AUTOR

Daniel Duque

CATEGORIA
Reportagem

Semibreve: Um inspirador pilar de uma cidade cada vez mais efervescente

3 Novembro, 2023 - 16:50

Braga e Portugal têm no Semibreve um dos festivais de eletrónica e arte digital mais especiais da Europa.

Sessões de ambient à tarde. Festas de techno à noite. Novos eventos seguros para a comunidade queer. Projetos que ajudam a promover a cultura da cidade. Braga sempre teve vida, mas estas apostas recentes, muitas vezes por parte de equipas jovens, dão ideia de que há cada vez mais força e vontade de fazer acontecer. No meio disto tudo, o sempre presente Semibreve, que celebrou este ano a 13ª edição.

Tudo neste festival é enriquecedor e que o digam os muitos locais que por lá passam a cada ano. E para quem não conhece Braga, a experiência consegue ter ainda mais sabor. No primeiro dia, quinta-feira, a tradição da noite chuvosa enquanto se sobe até à Basílica do Bom Jesus continuou, neste caso para ouvir Clarice Jensen.

Acompanhada pelo habitual violoncelo e vários pedais de efeitos, a música de Nova Iorque assumiu na perfeição o papel de tomar conta daquela igreja neoclássica, repleta de figuras e imagens católicas. Durante cerca de uma hora, a autora de “Esthesis” guiou-nos pela luz azul que dominava a basílica, criando drones e loops que iam enchendo a alma e dando espaço calmo e belo para viajar no nosso próprio corpo. A meio, antes de regressar ao lado ambiente mais sereno, um lado grave e assombroso acentuou-se – abertos os olhos, estávamos embrenhados num cenário único e pouco usual no país. Momento mágico mais do que ideal para começar a aventura em Braga, como já tem vindo a ser habitual.

Há muito para conhecer no festival bracarense e o dia de sexta-feira começou com uma conversa com Maya Shenfeld e Pedro Maia. E quando falamos em conhecer, não falamos apenas da programação de música e arte ou da cidade, mas também, por exemplo, dos métodos de cada um dos convidados e convidadas. Foi esse o caso quando chegamos ao Auditório São Frutuoso, novo espaço no roteiro do Semibreve.

Natural de Braga, Inês Malheiro baseou parte do concerto (ou todo, talvez) no álbum “Deusa Náusea”, passando por temas como Overflowing. Ali, os presentes puderam ouvi-la a mostrar aquele que é o seu grande foco, a voz, enquanto dominava sem medos o microfone ou a maquinaria com que trabalhava loops. Tudo conta: movimento, distância, tempos, coração. Nome para manter debaixo de olho, claro, como provou naquele Auditório e como tem mostrado a solo ou em projetos como Fura Olhos.

Ainda na tarde de sexta-feira, antes de uma pausa que daria todo tempo necessário para rumar ao Theatro Circo à noite, Nexcyia. Não é Drexciya, mas este nome de Adam Dove é inspirado na mítica dupla de Detroit e a sua música também nos leva até às profundezas do oceano. Por entre momentos mais ou menos ásperos, aquela hora de exploração granular dos limites de elementos pré-gravados mostrou precisamente o que esperar do festival: não só a ligação homem-máquina, mas também, muitas vezes, a interpretação individual. Deste lado, o mundo em ruínas e a distopia que atravessamos foram muitas vezes o sentimento que traduzíamos do som.

A viagem continuaria depois de jantar com um dos momentos altos desta edição. Fruto de uma residência que passou por terras alentejanas e que incluiu também o próprio Theatro Circo, o espetáculo impetuoso de Maya Shenfeld e Pedro Maia levou-nos pelo futuro disco “Under The Sun” e por caminhos como uma pedreira de mármore de Vila Viçosa, no campo visual, e drones e momentos mais ou menos intensos, no campo sónico. As modulações tomavam total controlo de nós e, a certa altura, com Shenfeld num plano a segurar um vidro, uma luz branca cegava-nos tanto quanto a música. Mas por todo a ansiedade que se sentiu, remetendo-nos para problemáticas que temos vivido, a parte final trouxe gravações de um coro que, como noutros casos no festival, deram ânimo para a possibilidade de eventualmente conseguirmos chegar a um mundo mais risonho. Se assim não for, pelo menos temos escapes como este.

