho que é algo que dispensa qualquer ‘exotificação’. Ou seja, desde o início da civilização humana que a nossa capacidade de criar ferramentas, utilizá-las e recriar técnicas, nos tem impulsionado a evoluir e a expandir em termos de capacidade criativa e de knowledge base em comunidade. E o que fazemos nos dias de hoje não é de todo diferente do que se fazia em civilizações ancestrais, apenas temos outras ferramentas e outros meios de operar sobre a realidade. E mesmo muitas das ferramentas e técnicas que hoje muito se falam já andam cá há algum tempo. Apenas estão a permear o nosso quotidiano de uma forma mais acentuada e determinante. O que é fascinante.

Mas escolhendo assim uma ideia relativamente a essa relação Humanidade-Máquina, diria que pode ser a possibilidade de chegarmos a diferentes lugares e de encontrar novos limiares que podemos transgredir do ponto de vista do conhecimento e da perceção, quando interagimos com diversos mecanismos. A alquimia, a manipulação da matéria, a indução de informação, a interação com outros corpos (humanos ou não) e a extrapolação de significado dessas experiências é algo que não só está altamente ampliado nos dias de hoje pelas máquinas e pela ‘tecnologia’ de modo geral, como está mesmo na base da nossa espécie. E esta cadeia e estes processos práticos de tornar informação inteligível e consequente está na base de muitas das interfaces com que interagimos diariamente, e também na base do que acontece dentro do nosso corpo e nos demais seres vivos. É algo transversal e de certa forma atemporal também.

A questão das máquinas numa era digital traz também esta questão da plasticidade que é possível ter sobre a informação e a matéria-prima que reúnes para criar. Como, por exemplo, reunires vários sons ou imagens e processar essa matéria digitalmente, transfigurá-la e emaná-la através de várias formas e escalas. Esse polimorfismo da data e a transmutação de matéria que é possível através de técnicas digitais é fascinante. É uma espécie de neo-alquimia. Podes, por exemplo, construir uma máquina com olhos (câmeras ou sensores i.v.) e ouvidos (microfones) e usá-los para recolher uma interpretação prática da realidade (à tua escala ou não). Depois, digitalmente, podes cruzar informação sonora com informação visual, ter uma coisa a afetar e a retro-alimentar a outra, e programar uma sistema que transfere informação de um meio material para o outro. Para além de conseguires pegar nessa matéria, nesta data recolhida, e ampliá-la no espaço (através de amplificação sonora e visual, com recurso a projetores e monitores de som). Isto foi, na verdade, o princípio técnico por trás da minha peça VESSEL. Essa capacidade de usar a tecnologia ou construir máquinas que medeiam e transfiguram informação é maravilhosa. Pois entra em questões da relação do humano com o extra-humano, com as diferentes escalas e formas de matéria, com o visível e invisível, etc. E isso está presente também no nosso dia-a-dia, desde os dispositivos que carregamos connosco a um espaço que está arquitetado para induzir uma experiência específica, em comunidade. Isso para mim é o mais interessante e fascinante aliado ao potencial de expansão da nossa consciência e percepção.

Diria que este tema da tecnologia em proximidade com a humanidade ou a natureza te é próximo, pelo menos a julgar por este e até outros trabalhos sobre os quais li na preparação destas perguntas, como é caso dessa performance “VESSEL”. Estou enganado?
Não estás de todo enganado. Tudo o que gravita à volta dessa questão permeou e permeia todas as minhas peças anteriores e está muito presente naquilo que é neste momento a minha investigação. Sinto que ao longo do tempo as peças foram tendo uma roupagem diferente, conforme fui maturando diversas questões. Nessas peças anteriores, e muito no caso do VESSEL, como mencionas, essas questões estão igualmente lá, mesmo que não convoque à superfície e de uma forma tão direta esses elementos naturais. Eles não se ouvem nem se vêem de forma evidente, mas a ideologia operacional e a extrapolação conceptual à volta da relação desses elementos é o que confere todo o senso e forma à peça. É precisamente sobre essa relação de proximidade, ou, diria até, de percepção unificada desses mesmos elementos. Pensamos muitas vezes na tensão de opostos. Eu próprio por vezes organizo o meu pensamento assim, até para comunicar algumas ideias. Mas, no fundo, isto é uma peça sobre a não-dualidade, da dissolução das fronteiras daquilo que é humano, animal, natural, orgânico, sistémico, físico, imaterial. É nessa navegação de limiares que me interessa dialogar.

