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Entrevista

Gonçalo F. Cardoso: o dono disto tudo do underground experimental

25 Novembro, 2020 - 12:01

Gonçalo F. Cardoso é dono da Discrepant, influente e tentacular label que une artistas do underground um pouco pelo mundo inteiro para nos trazer o que de melhor se faz na música longe dos holofotes.

Além de gerir a Discrepant e as respetivas sub-labels, Sucata Tapes, Souk, Farsa Discos e Pacific City Discs, Gonçalo F. Cardoso é também um pioneiro daquilo a que chama “Gonzotronics”. Trata-se de um estilo de eletrónica na primeira pessoa, construída através da fragmentação e manipulação altamente subjetiva de field recordings, combinando estas técnicas com o uso de um vasto arsenal de sintetizadores mais ou menos antigos. Se Hunter S. Thompson foi o pai de Gonzo, Gonçalo F. Cardoso terá seguramente sido a mãe.

Cabecilha de personagens como Gonzo, o seu alter-ego mais prolífico, o fundador da Discrepant criou também várias outras manifestações de si ao longo do tempo. Papillon é uma delas, e faz uma reinterpretação sonora do romance homónimo em três partes. Prophetas, a sua lente fragmentada documental mais séria, conta já com duas explorações distintas no som, tempo e espaço, “Reveal, Accept, Remember, Forget” e “Maury Island Reverie”. Embora menos conhecido mas igualmente hipnótico, Visions Congo tem apenas um álbum, “Mulago Sound Studio”, mas o artista espera produzir uma sequela quando voltar a África. Em conjunto com Alex Jones (não, esse não, o músico), integra a dupla Hair & Treasure. Já com Ruben Pater, compôs “A Study into 21st Century Drone Acoustics”, um trabalho mais formal onde tenta transfigurar o conceito de álbum-catálogo de ruídos de pássaros para o universo dos drones. Além de tudo isto, publicou ainda alguns projetos em nome próprio, como “Impressões De Uma Ilha (Unguja)”. O seu último projeto, Lagoss, reinventa a música tropical e foi apresentado no MAAT no âmbito da exposição “Sound Capsules”.

Nesta conversa, que podes ler abaixo, Gonçalo F. Cardoso fala sobre o seu percurso e o da Discrepant até aos dias de hoje, entre uma série de outros tópicos.

Foram mais de 10 anos para chegar até aqui. Como é que surgiu a Discrepant?
Basicamente, eu sempre estive ligado à música, mas afastei-me porque em Londres estava mais na indústria cinematográfica. Estudei filme e produção musical para filmes e comecei a trabalhar aí até me fartar, essencialmente. A Discrepant começou como um blog, isto há 12 anos, de mixtapes, portanto, coisas que não eram para dançar, mais para ouvir em casa. Era um registo mais experimental, com um bocado de noise, colagens, spoken word e coisas do género. Comecei a pô-las online, e comecei a ter atenção, especialmente no início do SoundCloud, quando era uma coisa mesmo para DJs. Era quase tudo no SoundCloud e no antigo site da Discrepant, que já não existe. A partir daí, comecei a convidar outros artistas que achava que faziam coisas do mesmo género para participar nas séries de podcasts, mas em formato de mixtapes (ninguém falava), um bocado como um programa de rádio à moda antiga (sem locutor).

Como foi a primeira experiência de lançar um artista?
É assim, eu escrevia uns textos, reviews e críticas a certos artistas, até que convidei o King Gong, que é o Laurent Jeanneau, para lançar um álbum para pôr em vinil, uma coisa que eu tinha ouvido num podcast da Touch Records, que é algo que eu acho que eles ainda fazem. Conheci-o, fui a Paris uma vez que ele também estava lá para uns concertos, e lançamos o disco, “Xinjiang”, baseado em gravações numa zona que agora está muito com polémicas com os Chineses onde vive a comunidade Uyghur, ou seja, no Xinjiang, no noroeste da China. Ele foi lá e fez as gravações da comunidade Uyghur e Kazakh. Ele tem a label dele, onde lança as gravações “cruas”, os field recordings, com os artistas e tudo, e depois tem outro trabalho onde faz uma espécie de colagem surrealista dessas gravações, que é o que eu comecei a lançar na altura, quando ninguém estava a lançar o trabalho do Laurent. Isso foi em Dezembro de 2010.

