Inquieto pelos melhores motivos, Diogo passa discos, produz música e trabalha em projetos como a revista PISTA. O novo trabalho chama-se “FINALMENTE!” e foi parte da motivação para esta conversa.
Diogo Vasconcelos formou-se em arquitetura, mas aos poucos começou a largar essa área para se “dedicar mais à música e ao DJing”. Hoje, é um nome indissociável da cultura clubbing nacional, não fosse ele DJ e produtor, certo, mas também o grande responsável pela única revista impressa dedicada a este mundo nos últimos anos, a PISTA!.
Membro da Extended Records, Diogo editou recentemente “FINALMENTE!” pela sub-label Discos Extendes. Este é um disco que caminha por algumas das sonoridades pelas quais o fafense baseado em Lisboa nutre especial paixão, mas isso não significa que o trabalho “seja um puro reflexo da sua persona musical”, como explica nesta conversa.
A produção chegou mais tarde do que o DJing, mas Diogo tem hoje vários trabalhos no currículo, como é caso de “Roçadas” ou “Sempre Para Diante”. Ainda assim, este nome não se fica por aqui – afinal, tanto o podemos ouvir a tocar em espaços como A Capela, no Bairro Alto, como a trabalhar no recente projeto “Tilt-Shift”, na cidade que o viu crescer.
À conversa com A Cabine, via email, Diogo falou sobre as motivações que o levaram à criação da PISTA!, música, produção, o disco “FINALMENTE!” e até sobre a importância que a partilha com o outro tem para si, entre outros tópicos.
Olho para ti como um estudioso, nem que não seja pelo trabalho desenvolvido na revista PISTA. De que forma é que isto influencia as tuas ações dentro da cultura clubbing nacional?
Agradeço a lisonja, mas não sei se me posso considerar um estudioso. Não me considero um entendido em coisa nenhuma, no entanto há sim uma grande curiosidade que nutro por todos os fenómenos que vão acontecendo à minha volta. Desde os tempos em que estudei arquitectura, sempre tive um grande interesse pela área da investigação. Arquitectura é um curso super prático e, grande parte das vezes, há até uma certa negligência pelas questões em torno da teoria. A mim sempre me interessou esse aprofundamento. Durante a faculdade envolvi-me numa revista de estudantes (a revista NU), então em torno desses assuntos da teoria e crítica de arquitectura. Aí redigi vários artigos e entrevistas, fui editor, aprendi a fazer grafismo e cheguei a fazer parte da direção. Aquilo sempre me deu muito gozo. Era super estimulante poder pensar e discutir arquitectura para além do pragmatismo inerente à disciplina, e a revista dava-nos a oportunidade de aprofundar, com independência, alguns temas que no decurso da nossa formação eram muito marginais.
Ora, quando começo a largar a arquitectura e a dedicar-me mais à música e ao djing, começo a sentir novamente a necessidade de aprofundar alguns temas. No mundo da música, amplificado pelas plataformas digitais, tudo corre com uma velocidade alucinante… Muitos estilos e abordagens, nascem, morrem, renascem, são misturados e recombinados em formas híbridas… É tudo muito instantâneo… E para mim fez sentido criar um meio que, por um lado, fixasse tudo aquilo que eu via que se estava a passar à minha volta, e que ajudasse a desacelerar para que toda essa dimensão pudesse ser perceptível e assimilada.. A PISTA! nasce assim…
Portanto, eu acho que tudo o que faço e tudo aquilo que me move é fruto apenas dessa minha curiosidade e dessa necessidade de entendimento de determinados fenómenos sociais e culturais… e isso, para mim, implica conhecer os contextos, as causas, as consequências, as implicações… e desconstruir e esmiuçar todas essas construções. Por outro lado, leva-me também a tentar perceber essas coisas de um ponto de vista muito prático, pondo mãos à obra e experimentando com o próprio material musical.
E de que forma é que isso influencia a tua música?