Estiveste também envolvido em dança. Podes falar sobre essa experiência e sobre como ela te influenciou e o teu trabalho?
Sim. Eu acho que a presença da dança no meu percurso foi importante pois foi por onde comecei a pensar e a experimentar muito com o corpo, não só internamente, mas em relação com o espaço e com os outros. E foi também o meu primeiro meio de expressão que surgiu de um apelo muito visceral e prazeroso. Esta ideia da endogenia, que tem que ver com a invocação de energia e matéria que transferes e manifestas do interior para o exterior, são processos que acabam por ser muito centrais para mim, já desde essa altura. Normalmente não penso muito nisso, mas foi algo que me fui apercebendo e reconhecendo ao longo do tempo. Quando toco ao vivo ou faço a sonoplastia num teatro também penso muito na fisicalidade do som, de como ele se propaga no espaço, e do exército específico de material que vais convocar para emanar aquilo que pretendes. É uma engenharia muito específica a cada caso. E acho que essa ideia de trabalhar a presença destes corpos sonoros a um nível tão detalhado, prático e vibracional se prende com questões que fui sentido já desde essa altura, mesmo que na altura não pensasse ainda em trabalhar com som. Talvez isso possa ter uma relação.

Como surgiu o convite e a ligação à ZABRA?
Ora, nós conhecemo-nos pessoalmente no final de 2021. Foi depois de ter ido ver ao vivo a peça “Echos From a Liquid Memory”, da Carincur, e ter ficado completamente rendido ao que tinha acabado de assistir (até hoje ainda é das peças mais belas que alguma vez vi e ouvi ao vivo), que decidi no final ir ter com ela e com o João Pedro Fonseca e apresentar-me. Tu nunca sabes muito bem como é do outro lado, mas do meu eu sentia que nós tínhamos mesmo de nos conhecer, pois senti uma proximidade muito grande naquilo que é o território de experimentação que estava ali em jogo. Foi muito bom descobrir artistas que senti que partilhavam questões semelhantes às minhas e que trabalhavam com técnicas e materiais semelhantes aos que estavam a usar na minha investigação. E depois eles tinham toda aquela excelência plástica, então isso foi altamente sedutor.

Eles foram super simpáticos e marcámos uma reunião no espaço físico da ZABRA para nos conhecermos melhor e foi uma ressonância mútua e imediata. Passado algum tempo recebi uma mensagem do João a dizer que estavam interessados em editar em disco uma peça minha (de um outro projeto que fiz) e isso foi-nos aproximando. Entretanto convidei o João para fazer o desenho de luz de uma peça minha, o VESSEL, e por esta altura recebi também o convite da ZABRA para integrar o coletivo enquanto artista residente. O João colaborou na minha peça, eu colaborei na peça seguinte da Carincur (“Body as a Frozen Metaphor”), e aqui estamos. Tem sido um caminho de colaboração mútua e pelo qual estou muito grato por poder ter a ZABRA enquanto estrutura que apoia e permite não só carburar conceptualmente como dar condições para desenvolver e apresentar o meu trabalho, bem como colaborar com elxs. São pessoas e artistas que muito prezo, não só pela extrema afinidade conceptual e artística que existe, mas por esta oportunidade de experienciarmos esta troca e fazermos parte do caminho uns dos outros. Tem sido uma viagem incrível.

Fotografia por João Pedro Fonseca

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