Eu não fazia a ideia de como era ter uma discográfica, nem percebia de distribuição. Estava eu a vender o disco, fizemos 300 exemplares, ia às lojas deixar o disco, contactava distribuidores, e ninguém me ligava nenhuma até que uma americana me pegou no disco e encomendou quase tudo, a Forced Exposure nos Estados Unidos, e a partir daí o disco esgotou. Portanto, o primeiro disco foi um sucesso, teve uma review na Wire, logo o primeiro disco do catálogo. A partir daí as coisas não foram tão fáceis, arranjei distribuição com a Cargo, comecei a lançar mais discos. Estava numa média de seis discos ao ano, tudo artistas que me interessavam.

Hoje em dia, em 10 anos, tenho quatro sub-labels da Discrepant: a Sucata Tapes, que é só cassetes, a Souk, que é uma coisa mais global beats mas mesmo assim com um lado experimental, a Farsa Discos, comecei agora outra com o Spencer Clark que é a Pacific City Discs, onde ele é o curador do catálogo e eu faço a produção, e vou começar mais outra com amigos aqui de Tenerife chamada Keroxen. Portanto, são quase 5 sub-labels e eu lanço uma média de um disco por mês, às vezes três. É um bocado uma loucura, mas também…é o meu trabalho não é? [risos]

E tanto melhor, agora mais do que nunca. O que é que achas de toda esta multitude musical?
Eu às vezes preocupo-me com a quantidade de música nova que se vai fazendo, porque considero que há muita música e que é difícil possuir todo esse mar de música nova, mas agora com os Bandcamp Fridays e com a pandemia as pessoas começam a dar mais atenção ao que se faz por aí. Acho que o balanço tem sido positivo do lado da música, isto falando fora do circuito comercial, claro.

Achas que é assim em todo o lado?
Não posso ter a certeza de que é assim em todo o lado, mas falando especificamente de música em casa, ou seja, das pessoas quererem finalmente pagar para ouvir música, começa a haver a noção de que, por exemplo, o Spotify é uma vantagem por ter tanta música disponível mas não vem num formato que ajude nem os artistas nem as discográficas, pelo menos não os pequenos, já que os grandes já têm tudo controladíssimo. Acho que o grande problema da pandemia é a falta de eventos, e por isso é que quando falei em balanço positivo estava a falar especificamente num aumento de interesse e de vendas de música mais underground. Por exemplo, com os Bandcamp Fridays agora acontecem imensos lançamentos de álbuns nas primeiras sextas-feiras de cada mês, há 400 ou 500 álbuns novos só nas vertentes mais experimentais e aventureiras.

Portanto sim, eu acho que é em todo o lado, mas eu também só posso falar por mim e a minha visão é de alguém que está a viver numa ilha quase no meio do Atlântico e que consegue chegar a vários cantos do mundo com o fruto do seu trabalho. Mas tenho noção de que no início da pandemia, por causa do fecho das lojas de discos e afins, as coisas estavam muito complicadas para muita gente no nosso setor. Mas eu comecei também a ver que se vendia muita mais música online, e que pouco a pouco as pessoas estão a comprar mais discos. Acho que há uma sede por música nova e por formatos de arquivo como o vinil, espero que fique assim.

Tens uma ideia do aumento de vendas que aconteceu na Discrepant?
É complicado, porque sou um péssimo contabilista, que é um problema para alguém que tem uma discográfica [risos]. Mas eu diria que aumentou uns 20%, essencialmente em vendas digitais, atenção, talvez de streamings e sobretudo na venda de cópias físicas. Isto nos meados da pandemia, porque eu lembro-me que, quando passei a quarentena toda em Lisboa, eu tinha de ir várias vezes por semana aos correios enviar os discos, porque vendiam imenso. Quando eu digo vendo imenso, quero dizer mais do que normalmente vendia, também não vou dizer que estou aqui tipo Amazon, mas vendia mais do que vendia antes, e em venda direta, o que é muito importante para uma label pequena porque nos oferece margens muito maiores.