Essa curiosidade pela história e pelo desenvolvimento dos fenómenos musicais vai informando tudo o que eu faço, não é? Quanto mais vou conhecendo, mais vontade tenho de partilhar e de experimentar coisas nessa onda… Mas também te digo que apesar de me interessar por todo o tipo de coisas dentro do espectro musical (e aqui podemos tanto falar do John Cage como podemos falar de funk brasileiro), a verdade é que sou um bocado picuinhas naquilo que escolho. Os meus amigos costumam gozar porque dizem sempre que eu não gosto de nada… E acaba por ser um bocado verdade. Apesar de me interessar por todos os géneros e por conseguir ser bastante eclético nas minhas escolhas, depois na verdade sou muito selectivo naquilo que retiro de cada coisa. Ao mesmo tempo, não me sinto um arquivista, um digger, ou um um gajo que toca raridades obscuras… Os diversos temas interessam-me pela pertinência cultural/política/social que tiveram e eu gosto de perceber tudo isso… Mas não gosto de ficar preso à História. Eu gosto muito do Agora. Interessa-me música que tenha consciência da história sim, mas que não se deixe limitar por ela. E nesse sentido gosto muito mais de música que é feita na contemporaneidade do que coisas cuja relevância já se eclipsou. Eu gosto de investigar, mas não sou saudosista. Interessa-me o presente, também porque é nele que eu existo.
Este FINALMENTE é talvez uma amostra de todas (ou parte das) as tuas influências, não? Como é que o descreves?
Eu acho que, com o tempo, um gajo vai-se moldando e construindo uma certa linguagem musical. E se até aqui fui experimentando coisas diferentes, com este disco sinto que já há uma linguagem mais coerente. Também porque partiu de um esforço mais consciente de fazer um disco nesse sentido. Desenvolver uma paleta de sons que fosse transversal ao disco, de utilizar drum kits semelhantes e com processamentos também eles equivalentes… Há um esforço nesse sentido. Agora não posso dizer que é uma amostra de TODAS as minhas influências… Eu ouço muito reggaeton, dancehall e funk brasileiro e se calhar isso não se ouve tanto no disco. Eu acho que é uma amostra, sim, e uma amostra que reflete um território no qual estou confortável e cuja linguagem eu acho que já flui com naturalidade. É natural para mim fazer música assim, até porque grande parte das minhas referências são desse género.. Bassy, breaky, garagy… lol… maioritariamente UK, mas não quer dizer que seja um puro reflexo da minha persona musical.
Em relação ao disco, é um disco claramente de pista, e com uma dimensão hauntológica (assombrada como fala o Mark Fisher). Há nele uma certa evocação da euforia da rave mas sempre com uma certa presença espectral que gera um certo desconforto. Eu gostei bastante das últimas frases do Press Release que o Manuel Bogalheiro escreveu e acho que resumem muito bem o disco: ““Finalmente!” marks for the unstable balance between familiarity and strangeness, intuitiveness and disturbance, euphoria and immersion. Tracks for the dance floor, yes, with a twist”. Acho que é muito isso.
O DJing veio antes, mas como é que surgiu o interesse pela produção?
O interesse pela produção surge como acontece sempre: por um certo esgotamento da qualidade de DJ. A determinada altura tu já ouviste e tocaste tanta música que começas a sentir, inevitavelmente, a tentação de experimentar; de pôr as mãos na massa. E claro que para levar isso adiante é preciso alguma disciplina e insistência para começar a ter, eventualmente, resultados satisfatórios, mas eu acho que essa curiosidade é inevitável. No meu caso particular, acho aquela ligeira obsessão em perceber o funcionamento da coisa, de que falávamos há bocado, só ajudou a que não desistisse da produção após as primeiras tentativas frustradas. E a partir daí é uma bola de neve que se desenrola. Ouves coisas, queres perceber como são feitas, metes mãos à obra. E depois há sempre coisas que tudo começas a reparar nos temas tocas e que sentes que poderiam ser diferentes, e então começas a experimentar. Numa primeira fase se calhar por imitação, em que tentas replicar as coisas que te interessam; numa segunda fase se calhar já começas a produzir com outro tipo de intencionalidade.