Uma verdadeira prenda para os presentes, o filme-concerto “GIFT” marca a vontade de o Semibreve começar a dar mais atenção ao cinema. A obra parte de “Evil Does Not Exist”, filme com que Ryûsuke Hamaguchi e Eiko Ishibashi sucederam a colaboração do aclamado “Drive My Car”. Em Braga, apenas com Ishibashi em palco a musicar tudo, foi contada a história de uma cidade remota no Japão que se enfrenta com um problema: um “glamping” que uma empresa de Tóquio quer lá construir.

Claro que esse é apenas um dos muitos detalhes que se viram num filme repleto de simbolismo – seja nas cores, nos animais, na natureza ou numa relação entre pai e filha. Com música algo sinistra, até mesmo nos ritmos mais jazz que se ouviam pontualmente, “GIFT” está repleto de temáticas dos nossos dias, algumas delas até escondidas. No fim, uma ideia que a arte tantas vezes nos mostra: nem mesmo num canto remoto estaríamos seguros e em paz. Talvez por isso – e pelo fim – tantos saíram daquela hora de coração nas mãos e cheios de ansiedade. Deste lado foi igual, mas talvez gostaríamos de ter visto este filme-concerto antes da atuação de Maya Shenfeld e Pedro Maia.

A partir da meia-noite, esta celebração de eletrónica e arte digital segue no gnration, espaço bem destacável graças às condições (há poucos sítios com casas-de-banho como estas, por exemplo), arquitetura e ao facto de ter várias salas com as instalações do prémio EDIGMA – o vencedor, este ano dmstfctn, com “God Mode (ep.01)”, está sempre no Theatro Circo. Infelizmente, foi no antigo edifício da GNR que se deu aquele que foi possivelmente o único ponto negativo deste Semibreve: as filas para a “blackbox” estavam maiores do que noutros anos e fizeram com que muita gente perdesse algumas atuações.

Foi o nosso caso em Beatrice Dillon, por muita pena. Compensamos com a oportunidade de pôr a conversa em dia e conhecer novas gentes, isto num espaço que é acima de tudo frequentado por pessoas que partilham os mesmos gostos – outro dos pontos mais interessantes do festival. Antes de irmos descansar para o dia seguinte, ainda ouvimos uns minutos de Mumdance, britânico responsável por um set variado: garage, grime, rasgos de funk brasileiro, DJ Rolando (Knights of the Jaguar), Regis (Allies) ou Dave Clarke (Thunder). Música de rave, acima de tudo.

Workshops com Maya Shenfeld e Anja Lauvdal marcaram a manhã de sábado, à tarde houve uma conversa sobre o Re-Imagine Europe, do qual o Semibreve faz agora parte. Só conseguimos chegar para ouvir Lauvdal na Capela Imaculada do Seminário Menor, outra etapa estimulante do itinerário. De mãos no piano e em parafernália como dois sintetizadores OP-1 Field, a norueguesa guiar-nos-ia por um momento terno que em parte era baseado no disco “From a Story Now Lost”. Muitos olhos fechados, muito piano, muita minuciosidade. Tempo e espaço em suspensão, tal qual os acordes e o ambiente. A subtileza marca muitas das atuações no Semibreve e a deste nome não foi exceção, ainda por cima embelezada por mais um espaço de devoção do roteiro.

Horas mais tarde, já no Theatro Circo, Tujiko Noriko acompanhada pelas imagens de Joji Koyama, mais um momento audiovisual bem intenso e desafiado pelo festival. Logo a abrir, a surpresa e o burburinho de que Noriko se fazia acompanhar pelo filho, ainda bem novo, em palco. Sem muitos instrumentos, apenas guitarra, teclado MIDI e pouco mais, a japonesa levou-nos pela ternura do seu “Crépuscule I & II”. Ouviríamos um pequeno apontamento rítmico na parte final, mas a atuação foi marcada por música soturna, algo lúgubre, com os sussurros e a doçura da voz de Noriko em evidência. Isto tudo acompanhado por Koyama, à direita do palco, quase invisível, que estimulava esse lado taciturno ao mostrar, sempre sem cores, planos de cidades, florestas, mãos de pessoas idosas. Triste, sim, mas ao mesmo tempo elevador.

Não há dúvidas de que há muito a elevar-nos no Semibreve. E se Noriko e Koyama o fizeram, imagine-se Emeralds. É que, repare-se, a música do trio norte-americano é mais esperançosa. Cerca de 10 anos após a paragem, o regresso da banda de John Elliott, Mark McGuire e Steve Hauschildt trouxe imagens de câmaras analógicas que tanto passaram por natureza como por patos de borracha, sempre com muitas cores. Se noutros casos deixamo-nos levar pela tristeza, aqui encontramos réstias de esperança para esta secularidade. A eletrónica melódica e com muito destaque dado à guitarra de McGuire está de boa saúde, como ouvimos naquela que foi uma das atuações com mais vida do festival.