Como é que começou o teu percurso com a música?
Eu sempre tive bandas. Desde as primeiras bandas punk, que eram mesmo só estar ali a dar tudo, passando depois ao lado da improvisação, onde os conceitos eram todos diferentes, isto para aí há 20 anos. Depois fiz uma pausa, e depois dessa pausa comecei a fazer música, sobretudo eletrónica, principalmente com instrumentos samplados, mas não lançava nada. Foi quando comecei a discográfica que ganhei coragem para lançar e para revisitar coisas que tinha produzido ao longo dos anos, quando já começava a haver alguma coisa lá. Ao princípio, foram lançamentos tímidos, de cassete. O Dies Irae, por exemplo, foi uma cassete de 60 exemplares acho eu. Depois fui continuando, através de outras cassetes e colagens, até encontrar talvez essa voz que me faltava na altura.

Sei lá, às vezes até lhe chamava Gonzotronics, por ser uma interpretação muito Gonzo, no sentido do Gonzo Jornalismo, muito por ser aquela coisa em primeira pessoa inteiramente subjetiva. Eram memórias minhas, subjetivas, de sítios onde estive ou onde gostava de ter estado, vistas através duma lente fragmentada. Porque eu considero que nós nunca nos lembramos das coisas tal como elas realmente o são, estamos sempre ou a idealizá-las ou o contrário. Portanto, nesse caso, comecei com o Gonzo, até que comecei a ter mais ideias. Gosto muito de alimentar os meus trabalhos com conceitos, ou seja, de criar lore, na forma de histórias e de mundos, para servirem de base para cada projeto ou ideia musical. Foi isso que me levou a acabar com o projeto do Gonzo, por achar que já tinha chegado ao seu ponto depois de 10 anos, e agora essa personagem serve mais para fazer DJ sets. Não quero publicar mais álbuns sobre o nome de Gonzo também para dar mais espaço aos meus outros projetos.

Fala-nos um bocado sobre esses projetos, como surgiram, o que é que os distingue…
Há projetos que só vão ter um álbum. O Papillon teve três, e acho que acabou a triologia. O Prophetas começou agora, e em princípio vai ter uns quantos, calculo, porque é onde estou mais dedicado. Prophetas soa um bocado como Gonzo, mas com uma temática diferente, já que o Gonzo era um lado muito mais brincalhão e pouco sério, e o Prophetas não. Também tenho o Hair and Treasure, que é uma banda no espírito noise dos anos 2000 com um lado drone e também um bocado brincalhão. Para além disso, temos Visions Congo, onde estou a tentar fazer um novo álbum mas não está fácil porque fiz o primeiro quando estive seis meses a viver no Uganda e sinto que tenho de estar nesse meio para poder desenvolver essas ideias, apesar de ainda ter gravações que quero explorar.

Também lancei em nome próprio, como Gonçalo Cardoso, ou melhor, Gonçalo F. Cardoso porque, se fores ao Google, deve haver praí 20 milhões de Gonçalos Cardoso [risos]. Lancei um álbum conceptual sobre o uso de drones, “A Study into 21st Century Drone Acoustics“, praí em 2015, que chegou a ganhar prémios como o da Ars Electronica em 2017. Era um estudo mais sério e essencialmente um catálogo sonoro de como soa cada drone. Portanto, a ideia era replicar aqueles álbuns antigos de pássaros, feitos para as pessoas reconhecerem os barulhos dos pássaros, onde alguém diz “este é um corvo” e ouve-se o corvo a fazer o barulho. Este é exatamente a mesma coisa, mas com o som de drones, com aquela ideia de que o som dos céus está a mudar. No primeiro lado temos esse catálogo, e no segundo está uma composição minha que representa de maneira conceptual a fabricação de um drone até à conexão e a fazer o que tem a fazer, seja enviar bombas ou espiar na outra ponta do mundo. Esse álbum, pelo seu lado mais geopolítico e intervencionista, teve bastante atenção e também fizemos um catálogo com poemas, foi uma coisa assim bem pensada.

Acabaste por fazer um percurso musical de transição, então, das bandas para o lado dos sintetizadores e da música eletrónica?
Sim, porque embora gostasse de saber tocar um instrumento hoje em dia, e apesar de saber tocar guitarra de forma rock punk e não o fazer, eu sou é obcecado com sintetizadores. Tenho alguns aqui, em Tenerife, por exemplo, e outros espalhados por vários sítios, porque antes da pandemia eu estava sempre a circular entre três pontos: As ilhas, Tenerife, que agora é onde tenho o meu estúdio principal que antes era na Gomera, Lisboa, onde também tenho sintetizadores e coisas, e Londres, onde tenho ainda muita coisa, apesar de ultimamente não ter conseguido ir lá por causa da pandemia.