“Interessa-me o presente, também porque é nele que eu existo”
E como é que tem sido todo este processo? És autodidata?
Lento e doloroso. Mas ao mesmo tempo muito enriquecedor. Aprender é sempre muito desarmante porque a todo o momento descobres novos mundo e ganhas consciência da tua ignorância. Esse processo para mim é sempre um pau de dois bicos. Por um lado tenho essa sede de conhecimento, por outro ter que reconhecer constantemente a tua humildade pode ser algo desencorajador.
Sim. Sou autodidacta. Tive algumas aulas de piano, muito básicas, e sempre procurei estudar alguma teoria musical, mas a minha aprendizagem deve-se muito à minha exploração e investigação pessoal a uma abordagem “hands-on” e sobretudo a colaborações. Eu gosto muito de trabalhar com outras pessoas e de fazer música com amigos. Acho que não há melhor forma de aprender e de evoluir. Aí há pessoas que têm sido essenciais. O Sebastião Pinto (Lieben) foi uma peça fulcral nas minhas primeiras produções, por exemplo. Das colaborações que vou fazendo com o Mário (Moreno Ácido) também vou retirando montes de truques e absorvendo skills. O Hugo Vinagre (Miguel Torga) é sem margem para dúvida a pessoa com quem mais música troco e o meu crítico mais atento. Tudo o que diz respeito a mixing passa pela opinião dele e se tenho melhorado ligeiramente nesse aspecto devo-o sem dúvida a ele. É sempre ele que me diz, “esta tarola precisa de estar mais alta” ou “ essa voz tem reverb a mais”, “estes breaks estão a distorcer”… Há uma certa sensibilidade para estas questões que por vezes me ultrapassam e ele é sempre o primeiro a chamar-me a atenção. Eu confesso que sou um bocado preguiçoso nestas questões mais técnicas… Eu acho que sou um gajo com ideias e gosto de acreditar que tenho uma estética própria e algo invulgar, mas acabo por ser um bocado preguiçoso a produzir, e o Hugo está lá sempre para me dar nas orelhas e ajudar a crescer.
Depois há outras pessoas que tenho como referência e que me ajudam a melhorar e a alargar horizontes. A Inês (Violet) que contribui para o disco com uma remistura e que está sempre pronta para ouvir temas novos; outra Inês, a Carincur, cujo trabalho me inspira todos os dias e me faz querer expandir o meu som para outros territórios; os lives e construções cénicas do João Pedro Fonseca; a frescura estética da Kamila (King Kami), com quem também se têm vindo a cozinhar algumas coisas; um MC brasileiro a viver em Portugal e as possibilidades que isso pode criar… A música da BLEID, da Sta, do Bruno Silva (Ondness/Serpente), do Bertrand (menino da mãe)… Enfim… tanta coisa… Acho que tudo isso acaba por me desafiar a criar e a querer contribuir para o meio em que me insiro. Mas ya, acima de tudo, acho que a minha aprendizagem se deve essencialmente a essas duas coisas: à tal curiosidade pela mecânica das coisas e às pessoas. Tanto aquelas com quem vou podendo partilhar coisas directamente, como outras que apenas por desenvolverem trabalhos que eu acho super relevantes e inspiradores me motivam a ir desenvolvendo o meu trabalho.
A importância de colaborar e/ou de partilhar a vida e a arte com outras pessoas parece ser essencial para todos nós e é até reiterada por muitos outros artistas, como Vitor Joaquim, entre tantos outros exemplos. Por isso, tendo em conta a tua resposta anterior, pergunto: qual foi a importância da Extended Records (e da Discos Extendes) no teu desenvolvimento enquanto DJ/produtor e até como ouvinte?