Depois de perdermos Beatrice Dillon na sexta-feira, na noite de sábado fomos tão rápido quanto possível até ao gnration para não perder Loraine James. A britânica foi além do pessoal e novo disco “Gentle Confrontation”, sem deixar de pôr tudo de si em palco, e, embora tenha passado por temas como 2003, aquela hora foi mais uma exploração rítmica algo complexa, que tanto nos levava a breaks como a 4/4, muitas vezes em contraste com ambiências convidativas. Belo mote para o lado mais clubbing do festival.

No fim, quisemos ir lá fora e isso fez com que nos deparássemos com mais uma grande fila, ainda maior do que na sexta, para voltar a entrar no “blackbox”. Acabámos por perder a muito elogiada Nkisi – pelo menos podemos ouvir a boa seleção do bar, como Red Sky, de Pearson Sound – e por ouvir apenas alguns minutos de DJ Lynce, que foi afetado por falhas de som, mas que nem por isso deixou de partir a pista com faixas como Ragganaut, de Bong-Ra.

Aos domingos, a tradição leva-nos até ao Salão Medieval da Universidade do Minho, outro dos espaços mais interessantes do festival e que é marcado pelo som a circundar toda a sala. Se até então já tínhamos ouvido nomes a explorarem instrumentos como violoncelo, voz ou guitarras, Thomas Ankersmit ficou responsável por celebrar os 50 anos do sintetizador modular Serge, outro destaque desta edição. Em 45 minutos de improviso, como o próprio notou antes do início, fomos arrebatados por verdadeiros bleeps e bloops, por uma certa agonia dos limites do som, das frequências, da acústica e de nós próprios. Um lado mais melódico chegou na parte final e serviu como oxigénio para voltarmos a respirar, já que, até então, estávamos na fronteira entre este e um qualquer outro mundo.

De regresso ao festival depois de tocar ao lado de Stephen O’Malley em 2022, François J. Bonnet atuou como Kassel Jaeger e acompanhado pelas imagens de Eléonore Huisse, responsável pelo lado visual do disco aqui apresentado, “Shifted in Dreams”. Acreditamos que nunca vimos tantas cabeças encostadas no Semibreve como nessa atuação. Drones para embalar, diríamos. Maioritariamente a tocar guitarra com toda a calma e paciência exigidas, mas com recurso a material já gravado, como outros instrumentos e o que pareceram ser field recordings, Bonnet assinou a banda-sonora perfeita para imagens muito à volta da natureza (abriu com um intenso plano do sol) e da vida. Foi mais uma das bem-vindas atuações que permitem encontrar um refúgio temporário para o caos que se vive lá fora.

Dúvidas houvesse, os aplausos que antecederam e sucederam Kali Malone provaram que este era um dos nomes mais esperados da edição, isto num domingo em cheio e irrepreensível. Com uma imagem estática atrás e munida de um modular, um controlador e mais uma ou outra máquina, a norte-americana remeteu-nos para o novo “Does Spring Hide Its Joy”, que lançou recentemente ao lado de Lucy Railton e do marido Stephen O’Malley. Sem dúvida um dos momentos altos destes dias, a atuação centrou-se muito em cordas de guitarras ou violoncelo, que tanto nos remetiam para um lado metal, mais a meio, como para coordenadas de folk irlandês contemporâneo, mais para o fim. Fosse o que fosse, a intensidade era clara, bem como a materialização do som no nosso corpo. A própria Malone, ali no palco, ereta e a observar o Theatro Circo, sabe bem a importância do “metabolismo comum da sala” e o significado que aquelas frequências podem ter em nós. Talvez por isso é tão especial.

O Semibreve permite que cada um beba música e arte à sua maneira e que vá criando a própria viagem ao longo de quatro dias. É bom para todos e todas: aficionados por som, por máquinas, por concertos íntimos e expansivos, por clubbing e, agora cada vez mais, também por cinema. Abre horizontes. É formativo. Um verdadeiro palco para o que alguns chamam de música folk deste século.

provas de que o Semibreve inspirou trabalhos que ouvimos nos dias de hoje. E daqui em diante, é certo, muitos outros hão de continuar a ser inspirados para criar – ou simplesmente a encontrar mais fôlego para a vida.

Fotografias por Adriano Ferreira Borges / SEMIBREVE

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