Mas essencialmente, a minha estética é ligar tudo e fazer uma fusão de sons sintetizados com sons naturais, com muitas gravações de campo, que hoje em dia são facilitadas pelo facto de ter sempre um telemóvel à mão, que é sempre mais discreto do que um gravador. Antigamente, sempre que sacava de um gravador, as pessoas ficavam sempre curiosíssimas e mudavam logo de atitude.

Um bocado como acontece com as máquinas fotográficas?
Sim, mas com as máquinas fotográficas isto acontece numa intensidade muito menor, porque com uma máquina fotográfica as pessoas posam, com um gravador as pessoas não percebem, tu dizes que é um gravador e depois começam a falar por causa disso. E, hoje em dia, eu deixo sempre tudo na gravação, ou seja, se estiver a gravar alguma coisa e alguém falar comigo, eu respondo, e não corto isso, se o som for bom. Ou seja, deixo as coisas exatamente como elas se passaram. E é essa a fundação principal do meu trabalho, a gravação dos sítios onde estive.

Profissionalmente, sempre trabalhaste com som e música?
Sim, com música e cinema. Trabalhei uns seis anos com montagem e tratamento de vídeo em Londres, numa empresa de pós-produção. Ainda fiz bastantes trabalhos de design sonoro, para pequenos vídeos corporativos e anúncios, mas hoje em dia cada vez mais estou dedicado à Discrepant e à música porque agora, uma das razões para vir viver aqui para as Canárias onde as coisas são mais baratas é ser mais fácil dedicar-me à label e áquilo que gosto de fazer, o que não poderia fazer numa cidade como Londres, Lisboa, Madrid ou Barcelona por ser impossível viver com o pouco dinheiro que se faz. Portanto, acho que encontrei uma solução para me aguentar sem ter de recorrer aos outros trabalhos que tinha de fazer para pagar as contas quando vivia, por exemplo, em Londres.

Como é que o impacto geográfico de mudar de lugar se manifesta nas tuas produções e no teu processo criativo?
Acho que tem um impacto enorme, especialmente no meu processo criativo. Sobretudo antes da pandemia, eu não parava, estava sempre a pôr-me em sítios e em situações diferentes. Gosto de sentir-me desconfortável, nem que seja para dar valor ao estar confortável [risos]. E acabo por ter contactos e amigos pelo mundo inteiro, especialmente com músicos, e aproveito essa conexão musical para ir mudando de meio. Porque apesar das pessoas hoje em dia terem esta ideia de que a música experimental está focada em centros culturais como Nova Iorque e Londres, a verdade é que ela está espalhada pelo mundo inteiro, costuma é ter muito menos saída. É só olhar para a Selección Magnetica, por exemplo, ou para as Antologias de Música Atípica Portuguesa, tanto o primeiro como o segundo volume, para perceber isso.

Por exemplo, agora estou a fazer um álbum compilado pelo Francisco López, que já tem vários trabalhos, onde são só temas de música ou, como ele lhe chama, pseudomúsica, dos sítios mais extraordinários. O Lichtenstein, o Guam, ilhas no Pacífico completamente perdidas, Oman, e no geral sítios com sonoridades surpreendentes para qualquer um. Portanto, para mim, o impacto geográfico é essencial, e aliás interessa-me. Neste momento, a minha criação já originou outro projeto, o “Lagoss“, uma colaboração entre mim e mais dois artistas de cá, o Mladen Kurajica e o Dani Tupper, e é uma espécie de reinterpretação da música tropical numa ilha, ou seja, são ficções tropicais que não têm nada a ver com o que uma pessoa esperaria de música tropical. Mas, como nós vivemos aqui, damo-nos ao luxo de interpretá-la um bocado à nossa ideia, um bocadinho naquele espírito meio pervertido de revirar as coisas. É um álbum complicado de ouvir, muito denso, já tem muito beat, como uma espécie de Flying Lotus mas muito mais denso, e com um lado tropical de gravações de campo que eu fiz aqui ao longo dos anos para acentuar esse lado da ilha não explorada, um bocado imaginária, uma ilha fantasma. Portanto sim, a localização geográfica é tudo para mim, a inspiração vem muito de estar num sítio pouco habitual.