A Extended Records foi um ponto de partida importante para mim. Tudo começou com o Gonçalo (Terzi), que sempre foi uma referência para mim como DJ. Conheci-o quando comecei a frequentar as festas dele no Espaço Catorze em Braga e rapidamente ficamos grandes amigos. Percebemos que tínhamos gostos musicais muito compatíveis, tínhamos muitos discos comuns nas nossas coleções, e fui conhecendo muita música através dele. Também aprendi muito com ele sobre como ir gerindo a carreira e como adquirir uma certa ética da profissão, perceber como nos devemos relacionar com as casas que nos recebem, aprender a receber quando organizamos um festa, etc. A determinada altura, coincidindo mais ou menos com a altura em que me mudo para Lisboa, conheci o João e o Sebastião e o Gonçalo convida-me para começar a trabalhar com eles na Extended Records. Comecei por fazer redes sociais e assessoria de imprensa, e entretanto comecei a tratar do A&R com o Gonçalo até chegar agora ao ponto em que acabo por coordenar um pouco tudo, uma vez que o Gonçalo tem menos disponibilidade desde que abriu o seu próprio restaurante.
Para ser sincero, acho que ter ingressado na Extended Records fez com que a minha integração na scene de Lisboa fosse super fácil. Mal cheguei a Lisboa, tive logo oportunidade de começar a tocar no em sítios onde a Extended tinha residências, como o Lounge e o Capela, e fui desde logo convidado para tocar no terraço do Lux e na abertura do Rive Rouge. Desde esses primeiros meses em Lisboa (há seis anos atrás) o Jomi foi sempre o meu buddy. Tocámos vários anos em B2B no Capela, coisa que hoje em dia ainda acontece embora com menos frequência, e muitas vezes também no Lounge. Com ele também fui partilhando muito música e em espectros onde o Gonçalo já não se estica tanto. Cenas tipo jungle, drum’n’bass, dubstep, bass e reggaeton… Acho que nos dias de hoje o Jomi também é das pessoas que melhor me consegue acompanhar num B2B, principalmente se for assim numa onda mais a partir… Portanto, quando falas da Extended Records, a primeira coisa que me vem a cabeça são essas três pessoas a quem eu devo quase tudo, o Sebastião, o Gonçalo, o Jomi. Somos todos buddies e estamos lá uns para os outros, no matter what, e mais do que a música que partilhamos, há essa conexão que é inabalável. E é isso o que mais importa, não é?
Para além de tudo isso, há o projecto editorial que essa duas editoras representam, que sempre se focou em talento nacional e que reflecte o grau de afinidade que nutrimos por todos os artistas que editamos. Interessa-nos editar coisas mais marginais, um pouco off, e com misto de descontração, ousadia e alguma maluqueira. Gostamos de dar espaço a gente criativa e que não se deixe rotular. Interessam-se coisas mais desequilibradas, cruzamentos inesperados, como é o caso do disco do Rabu Mazda por exemplo. Ou a excentricidade do disco do Rudi (Luar Domatrix) também.. Interessa-nos essa frescura e coisas inesperadas, mesmo que por vezes não sejam tão funcionais.
E depois, claro, todo este contacto faz com que inevitavelmente absorvas e tragas isso contigo acabando por contaminar quer os meus sets quer as minhas produções. Por exemplo, ao ouvir o tema Bo Teias do Rudi, tive a ideia de inserir alguns detalhes em temas meus, como ruídos de portas a abrir, que depois de manipulados acabam por funcionar muito bem como efeitos de transição. São essas pequenas coisas que, estando a prestar atenção, acabam por contaminar todo o teu processo e moldar as tuas escolhas. Mesmo como DJ porque, ao tocar as coisas do nosso catálogo, é natural que as escolhas seguintes sejam por ele influenciadas e isso acaba por levar os nossos sets para sítios mais inusitados, às vezes… Mas essa é a nossa piada eu acho… Estar a fazer um set de techno ou de electro e gradualmente aquilo se transformar numa coisa que está perto do funk brasileiro ou do dancehall/reggaeton… Boa disposição, ecletismo e maluqueira… Acho que é isso que nos caracteriza.
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