Este álbum, o Lagoss, vai ser apresentado no final do ciclo das Sound Capsules no MAAT. Como é que estão a correr as exposições sonoras da Discrepant lá?
O problema principal do MAAT foi a lotação. E isso foi uma pena, porque para além de atrasar tudo, a pandemia reduziu uma lotação que podia ser de 500 pessoas para 25. Mas ao mesmo tempo é bonito ver que as pessoas ainda têm interesse em ver um concerto apenas pelo concerto, porque aquilo é literalmente ver o concerto e ir-se embora. Não há bar, e de resto acho que tem sido assim em todas as salas grandes com lotação pequena. Mas acho que os concertos têm sido excelentes, estiveram de acordo com as expectativas que tinha, com a programação que fiz, e com aquela ideia de quebrar a noção de que a tradição e o folklore é uma coisa estática, uma coisa rija. Eu não acredito nisso, acredito que o folklore é uma mutação constante, que daqui a 20 anos vai ser uma coisa completamente diferente daquilo que é hoje. Portanto, a ideia é essa. O último concerto foi de Ondness e dos Folklore Impressionista, que fizeram cada um a sua interpretação do passado, do presente e do futuro.

O próximo vai ser Lagoss e Spencer Clark, como Star Searchers, que faz também uma reinterpretação daquela música new age aquática, com movimentos de peixes, mantas e criaturas aquáticas no geral. Tem corrido bem, tem sido uma boa colaboração e é bom ter isso nestes tempos de pandemia, porque eu tinha com a minha outra label, a Souk, uma tournée marcada para começar em março, com datas marcadas em Londres, Roterdão, Amesterdão, Bruxelas, Berlim, Lisboa, Barcelona, enfim, imensas datas, que foram todas à vida, o que é uma pena porque era um lado que eu queria promover um bocado mais, que é o dos eventos. Mas claro que tenho consciência de que a música ambiental não é própriamente o que vende mais, mas enfim, é o que é.

E tencionas reprogramar estes eventos?
Sim, mas não faz sentido fazê-lo com a pandemia nem com as restrições vigentes. Até porque eu queria tratar isso como uma tour de apresentação, com os artistas todos. Tínhamos o Mukata, o Only Now, da Califórnia, que faz uma espécie de kuduro com toques de black metal e sound design violento, apesar de ter um lado mais drone em duo com o Orogen e ter lançado coisas como o “Avuls“, que sai dia 9 de Outubro, no mesmo dia que o Lagoss. Depois havia o Ross Alexander, que faz uma espécie de dub à la muslim gonzo, e também tínhamos Ondness. Tudo em boas salas, 300 pessoas máximo, cheio de boa atitude… estava impecável. Foi bastante tempo de programação, com as datas e tudo mais, com muito apoio de promotores locais, e foi uma pena ter ido tudo ao ar, mas seguramente esperando que as coisas acalmem a coisa vai ao sítio. Em termos de concertos sentados, no lado mais experimental, vai haver a apresentação do Lagoss no dia do lançamento, ou seja, 9 de outubro, no MAAT.

Entretanto, temos dois concertos sentados cá nas Canárias, um mais pequeno e outro com as pessoas com quem estou a trabalhar aqui, que é o festival Keroxen, que vai acontecer em novembro e dezembro num tanque gigante de querosene, antigo e vazio, transformado numa sala enorme, com propriedades sonoras únicas como uma reverberação de 10 segundos pela sala inteira, o que é ótimo para programações mais ambientais. Eles já levam 10 anos de concertos, promoção e afins, e como deves imaginar, se as coisas são pequenas em sítios como Lisboa, imagina aqui numa ilha. Mas há! E num sítio tão espetacular como o tanque, como nós lhe chamamos, existirem concertos tanto de artistas internacionais como nacionais, é um fenómeno cultural com bastante impacto.

Existem temáticas mais gerais ou recorrentes no teu trabalho, como as referências literárias, a exploração da paranóia, o surrealismo, entre outras. Que temas é que pensas voltar a explorar, e porque é que escolheste os anteriores?
É tudo bastante simbiótico. No caso do Papillon, por exemplo, foi um livro de que sempre gostei, e já tinha lido aquilo em miúdo. Comprei um sintetizador novo, e estava a lê-lo pela décima vez, e então decidi fazer alguma coisa inspirada naquilo. O álbum foi feito em dois dias, a ler o livro, a tocar, gravar, fazer solos sem vergonha de sintetizador, com uma aura bastante mística alimentada pela falta de sono que tive ao longo do processo. Muitas vezes, as minhas inspirações vêm de três fatores que eu prezo muito na minha vida, que são os livros, os filmes e as viagens. Portanto, essas três são os cliques criativos. Alguma coisa que eu esteja a ler, às vezes até uma frase que me inspire, ou um filme. No Papillon, foi a história do Charrière que eu levei para o meu lado de “pesadelo tropical”, a explorar a perseguição cruel de um governo altamente cruel com os seus cidadãos.

Quanto ao Prophetas, foca-se mais na memória, na fragmentação de um futuro que começou no passado, e tem muito a ver com clichés, que era algo que o Gonzo usava muito, seja o cliché turístico, ambiente, de música, enfim…é um projeto que me demorou bastante a aperfeiçoar, porque mesmo sabendo que queria explorar aquele lado mais distópico que acabamos por estar a viver agora, não tinha encontrado ainda a estética sonora, que acabei por definir dividindo os sintetizadores que usei para produzir os dois primeiros álbuns em épocas específicas, uma onda mais anos 70 no primeiro e mais anos 80/90 no segundo. Espero produzir outro com máquinas dos anos 2000, e um último com coisas mais atuais, com um som bastante mais limpo e uma produção sofisticada, aquilo a que agora se chama de “desconstrução”. O Spencer Clark, por exemplo, já explorou este lado quase apocalíptico da civilização.

A nível de projetos atuais, temos uma co-produção entre a Discrepant e a Keroxen, focada em lançar música das Canárias. O primeiro álbum, aliás, não é das Canárias mas foi gravado cá, com gente com quem eu já trabalhei como Romperayo, Meridian Brothers, sempre com um lado tropical psicadélico, e gravaram um álbum com uma banda daqui que só deve sair para o ano. Tirando isso, tenho álbuns a sair quase todos os meses, sempre com o critério de ser música que me interesse e que se enquadre na temática da Discrepant, o que acaba por juntar uma variedade incrível de artistas dos mais diversos campos da música, como a fusão entre a eletrónica e a música tradicional grega do Tasos Stamou, ou a guitarrada mais ambient exotic do Mike Cooper, que foi quem mo apresentou e com quem já lancei vários álbuns, sendo o último o “Tropical Gothic“. O Tasos faz uma música grega experimental desconstruída, que é uma coisa que eu aprecio muito no trabalho dele, a reinterpretação de música tradicional grega por um grego. O primeiro álbum, AMAN!!!, é música tradicional decrépita, enquanto que o segundo explora mais a desconstrução da afinação dos acordes mais comuns no bouzouki grego, que são D. A. D. e, no caso dele, foi pai enquanto estava a trabalhar no disco, e portanto as coisas juntaram-se. AMAN!!! tem muito a ver com reinterpretar a rebética, que é música dos anos 20, mas muito mais subtil, e é tudo feito pelo Tasos e pelo Thodoris Ziarkas, que toca com ele.

Para finalizar, o que é que andas a ouvir ultimamente?
Muito trabalho que vai sair no futuro, ou seja, masters e coisas que ando a fazer. Tenho ouvido muito reggae [risos], especialmente dos anos 80. Tenho ouvido também o último álbum do Nicolas Jaar, o “Telas”, e outro chamado “Pomegranates”, que é um dos meus álbuns preferidos dos últimos anos. Também muitas previews de coisas que me enviam, e um álbum do Pedro Augusto chamado “Duas Vozes”, que saiu pela Lovers & Lollypops, e é só de sintetizadores modulados, muito bom para relaxar. Também tenho ouvido um produtor egípcio chamado 3Phaz, que lançou agora um álbum que segue muito a onda de música popular eletrónica árabe, para casamentos e afins. Para além disso, Bogdan Raczynski, Duval Timothy, álbuns antigos de Spencer Clark como o Tarzana ou o Fourth-World Magazine… o último álbum de Neil Young também é excelente! [risos]

Fotografia captada e cedida pelo próprio

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